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2 O Movimento Presença: Um Modernismo Romanticista

2.1- Presença: Uma Confluência Estética e Ética

O Movimento Presença é eivado de contradições inerentes à sua própria identidade, porque defensor da exploração das profundidades humanas, da originalidade mais radical, do individualismo estreme e da liberdade sem limites da criação estética. A intemporalidade e a diversidade da obra de arte não podem, em coerência, lançar as bases programáticas ou normativas de qualquer tipo de convenção estética ou artística, porque isso iria afetar de forma insanável a singularidade dessa mesma obra. Casais Monteiro recusa o termo “doutrina” para caracterizar a atividade da Presença (e nisso mais uma vez diverge de Gaspar Simões, que assume, acertadamente, do nosso ponto de vista, o carácter doutrinário da Presença, mesmo que pela recusa, presente nos textos fundadores de Régio nos primeiros números) e usa-o sistematicamente entre aspas: “a pura e simples verdade é que não houve uma

doutrina da Presença. A única doutrina da Presença foi … a sua ação crítica”1. Considera o termo e o conceito doutrina ao serviço de um “ideário” que visa arregimentar um conjunto de apaniguados e correligionários para uma causa, levando- os a tomar partido, o que não seria aceitável pelos homens da Presença. Tal, segundo Casais Monteiro, estaria a ser levado a cabo pelos escritores da “Seara Nova”, dirigida por Raul Proença, António Sérgio e Jaime Cortesão, que visavam, entre a crítica e a filosofia social e política, a “doutrinação democrática”2. Já a Presença pretendia

1

Casais Monteiro, ob. cit., p. 58. Sublinhado nosso. Já quanto a Orpheu, Casais Monteiro considera ter existido uma vertente doutrinária; também aqui em discordância com Gaspar Simões, dado que este recusa em Orpheu tal existência. O fator temporal assume aqui um papel importante: “Não obstante, este [Orpheu], realizou apesar de tudo uma doutrinação que, embora não fosse metódica, foi todavia convincente, se nos lembrarmos de que, surgindo o Orpheu em 1915, e sendo os dez anos seguintes assinalados pelo aparecimento de numerosas revistas e alguns livros nos quais o espírito de Orpheu se manifestou amplamente (embora para um público restrito) os seus frutos já tinham amadurecido o suficiente para que essa geração surgisse aos olhos dos presencistas, como a verdadeira expressão da literatura viva da fase precedente”. Adolfo Casais Monteiro, “A Escola de Poesia Subjetiva, Desenvolvida no Culto de Proust e de Gide…”, in O que Foi e o que não Foi o Movimento da Presença, ob. cit., p. 36.

renovar a arte e a literatura através da crítica, da teorização, da pedagogia, da educação dos juízos de gosto e de valor do público interessado. Por conseguinte, o autor de O País do Absurdo, referindo-se à revista, classifica como “essencial o seu papel no estabelecimento da crítica como disciplina responsável, dando precedência à interpretação e situação sobre o julgamento, o juízo estético sobre o moral e social, em reação contra a crítica ‘normativa’ e a que se pretende científica”3. O próprio estilo de um autor não pode ser uma simples qualidade técnica exterior ao “eu” psíquico e ontológico, mas há-de enraizar nesse solo radical e vital da personalidade: “A nossa personalidade, o nosso eu profundo de que fala Bergson, existe desde que somos; mas existe soterrado debaixo de tudo quanto não somos. Ora a grande dificuldade está em afastarmos essa camada de personalidade exótica, ou, pelo menos, de descobrir nela uma via para a personalidade que somos […]. É estilo toda a forma em que se descubra o sinal inconfundível duma personalidade”4.

Quando Gaspar Simões se refere a essa camada “exótica” de personalidade a evitar e a varrer da obra de arte, e mais concretamente do texto literário, está claramente a referir-se aos excessos retóricos que eram a imagem de marca de uma forma ultrapassada de se escrever no Portugal desse tempo – basta ler alguns textos das revistas que precederam a Presença para o confirmar. A habilidade técnica, a capacidade verbal, surgiam desacompanhadas da necessária verdade humana mais profunda e identitária do sujeito que escrevia. Daí que Clara Rocha toque num ponto central ao identificar a conceção do artista em Régio, e por extensão em toda a

Presença, com a noção romântica de génio, nesse sentido de um apelo a uma voz

individual e original que define um criador incomum que deixa atrás de si o rasto indelével de uma subjetividade irredutível. A essa condição fundamental de ser de exceção, se associa, no escritor presencista, a noção de fado, destino, predestinação5, uma vez que o criador, para além do talento e da técnica, há de também constituir-se como uma espécie de ser de eleição. Gaspar Simões é incisivo sobre essa matéria, o que se compreende, dado o carácter biografista e genético da sua crítica: “é artista

3

Ibidem.

4 João Gaspar Simões, “Do Estilo”, in Presença, 8, p. 1.

5 Cf. Clara Rocha, Clara Rocha, Revistas Literárias do Sé. XX em Portugal, INCM, Lisboa, 1985, p. 401.

superior o que mais original, individual, possuir a alma e, logo, o que à realidade opuser um mais puro sistema de reações”6.

Génio, destino, individualidade, eis as pedras-base em que assenta um espírito criador, e por consequência os despoletadores de toda a verdadeira obra de arte para o

presencismo. Génio não obviamente enquanto assimilação do artístico ao patológico,

como decorreu nas primeiras décadas do séc. XX, na esteira das teses bizarras de Lombroso, mas enquanto elemento inimitável de um espírito criador, onde estão presentes as marcas humanas genuínas de uma individualidade e de uma personalidade; pigmento, imperfeição sensível que suporta qualquer obra esteticamente superior e tendencialmente perfeita7. Trata-se de recuperar, como defende Luís Adriano Carlos, falando de Camilo, as impressivas marcas de subjetividade do criador excecional, que um conjunto de cientistas, desfasados das caraterísticas únicas que subjazem ao ato criativo, associou a pura e simples degenerescência intelectual, contribuindo assim para suspender “de uma assentada toda uma tradição valorativa da potência criadora – marginal aos códigos do Classicismo e do belo ideal, da razão, do senso comum e da regra –, sem por um momento ter gizado uma explicação coerente das condições etopoiéticas do ato criador, da natureza dos peritoi, da eficiência do Kairos e da vitalidade rítmica do

pneuma, que distinguem uma criação com ânimo e vida própria perante um reles

enunciado inerte e sem grandeza”8. A Presença procurou contribuir, a seu modo, para o restabelecimento da noção de génio, menosprezado igualmente pelos estudos literários da primeira metade do século XX, que desvalorizaram, quando não aboliram, as “marcas irredutíveis da subjetividade individual no fenómeno da

6 João Gaspar Simões, “Individualismo e Universalismo”, in Presença, 4, de 8 de Maio de 1927, p. 9.

7 Cf. Luís Adriano Carlos, “Um Génio que não Era um Santo”, Prefácio a Ensaios Camilianos, de Óscar Lopes, Porto, Fundação António José de Almeida, 2007, pp. 11 – 14. Partindo do referido estudo dos Ensaios Camilianos de Óscar Lopes, e situando a questão do génio na personalidade criativa de Camilo Castelo Branco, Luís Adriano Carlos explicita o conceito segundo as perspetivas analíticas em confronto: “O Romantismo constitui um vigoroso momento de emancipação da irregularidade (o característico dos românticos alemães) face à pedra polida da abstração neoclássica, podendo Camilo reclamar para si um estatuto extraordinário neste processo que marcou a Modernidade em todas as direções estéticas até ao nosso tempo. Apesar disso, a tradição iluminista e positivista legou-nos uma caricatura infeliz dessa irregularidade formal na personagem romântica do Génio – criador excecional, predestinado e incompreendido pelos filistinos –, já completamente desligada da noção renascentista do ingenium como talento inato e faculdade produtiva. […] Com efeito, Camilo pertence a um mundo em que o escritor poeta, na sua trágica disposição do ânimo – ‘pela qual a natureza dá a regra à arte’, de acordo com Kant –, ainda não tinha sido substituído pelo anémico escritor intelectual, lapidado na oficina positivista da segunda metade do século XIX”. Idem, p. 11.

criação”9. Nesta ambiência novo-romântica, recusando a assética lisura neo-clássica, se moveram os presencistas tanto na teorização como na criação, valorizando a marca única e irrepetível de uma personalidade criadora e combatendo os que, sob o pretexto da ciência ou da teoria, a negligenciaram, fomentando “a materialidade textual e o facto positivo, o documento, o grupo social, a ideologia, o sentido e o não-sentido, o traço ou simplesmente a cultura lato sensu, criando nos estudos literários um vazio conceptual, ainda traumatizado com Sainte-Beuve e Lombroso, que rasura o elemento diferenciador dos criadores originais, submersos na vaga escolar dos paradigmas dominantes e em projeções mecânicas dos mesmos conceitos que servem às produções menores”10.

Este foi também um pólo importante através do qual se deu continuidade ao Romantismo em suas múltiplas ramificações, matizado e reatualizado à luz dos novos tempos. O Romantismo perdurou, e continua a perdurar, para além do próprio Romantismo enquanto escola, numa demonstração do modo como a modernidade nunca se libertou das marcas indeléveis desse movimento incontornável, porque germinante nas camadas mais profundas e definidoras do homem enquanto ser único. Assim, bem podemos dizer que a nossa Geração de 27 se integra nessa ambiência estética e humana, em que a arte é assumida como expressão emocional, potencialidade individual mediada pela linguagem artística. Como herança romântica, verificamos também que a Presença vê na criação artística a criação humana por excelência, e a arte torna-se, mesmo no plano da especulação filosófica, num dos seus tópicos centrais. Nisso seguem os presencistas na senda de Baudelaire, pela forma como este entronca as categorias da beleza e do sublime na referida genialidade humana, e divergem do pressuposto kantiano exposto na Terceira Crítica, em que não só as artes desempenham um papel secundário em relação ao Belo Natural, como enquanto tema especulativo de carácter metafísico não teriam a nobreza de outros temas ônticos, éticos ou morais11.

A doutrinação estética dos homens da Presença sobre as funções e a natureza da Arte diverge também, em termos de grau, dos pressupostos kantianos sobre a conceptualização estética e a racionalização dos respetivos juízos de gosto e de valor. Se para Kant a impossibilidade de conceptualização do Belo bem como carácter

9 Idem, p. 13. 10 Ibidem.

indeterminado do gosto impede o desenvolvimento e a construção de qualquer doutrina, essa não foi necessariamente o procedimento dos autores da Presença, que, pelo contrário, ultrapassando dificuldades de vária ordem, e esclarecendo o paradoxo da negatividade metodológica já abordado, dão corpo a um notável espólio crítico e doutrinário. Se a visão estética do mundo presencista na construção do seu paradigma crítico e na integração da linguagem estetizante, há muito de aprendizagem na inesgotável obra de Kant, já o mesmo não se poderá portanto afirmar relativamente ao labor doutrinário, no qual Kant descrê e os presencistas apostam desde o texto de abertura, ainda que conduzindo-se estrategicamente, repete-se, mais através de rejeições do que de proposições, o que se compreende, dado o seu escrúpulo em condicionar os caminhos específicos do criador. E nisso se aproximaram dos pontos de vista expendidos na teorização dos românticos de Iena; Kant visou a construção de uma crítica e de uma teoria da estética, os românticos de Iena concentraram todos os seus esforços no sentido de erguerem uma teoria da arte12.

O grupo presencista segue, pois, publicação após publicação, na sua missão teórica e doutrinária, na esteira da escola de Iena, que, também suportada por uma revista, a Athenaeum, deu impulso ao grande projeto romântico de teorização e doutrinação estéticas. Em ambos os casos, e salvaguardas as devidas distâncias, estamos perante escolas abertas para as infinitas possibilidades da arte: escolas paradoxalmente contra as escolas, convenções contra as convenções, norma contra as normas, teorização através de uma teorização da negação ou da rejeição. Visam, uns e outros, educar o público interessado na contemplação e na avaliação da arte, através de juízos de gosto e de valor onde se interpenetrem o sentir e o pensar. Partindo do individual, em todo o juízo de gosto há uma ideia interpessoal de comunhão, de partilha: “a transição do singular para o universal que caracteriza a dinâmica do pensar reflexionante subjaz também à vivência estética como expressão individual de uma universalidade meramente subjetiva, não fundada em conceitos, mas na pressuposição de um acordo, universalmente válido, no exercício das faculdades”13. É esse sensus

communis kantiano que permite que os homens, apesar do relativismo e do

subjetivismo do gosto e da personalidade, das naturais e irredutíveis divergências e idiossincrasias, se entendam e partilhem sentimentos estéticos, discutindo-os em função das suas sensibilidades, circunstâncias históricas e experiências pessoais. A

12 Cf. Idem, pp.83 e 84.

Presença quis ser, e de certa forma foi, essa casa comum, espaço de comunhão e

liberdade onde personalidades de diferentes origens literárias, estéticas, filosóficas, sociais, políticas, etárias, coabitaram na expressão das suas ideias sobre os múltiplos campos da arte e do saber. Como tudo o que de significativo e ambicioso é feito pelos homens, não isento de contradições, incoerências e fragilidades; a arte como a vida, em última análise. Não admira pois que tal também sucedesse com quem preconizava com tanta veemência uma Arte viva, uma “Literatura Viva”, também aqui herdeira de uma genuína tradição romântica de defesa plena da liberdade criativa do artista, extensiva a todos os domínios da existência, ambicionando uma utópica tentativa de síntese pela arte e pela criação poética, de integração orgânica de todos os heterogéneos planos do ser, da vida e do mundo.

A unidade é para os românticos simultaneamente uma idealização perdida e uma utopia a alcançar; a velha ambição do romantismo alemão, pela voz de Friedrich Schlegel, de tornar a Literatura nesse espaço unitário e abrangente que englobasse todas as artes, subordinando todas as manifestações artísticas a uma categoria poética de ordem superior, está de certo modo presente no projecto presencista. A ideia-chave de expressão, nos seus diversos planos, nas nuances próprias das diversas formas artísticas, integra em si uma poeticidade essencial, uma ideia global de linguagem auroral. Logo, não é de estranhar que a poesia seja considerada a arte da Arte, representação artística central e síntese perfeita do sensível e do espiritual. Única arte, na opinião de Hegel, que transpõe as fronteiras do particular para se apresentar como uma arte universal14. Assume-se desse modo a poesia como a pedra-de-toque dessa possibilidade de unificação essencial das artes e apresenta-se a literatura como espaço orgânico que abandona a antiga diferenciação de géneros para estabelecer dentro dela uma mera diferenciação de diversos tipos expressivos; combinações estético-poéticas submetidas a uma mesma constitutiva organicidade, subordinadas a um mesmo conteúdo e a uma mesma forma de ordem estética e poética15. O grande Tudo que é a literatura, na formulação de Schlegel, procura a síntese poderosa entre géneros e confunde-se com o poético, que, por sua vez, engloba o filosófico e o retórico. Mas não se fica por aqui essa ambição de síntese; ela é extensiva, como deixa claro Friedrich Schlegel na sempre presente Athenaeum, à fusão da prosa e da poesia,

14 Cf. Hegel, Lisboa, Guimarães Editores, 1985, pp. 10 e ss.

15 Cf. M. Abrams, The Mirror and the Lamp, London, Oxford University Press, 1960, pp. 184 – 186.

genialidade e crítica, natureza e sociedade16. E é ainda sob esse prisma que as próprias artes não-verbais são reduzidas a uma essencialidade poética, o que não obsta, antes pelo contrário, a que toda a obra seja igualmente um organismo fechado sobre si próprio17. Mas uma coisa é certa: apesar da luta de Friedrich Schlegel por uma visão essencialista da arte, o facto é que grande parte da sua atividade parece desmenti-lo, ao manifestar uma visão crítica aguda e ao exprimir os seus juízos de gosto e de valor sobre as obras com veemência, convicção e, por vezes, radicalidade; o que leva Jean- Marie Schaeffer a concluir que “a história da literatura nasce de uma redução, não cognitiva mas avaliativa”18. Sob os mais diversos planos (o psicológico, o moral, o estético, o religioso), a idade romântica é também a da prevalência do “eu”, da primeira pessoa, que, nunca perdendo a sua forte centralidade, pode dialogar com um “tu” ou, num contexto social e político próprio, com um “nós”. Este “eu” absorve em si a experiência do “outro”, dela se apropria numa autêntica duplicação ou numa espécie de dialética do reconhecimento absorvida na fenomenologia hegeliana. Uma inserção dialética na história leva, contra o habitualmente considerado, o sujeito romântico a sair de si, a universalizar-se, podendo inclusive assumir-se como porta- voz de um desígnio coletivo, ou consciência-de-si enquanto consciência do “outro” em si19. Esses românticos, imbuídos na gigantesca teorização histórico-crítica de Hegel, assumem a sua missão na arte como uma dádiva de uma consciência para uma Outra consciência20. A proposição número 179 da Fenomenologia do Espírito, de Hegel, parece segregar o essencial desta problemática: “Para a consciência-de-si há uma outra consciência-de-si {ou seja}: ela veio para fora de si. Isso tem uma dupla significação: primeiro, ela perdeu-se a si mesma, pois se acha numa outra essência.

Segundo, com isso ela suprassumiu o Outro, pois não vê o Outro como essência, mas é

a si mesma que vê no Outro”21.

Toda a escrita da Presença assenta algures entre essa primeira pessoa, esse “eu” totalizante, que alastra de ponta a ponta na obra de Régio, por exemplo, e essa outra forma diluída na consciência do Outro em si, mais própria de Casais Monteiro.

16 Cf. Lacoue-Labarthe et Jean-Luc Nancy, “Le poème”, in L’ Absolut Littéraire, Paris, Éditions du Seuil, 1978, pp. 276 e 277.

17 Cf. Jean-Marie Schaeffer, ob. cit., pp. 133 e 134. 18 Idem. 137.

19 Cf. Henrique Cláudio de Lima Vaz, “A Significação da fenomenologia do Espírito”, Apresentação de Fenomenologia do Espírito, São Paulo, Universidade de São Francisco, 2002, pp. 19 e ss..

20 Cf. Ibidem.

Com o Romantismo recusa-se a ideia de uma verdade externa, desincarnada – bem simbolizada na estátua de Condillac antes da sua relação com o mundo – para se assumir decisivamente a instância do “eu” aparecendo ao mundo, e aparecendo, sobretudo pela arte, a ele mesmo22.

A obra romântica também não deixou de ser uma obra em rutura contra o estado geral e civilizacional de uma época: estética, cultural, literária, política, filosófica e religiosa. A impressão de desordem que apresenta, por comparação com o equilíbrio clássico, só na aparência se afigura como um defeito ou uma desvantagem, rapidamente se percebeu, e o devir literário e estético veio confirmá-lo, que isso era precisamente um passo em frente em relação à ultrapassagem da rigidez das sucessivas camadas do Classicismo tardio. Trata-se de entender a obra de arte, e a poesia em especial, como uma aventura criadora, recomeçada em novas bases, mais próximas da mundividência do sujeito: históricas, circunstanciais, humanas. É de salientar – sobretudo na perspetiva de apontar o carácter fenomenológico de um romantismo virado para o futuro, extravasando intencionalmente do seu tempo – que Friedrich Schlegel teve desde logo essa intuição profética ao considerar, nas páginas da Athenaeum, o Romantismo como uma poesia do futuro, da síntese e da renovação, não só da própria poesia, como também de todo o ato criativo e crítico; plataformas inseparáveis para o Romantismo:

A poesia romântica é uma poesia universal e progressiva. A sua vocação não é simplesmente reunir todas as diversas espécies de poesia e assegurar o contacto da poesia com a filosofia: ela quer e deve também misturar e fundir passo a passo a poesia e a prosa, a crítica e a generalidade, a poesia natural e a poesia da arte; ela pode e deve tornar a poesia viva, poetizar o sal do espírito, encher e combinar num conteúdo altamente educativo todas as formas da arte e animá-las com pulsações vibrantes de humor. Ela abraça tudo o que é poético, desde o mais vasto sistema estético, que contém dentro dele vários outros23.

Recusa-se toda a limitação de formas e géneros enquanto barreiras estanques que aprisionam a livre manifestação do espírito em suas energias criativas, e tem-se como

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