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4. Ricardo Reis: entre Fernando Pessoa e Saramago

4.2 O narrador

Saramago recria Ricardo Reis e as demais personagens, por meio de um requintado trabalho de linguagem, a fim de construir um mundo ficcional que aponte para uma realidade que vai para além do texto, sobretudo o texto poético de Fernando Pessoa. Assim, é para o âmbito da linguagem, o elemento significativo que dá forma ao real, que adentraremos na caracterização das personagens.

Conforme o esquema proposto por Antônio Candido acerca da construção da personagem de ficção, podemos relacionar Ricardo Reis e as demais personagens do romance, com o paradigma de personagem que foi “transposta de modelos anteriores, que o escritor reconstitui indiretamente, - por documentação ou testemunho, sobre os quais a imaginação trabalha”86, afinal, as personagens da trama surgem de um universo ficcional poético e, por intermédio de Saramago, são remetidas ao universo ficcional narrativo.

representação, e na verdade contra o próprio narrador, que busca, como um atento comentador dos acontecimentos, corrigir sua inevitável perspectiva”88.

No caso da obra citada, o narrador coloca o leitor diante de dois universos, o particular de Reis e o de Portugal de 1936. Nesse contexto, uma observação apenas imparcial do leitor para com os fatos narrados não constitui a verdade da obra. Cabe então ao narrador afastar o leitor de um universo apenas contemplativo, para a desconstrução de uma ordem estabelecida até então.

O universo caótico em que Reis vive, e que teima em vê-lo de forma organizada, desconstrói-se a partir dos comentários do narrador, que coloca o leitor e a própria personagem em xeque.

Ora, Ricardo Reis é um espectador do espetáculo do mundo, sábio se isso for sabedoria, alheio e indiferente por educação e atitude, mas trêmulo porque uma simples nuvem passou, afinal é tão fácil compreender os antigos gregos e romanos quando acreditavam que se moviam entre deuses, que eles os assistiam em todos os momentos e lugares, à sombra duma árvore, ao pé duma fonte, no interior denso e rumoroso de uma floresta, na beira do mar ou sobre as vagas, na cama com quem se queria ela. Falta a Ricardo Reis um cãozito de cego, uma bengalita, uma luz adiante, que este mundo e esta Lisboa são uma névoa onde se perde o sul o e norte, o leste e o oeste, onde único caminho aberto é para baixo, se um homem se abandona cai a fundo, manequim sem pernas e cabeça. Não é verdade que tenha regressado do Rio de Janeiro por cobardia, ou por medo, que é mais clara maneira de dizer e ficar explicado. Não é verdade que tivesse regressado porque morreu Fernando Pessoa, considerando que nada é possível pôr no sítio do espaço e no sítio do tempo de onde algo ou alguém foi tirado, Fernando fosse ou Alberto, cada um de nós é único e insubstituível, lugar mais do que todos comum é dizê-lo, mas quando o dizemos não sabemos até que ponto.89

O trecho transcrito refere-se ao episódio em que Reis, interessado por Lídia, recua, após a primeira investida amorosa que dirigiu à camareira do hotel, e o narrador, sempre presente, comenta a atitude do poeta: “Ora, Ricardo Reis é um espectador do mundo, sábio se isso for sabedoria, alheio e indiferente por educação e atitude, mas trêmulo porque uma simples nuvem passou.”90 O narrador coloca o leitor diante da inquietação do poeta que se

88 ADORNO, Teodor W. “Posição do narrador no romance contemporâneo” in: Notas de Literatura I. São Paulo: 34, 2003. p.60.

89 SARAMAGO, 1998. pp. 90-91.

90 Ibid., pp. 90-91

finge de estóico - epicurista, no entanto atemoriza-se com a possibilidade de ter de assumir o seu interesse pela camareira do hotel em que está hospedado. Assumir tal desejo pressupõe um anseio de realizar-se humanamente, deixar de ser a altivez da máscara pessoana e mergulhar no mundo baixo dos homens, algo inconcebível para Ricardo Reis.

No mesmo trecho, Ricardo Reis anda a esmo pelas ruas como se estivesse em um labirinto, perdido, sem muitas lembranças ou expectativas, numa Lisboa que é névoa, e que

‘tem o caminho aberto para baixo’. O narrador, ao descrever o comportamento de Reis, aproxima ironicamente as atitudes da personagem do modo de agir dos gregos, ou dos romanos que pensavam viver entre deuses, compartilhando com eles o privilégio de se posicionarem como meros expectadores do mundo. E assim, deixa clara a incompatibilidade das atitudes da personagem com o universo em que está inserido, diante do qual a atitude contemplativa desperta o sarcasmo do narrador e causa uma imensa dor para a personagem.

O contexto político de Portugal em 1936 é descrito por meio das notícias dos jornais, que são lidos por Reis, e comentados por um narrador atento e sarcástico, que clama pela indignação do leitor:

O presidente da câmara do Porto telegrafou ao ministro do Interior, em sessão de hoje a câmara municipal da minha presidência apreciando o decreto de auxílio aos pobres no inverno resolveu saudar vossa excelência por esta iniciativa de tão singular beleza, e outras, Fontes de chafurdo cheias de dejectos de gado, lavra a varíola em Lebução e Fatela, há gripe em Portalegre e febre tifóide em Vabom, morreu de bexigas uma rapariga de dezasseis anos, pastoril florinha, campestre, lírio tão cedo cortado cruelmente, tenho uma cadela fox, não pura, que já teve duas criações e em qualquer delas foi sempre apanhada a comer os filhos, não escapou nenhum, diga-me senhor redactor o que devo fazer, O canibalismo das cadelas, prezado leitor e consulente, é no geral devido ao mau arroçamento durante a gestação, com insuficiência de carne, deve-se-lhe dar comida em abundância, em que a carne entre como base, mas a que não faltem o leite, o pão e os legumes, enfim, uma alimentação completa, se mesmo assim não lhe passar a balda, não tem cura, mate-a ou não a deixe cobrir, que se avenha com o cio, ou mande capá-la. Agora imaginemos nós que as mulheres mal arroçadas durante a gravidez, e é o mais do comum, sem carne, sem leite, algum pão e couves, se punham também a comer os filhos, e , tendo imaginado e verificado que tal não acontece, torna-se afinal fácil distinguir as pessoas dos animais, este

comentário não o acrescentou o redactor, nem Ricardo Reis, que está a

pensar noutra coisa, que nome adequado se deveria dar a esta cadela,(...)91

Ao comentar os fatos, o narrador deixa clara a sua presença entre o texto e o leitor, caso este não atente para o que o regime ditatorial oculta nas páginas dos jornais da época.

No caso do trecho transcrito, a epidemia de varíola, gripe e febre se misturam a conselhos veterinários, uma vez que o foco do problema deveria ser a fome entre os humanos – no caso, as mulheres grávidas – e não a ação bárbara de comer os próprios rebentos – caso espetaculoso noticiado pelo jornal.

Assim, ao invés de mascarar os fatos narrados, como fazem os jornais, seus comentários se fazem “estridentes” num contexto em que tudo se oculta, notícias sérias se misturam com amenidades para assim passarem despercebidas.

Com isso, o narrador sobressai-se como a voz da denúncia, que carrega a carga de ideologia do próprio autor, ele conserva ao longo do romance “a coerência de uma voz cujo conhecimento é necessariamente maior que o do personagem no que diz respeito ao tempo e à dimensão daquele fato histórico concreto – o salazarismo.”92 O narrador coloca o leitor diante das contradições da personagem e do contexto histórico da trama, evitando assim que o leitor se aliene em meio a tantas informações que se mascaram e ocultam.