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O negro, o mulato, o homem e a mulher branca

1. Sob o manto de Nix: o Recife entre meados do século XIX e início do XX

1.2 O negro, o mulato, o homem e a mulher branca

No século XIX o mundo vivia a emergência do determinismo biológico, havendo uma legitimação científica da superioridade branca em detrimento da negra e do homem em oposição à mulher. Apesar de, nesta época, o negro já ter obtido o “título” de humano, capaz mesmo de ter uma alma, era um humano de práticas, costumes e fisiologia inferior; o que ainda justificava, no Brasil, sua escravidão e completa distância de direitos políticos. (SCHWARCZ, 1993)

Portanto, o estilo de vida legítimo no século XIX era, primeiramente, pautado pela distância das práticas e costumes dos negros, sendo o ócio o ícone distintivo mais emblemático por fazer oposição ao trabalho difícil e pesado do negro. Assim, quem mais dispunha de tempo livre, geralmente demonstrado pela numerosa quantidade de escravos e, em termos estéticos, pela gordura de seus corpos, apresentava um dos elementos distintivos mais valorizados do período.

No entanto, não bastava apenas recursos materiais, capital econômico, para se distinguir, nem mesmo fazer nada da vida, pois haviam comerciantes mulatos que, ao chegarem a um nível considerável de riqueza, abandonavam completa ou parcialmente o comércio para se dedicarem a vida no campo, na lavoura de cana-de-açúcar (Pernambuco) ou de Café (São Paulo), investimentos tomados como legítimos . Assim, procuravam se aproximar da elite legítima obtendo recursos da mesma maneira que eles. Mas, “Cor da pele e classe eram combinados na determinação do status social da pessoa” (STOLKE, 2006), impedindo a igualdade entre os mulatos ricos em capital econômico e os brancos geralmente menos providos em capital econômico, porém de práticas e fenótipos legítimos.

Assim, o branco, de linhagem antiga inventada (mais comum) ou autêntica (raríssima) (SCHWARCZ, 1998), distante do gosto de necessidade do negro e do trabalho manual do mulato, apresentava um estilo de vida legítimo e invejado, pautado em seu capital cultural legítimo herdado do seio da família (principalmente) e de uma educação formal iniciada por um padre ou uma governanta estrangeira.

Esta elite branca, de práticas e consumos legítimos, vale ressaltar, apresentavam todo o seu esplendor distintivo vestindo-se à moda inglesa, passeando com inúmeros escravos pelas ruas sujas da cidade, cavalgando velozmente pelas estradas das metrópoles, caçando, conversando com pares em praças e adros de igreja; portando-se como velhos, apresentando uma estética envelhecida (barba longa e bigode) e uma bengala na mão ates dos trinta anos; enviando seus filhos homens para estudarem na Europa; se afiliando as Santas Casas de Misericórdia e outras irmandades religiosas que vetavam o ingresso de negros, pobres e trabalhadores manuais; implantando ao menos um dente de ouro; ostentando títulos nobiliárquicos (barão, visconde, conde, marquês e duque), expondo seus brasões em carruagens, portões, cartas, joias e túmulos e adquirindo manuais de etiqueta de Portugal e França. (FREYRE, 1977; 2006; MELLO, 1997; QUINTAS, 2007; REIS, 1991;SCHWARCZ, 1998).

Todas as formas mais distintivas de consumos e práticas, como pôde ser percebido, estão relacionadas ao homem e a vida fora de casa, na rua e em lugares públicos. Aqui vemos outra oposição, não mais entre o negro, o mulato e o branco, mas entre o homem e a mulher, posto que, dentro de casa, o homem branco, rico, de linhagem nobre e residente em um sobradão urbano não diferia muito de um mulato pobre que habitava um mocambo em terras alheias.

No interior da casa o homem branco não se relacionava com pares, mas com inferiores como a mulher. Por isso não precisava ostentar nada além do que a natureza lhe proporcionara e a ciência legitimara: seu sexo, afinal, à época, era forte o “sistema de sexo/gênero”, definido como “um conjunto de arranjos através dos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana, e na qual estas necessidades sexuais transformadas são satisfeitas” (RUBIN, 1993.p.2).

O “sistema sexo/gênero” era legitimado pela ciência desde o século XVIII, quando psicólogos, médicos e filósofos defendiam que o aspecto físico das mulheres as desqualificavam para alguns afazeres sociais, os quais eram mais pertinentes aos homens, de anatomia mais adequada. O anatomista Jacques-Louis Moreau afirmava que os órgãos genitais “para dentro” nas mulheres e “para fora” nos homens determinava a aptidão das mulheres para questões de ordem interna, como o cuidado da casa e dos filhos, enquanto os homens eram biologicamente projetados para a “rua”, onde afazeres políticos, lazeres libertinos e sociabilidade entre pares lhes aguardavam (SCOTT, 2005).

Neste sentido à mulher branca e de “família” era vetado a rua, lugar apenas para negros, meretrizes, salteadores, arruaceiros e homens brancos suficientemente capazes de se distinguirem. Conforme a região, esta reclusão da mulher era mais amena ou intensa, geralmente sendo a Corte o maior exemplo de liberalidade, onde as mulheres podiam fazer alguns passeios, compras, idas a igrejas e cemitérios sem a companhia masculina. Contudo, ainda assim havia alguma estranheza, uma repulsa social em ver uma mulher na rua sem a companhia masculina, como percebemos na fala dos personagens Paulo e Sá (da obra Lucíola, de José de Alencar):

- Quem é essa senhora? – perguntei a Sá

A resposta foi o sorriso inexprimível, mistura de sarcasmo, de bonomia e fatuidade, que desperta nos elegantes da corte a ignorância de um amigo, profano na difícil ciência das banalidades sociais.

- Não é uma senhora, Paulo! É uma mulher bonita. Queres conhecê-la? Compreendi e corei de minha simplicidade provinciana, que confundira a máscara hipócrita do vício com o modesto recato da inocência. Só então notei que aquela moça estava só, e que a ausência de um pai, de um marido, ou de um irmão devia-me ter feito suspeitar a verdade. (ALENCAR, 2002.p.16)

O trecho compilado da obra Lucíola ocorre pouco após Paulo admirar a bela Lúcia durante uma festa de rua na corte do Rio de Janeiro. O personagem contempla a mulher com a mais pura das ideias, mas o amigo, na frase: “Não é uma senhora, Paulo! É uma mulher bonita.”, faz o rapaz refletir sobre sua ingenuidade em crer que uma mulher desacompanhada, sem uma figura masculina por perto, não poderia ser casada ou uma digna solteira. Só podia ser uma cortesã, uma meretriz. Mas, para os passeios solitários femininos, o Rio de Janeiro até era tolerante no século XIX; haviam outras regiões mais rígidas nesta questão.

As províncias mais distantes, principalmente os sertões, exigiam uma maior reclusão da mulher, regulando mesmo seu banho de sol. No caso do litoral nordestino, especialmente as cidades de Pernambuco, havia um meio termo entre o Sertão e a Corte do Rio de Janeiro no que tange a reclusão das mulheres à casa: a mulher podia ir à igreja e, após o surgimentos dos primeiros cemitérios públicos, às necrópoles; nada muito além disso. (COSTA, 1999;D‟INCAO, 2004)

Mesmo quando desejava comprar uma jóia, uma peça decorativa ou um vestido, a mulher branca, rica, habitante de um sobradão urbano ou mesmo casa-grande

pseudourbana, mandava algum moleque buscar catálogos para que ela escolhesse o que lhe agradasse.

Mas não bastava esta reclusão, pois seus órgãos voltados para dentro exigiam da mulher certos afazeres específicos, como os cuidados domésticos; sendo ela responsável por supervisionar os escravos, cozinhar alguns quitutes e doces mais refinados, parir uma numerosa prole, educar os filhos em liturgias cristãs básicas, se confessar regularmente perante um padre, receber adequadamente as visitas, vigiar a virgindade das filhas, facilitar a iniciação sexual dos filhos com as negras, satisfazer pudicamente os desejos sexuais do marido, tolerar os bastardos do cônjuge e preservar a moralidade da família. (FREYRE, 1977; QUINTAS, 2007).

Por isso, se hoje, como defende AvtarBrah (2006), as mulheres não devem ser consideradas apenas em suas relações de gênero, mas também de trabalho, raça e etnia, uma análise sobre classe social e estilos de vida no século XIX deve levar em conta também questões de gênero, afinal falar de uma elite branca sem diferir os modos de homem e os de mulher não é substancial. As práticas e consumos dos homens brancos diferiam drasticamente das vividas pelas mulheres da mesma classe social, assim como também os “gostos” dos brancos e ricos em capital econômico e cultural divergiam das dos gostos de necessidade dos negros e dos mulatos ricos em capital econômico e pobres em capital cultural.

Vejamos agora como se davam os encontros, os namoros, os noivados e casamentos das mulheres que viveram entre meados do século XIX e início do XX, realçando as diferenças das relações vividas pela mulher branca bem nascida e as negras e pobres. Consideraremos também os costumes destas mulheres que, sob medidas diferentes, sofriam o peso de uma dominação que ditavam suas maneiras e comportamentos cotidianos.

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