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O MUNDO DA VIDA, A REDUÇÃO FENOMENOLÓGICA E A INTERSUBJETIVIDADE

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PARTE I INSPIRAÇÕES CORPORAIS HISTÓRIA DA FILOSOFIA E

VARIAÇÃO 2: O MUNDO DA VIDA, A REDUÇÃO FENOMENOLÓGICA E A INTERSUBJETIVIDADE

O estudo das essências é a definição mesma da fenomenologia e a origem segundo Merleau-Ponty de todos os seus problemas e quem sabe até mesmo de sua impossibilidade e de seu fracasso. No entanto, é preciso considerar que as essências não constituem o fim da fenomenologia, mas o meio para se chegar a uma teoria da verdade, tal qual a pensou Husserl a partir da consideração da filosofia como uma ciência eidética, ou seja, voltada às formas e às essências. Mas, ao mesmo tempo, a fenomenologia caracteriza- se como um relato do espaço, do tempo e do mundo vivido, configurando-se como campo da experiência e da facticidade do ser o mundo como enfatizarão Heidegger e Merleau-Ponty cada um à sua maneira.

Outra variação fenomenológica, e mesmo sua tese fundamental, refere-se ao lebenswelt, cuja tradução remete ao mundo da vida. Nessa variação há o encontro da fenomenologia com a filosofia de Hegel, Kieerkegaard, Marx, Nietzsche e Freud, de forma mais intensa, configurando a fenomenologia como um estilo, uma atitude. Assim, a fenomenologia como método crítico à representação idealista ou positivista pode ser entendida a partir do mundo da vida, como podemos ler na citação:

O mundo está ali antes de qualquer análise que eu possa fazer dele, e seria artificial fazê-lo derivar de uma série de sínteses que ligariam as sensações, depois os aspectos perspectivos do objeto, quando ambos são justamente produtos da análise e não devem ser realizados antes dela. (MERLEAU-PONTY, 1945, p.10)

Esse movimento rompe com a concepção idealista da consciência na filosofia e investe na experiência. Como então pensar filosoficamente o mundo da experiência? A redução fenomenológica apresenta- se como essa variação metodológica que irá operar o regime de inteligibilidade da fenomenologia.

Com o artifício metodológico da epoché, ou redução fenomenológica, Husserl pretendia obter as essências da consciência, da moral, do comportamento. A essência é compreendida aqui como uma espécie de estrutura que poderia ser tratada como fundamento da experiência e tarefa da filosofia. A redução busca, pois, colocar entre parênteses, suspender as nossas crenças e juízos sobre um determinado fenômeno ou situação para refletir a seu respeito e encontrar sua essência. Mas, a redução é também uma admiração diante do mundo à maneira dos filósofos gregos antigos e da própria reflexão filosófica.

Trata-se de um afastamento para “ver brotar as transcendências”, ou seja, aquilo que está além do imediato, significa, também, distender os fios intencionais que nos ligam ao mundo. É preciso sair da ilha para ver a ilha, escreve José Saramago no

Conto da Ilha Desconhecida. Essa imagem literária

pode ser uma licença poética para compreendermos a redução fenomenológica. Afastar-se e retornar: eis a impossibilidade também de uma redução completa, como queria Husserl, posto que há sempre lacunas. O impensado, como bem o coloca Merleau- Ponty. A fenomenologia faz também aparecer a vida irrefletida, escapando do controle da consciência e da vontade representativa. A imagem que Merleau- Ponty apresenta da redução fenomenológica é emblemática pois, ao trazer à tona as tais essências, traz também o irrefletido.

Para Husserl, conforme apresenta Merleau- Ponty no prefácio da Fenomenologia da Percepção, toda redução é eidética. Mas, é preciso considerar que a essência não existe separada da existência, sendo esta que faz distender os fios intencionais. Segundo Merleau-Ponty (1945), as essências separadas são aquelas da linguagem, conforme estabelece o positivismo lógico do Círculo de Viena. “As essências de Husserl [da fenomenologia] devem trazer consigo todas as relações da experiência, assim como a rede

traz do fundo do mar os peixes e as algas palpitantes” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 15-16).

Ao enfocar o tema das essências e da redução, enfrenta-se o debate sobre a consciência – tema primeiro da filosofia moderna; assim como as questões do sujeito cognoscente, do sujeito moral e estético, notadamente com Descartes e o cogito e o sujeito transcendental em Kant capaz de constituir o mundo por representações. Para a fenomenologia, a consciência é intencional. Trata-se de reconhecer a própria consciência como projeto do mundo, destinada a um mundo que ela não abarca e não possui, mas em direção ao qual ela não cessa de se dirigir. Nesse contexto, compreender é reapoderar- se das intenções e de sua maneira única de existir na história individual e social. Assim, “não há uma palavra, um gesto humano, mesmo distraído ou habitual, que não tenha uma significação” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 19).

A racionalidade da fenomenologia não se reduz ao indivíduo ou a uma subjetividade idealista, mas afirma-se como intersubjetividade. Dessa maneira, a fenomenologia afasta-se do ser puro para dirigir-se ao ser no mundo, na relação com o outro. Nota-se aqui uma outra dimensão filosófica segundo a qual “a tarefa da filosofia é reaprender a ver o mundo,

e nesse sentido uma história narrada pode significar o mundo [por meio de uma escuta sensível] com tanta profundidade quanto um tratado de filosofia” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 21).

“Nós tomamos em nossas mãos o nosso destino, tornamo-nos responsáveis pela reflexão, por nossa história, mas também por uma decisão em que empenhamos nossa vida e, nos dois casos trata- se de um ato violento que se verifica exercendo-se” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 21). Tal é a atitude fenomenológica de envolvimento e engajamento nas situações e experiências vividas e assim afina-se com o esforço do pensamento moderno e da ligação entre racionalidade e intersubjetividade.

Esse prefácio apresenta-se como uma contextualização da tese doutoral a partir da qual Merleau-Ponty irá discutir a percepção como modalidade reflexiva. Nessa leitura podemos notar uma nova ideia da filosofia germinada no contato com a arte, com a literatura, as ciências, buscando não uma explicação do mundo, mas ter uma experiência do mundo. Assim, pensar é circunscrever não somente objetos de pensamento, mas sobretudo, um domínio a pensar.

VARIAÇÃO 3 – A EXPERIÊNCIA

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