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O Novo Campo para Estágio Profissional: objetivo e estrutura

CAPÍTULO 1 O PROJETO MANUELZÃO NO CONTEXTO DA HISTÓRIA AMBIENTAL

1.4 O P ROJETO M ANUELZÃO NO CONTEXTO DO MOVIMENTO AMBIENTALISTA

1.4.3 O Novo Campo para Estágio Profissional: objetivo e estrutura

e estrutura

Um dos objetivos do IR era promover a vivência dos futuros médicos junto às

comunidades do interior nas condições do que se chamava de “redução sociológica”. Eles iriam ver e conviver com autoridades “civis, militares e eclesiásticas”, com os enfermos que

atendiam nos postos, enfim percebendo nas ruas e roças as relações sociais de onde provinham os casos que chegavam aos hospitais de Belo Horizonte. Conforme o registro de MELO (1982), no Cadernos do Internato Rural, citando CAMPOS (1980) que participou da implantação da proposta:

“os objetivos didático-pedagógicos definidos pela Faculdade de Medicina para o

A compreensão dos estudantes, em uma realidade sociologicamente mais

simples, das relações entre a Medicina e a Sociedade, e a relatividade do papel daquela na resolução dos problemas desta;

A crítica à alta sofisticação tecnológica da medicina, na medida em que nestas

atividades disporiam de poucos recursos técnicos;

A ”autonomização”dos estudantes: a percepção de que ele próprio pode resolver inúmeros problemas, independentemente da presença do professor”.

O Internato Rural, ao deslocar os estagiários para a área rural distante de casa e da sede da universidade, pretendia promover um descondicionamento cultural bem como abrir outras áreas cognitivas. Segundo o professor Cid Veloso, diretor da Faculdade de Medicina em 1982, “julgamos que o aluno não deve apenas aprender a fazer o diagnóstico das doenças dos pacientes, mas deve também fazer o diagnóstico da saúde no país, das condições de vida

de nossa população, enfim, ele deve ampliar sua visão relacionada com a saúde” (VELOSO,

1982).

O processo de seleção e deslocamento dos estagiários exigia uma estrutura complexa tanto na Faculdade quanto nas condições de recepção no norte de Minas, tais como bolsas e infraestrutura regional de serviços que envolviam o Estado. Ainda que se soubesse que os idelizadores do IR contestavam o regime político vigente, mesmo assim houve convergência de diversos fatores históricos e políticos, porque a sociedade estava mudando e parte das classes dominantes queriam o fim da ditadura. Houve também o empenho da diretoria da Faculdade de Medicina, que passou a ser dirigida por professores com experiência no movimento estudantil pós-1964, integrados ao processo das reformas da sociedade e encontrando um ambiente favorável na Secretaria Estadual de Saúde pela razão acima exposta.

O Internato Rural existe desde Janeiro de 1978, com 320 alunos matriculados anualmente na Faculdade. A cada trimestre, 80 deles seguem viagem para o local do estágio, que tem duração de três meses. Os alunos são distribuídos por grupos de dois em cada município, ou quatro em casos mais raros, mantendo-se o revezamento trimestral ao longo do ano com calendário contínuo, de janeiro a janeiro. Ao todo 10.880 estagiários de medicina do 11° período já passaram por esta experiência desde janeiro de 1978 até o momento. O estágio é regido por convênio assinado pela UFMG, secretaria estadual da Saúde e municípios, cujo teor variou com o tempo, mas garante moradia, alimentação e transporte aos estagiários, bolsa de custeio para despesas pessoais e supervisão docente ao estágio, no âmbito das ações do SUS.

Para manter essa estrutura administrativa, com transporte ágil e supervisão docente os recursos vieram por meio de convênio com a Secretaria de Estado da Saúde. A grande carência de profissionais médicos no interior explicava este interesse além do evidente retorno político deste benefício. Pelo convênio, cada município provia o IR de hospedagem completa aos alunos, local de prática da atenção básica à saúde nos postos, transporte para os deslocamentos no interior do município, onde ficavam obrigados a cumprir a agenda de trabalho construída em comum acordo entre o IR e as administrações municipais. Uma parte considerável dessas atividades consistia em visitas domiciliares, atendimento clínico nos postos e frequentemente em locais improvisados para tal fim. Realizavam deslocamentos para a zona rural mais afastada e atividades de educação nas escolas, sindicatos de trabalhadores rurais e igrejas.

Muitos estudantes voltaram para trabalhar nestes municípios e são relatados diversos casamentos iniciados na fase de estágio no IR. É muito comum se reencontrarem nos hospitais de Belo Horizonte, ex-pacientes e ex-estagiários, nas mais diversas situações, mesmo muitos anos depois e até mesmo alguns prefeitos foram estagiários.

A instalação regional do IR se efetivou com professores e estagiários entusiasmados por projetos solidários na área médica, acadêmica e política. Belo Horizonte dista 500 quilômetros, em média, dos locais onde atuavam os estagiários e as estradas eram de terra. O

contraste estabelecido entre esta juventude e a dominância política do “coronelismo agrário”

agitou os municípios da região. Neste quadro político houve ameaças a professores e a alguns estudantes, reuniões com trabalhadores rurais e líderes comunitários em processo de organização, denúncias contra o IR junto aos órgãos de repressão policiais e militares e expulsão do IR de alguns municípios. Era a questão da saúde sendo assumida a partir da crítica social.

Na aprovação do IR no I Seminário do Ensino Médico em 1974, houve participação expressiva de alunos e professores e incorporação de muitos dos postulados da Integração Docente-Assistencial, ou seja:

La IDA representa un medio, un espacio através del cual puede generarse una practica que tienda cada vez más a transformar las condiciones de salud de 1ª población y una practica docente que también se transforma en la cual ambos resultan beneficiados. El término Integracion, aunque nominalmente referido a la docencia y los servicios, implica la

participación de la comunidad, no como um receptor pasivo sino como un elemento activo de este processo" (UAM36, 1977 apud ALVES, 1996).

As mudanças propostas para o ensino médico visavam a formação de um médico com o seguinte perfil: "generalista, policlínico, capaz de prestar a assistência primária de saúde e

exercer a medicina comunitária”. Este médico deveria aplicar, na realização de seu trabalho,

conhecimentos básicos das ciências do comportamento e da realidade que o envolve, bem como exercer atitudes críticas permanentes em relação à dinâmica nosológica e aos sistemas existentes de prestação de serviços de saúde" (Universidade Federal de Minas Gerais, Colegiado do Curso de Medicina, 1976).

Houve assim uma adaptação da qualidade da medicina da UFMG à realidade social da população e hoje em dia às características do Sistema Único de Saúde (SUS). Na época, entretanto, esta postura foi muito questionada, pois, na concepção de alguns docentes do IR, ela acomodava a qualidade da assistência médica à pobreza social em vez de rejeitá-la, conforme relata em seu artigo o professor Antonio Alves (1996)

É possível identificar nos registros relativos a esse período elementos que permitem descrever as reformulações feitas na proposta inicial. Processos de repressão obrigaram a universidade a trocar constantemente de municípios ou de área geográfica de atuação. Estes conflitos eram complexos e frequentemente os próprios secretários de saúde estaduais intervinham em defesa do Internato Rural e de suas atitudes frente ao quadro de pobreza e doenças no meio rural e áreas periféricas das pequenas cidades. Num destes eventos, parte significativa da disciplina Internato Rural, e consequentemente de suas articulações com outros atores sociais foram transferidas para as regiões dos vales do Mucuri e do Jequitinhonha. Na época, o vale do Jequitinhonha contava 52 municípios e um milhão de habitantes; o Mucuri contava 21 municípios e em torno de 400 mil habitantes. Nesse novo contexto geográfico, as ações se expandiram para uma região contígua, o vale do Rio Doce atuando em aproximadamente 5 municípios, a maioria pequenos, mas incluindo Governador Valadares.

Deu-se assim, início a outro momento da experiência, com propostas mais adequadas à nova conjuntura regional. Foram seis anos (entre 1980 e 1986) de vivência na região, que gravitava em torno de Teófilo Otoni.

No período e região citados, as ações no interior da disciplina Internato Rural estabelecem conexões importantes com novos atores sociais. Dentre estes, destacam-se os sindicatos de trabalhadores rurais, comunidades eclesiais de base da Igreja Católica e os núcleos formadores do Partido dos Trabalhadores.

Fig. 3 - Movimento conjunto das CEBs, STR, padres e Internato Rural em Ouro Verde, vale do Mucury, reivindicando do prefeito a permanência dos estagiários de medicina. Na sequencia, os estagiários permaneceram mantidos

por essa comunidade. 1981/1982. Fotografia de Apolo Heringer Lisboa.

Após esse período, uma outra transferência de área foi novamente necessária. Os motivos, naquele momento, não se deviam à repressão do regime, mas, sim, a contradições políticas envolvendo os atores do processo: esgotara-se um ciclo de mobilização intensa que teve grande repercussão na história da região e desaguou na eleição de deputados, prefeitos e vereadores com visão mais ampliada da questão social e da saúde. Mas este ciclo revelou diferenças de perspectivas de longo prazo entre os envlvidos neste processo, marcadamente influenciado por concepções cristãs católicas ancoradas nas estruturas e na força cultural da Igreja.

Em 1987, parte importante do Internato Rural deslocou-se para uma região mais próxima de Belo Horizonte, a região administrativa da Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais (SES), sediada em Sete Lagoas, que nucleava os municípios desde Corinto, Três Marias, Curvelo e arredores de Sete Lagoas. Nesta região o Internato Rural viveu seu momento mais institucional, trabalhando em total sintonia com os serviços do Estado, com uma postura mais técnica de organização dos serviços e colaboração quase irrestrita com a SES. O país se tancredizava e junto o Internato Rural. Foi um período de recarregar as baterias, digerir experiências, de trégua ou talvez de descanso e algumas esperanças no aparelho de Estado. Nem contradições internas se explicitavam mais no Internato Rural, as histórias estavam hibernadas, todos procurando a harmonia. Foi uma calmaria, prenúncio de novas descobertas a deriva.

Mais tarde, por volta de 1993, a disciplina Internato Rural passa se chamar Internato em Saúde Coletiva. Com essa mudança, há uma tentativa acadêmica de romper seus laços de subordinação com a clínica médica criando-se assim uma nova possibilidade de definir o seu próprio objeto de conhecimento e de intervenção.

Foi nesse contexto que o movimento embrionário do PMz colocou também em questão a concepção de Saúde Pública que estava associada a políticas oficiais de intervenção do Estado que, naquele momento, tinham fins militares e econômicos (CARVALHO, 2010. A ideologia dominante, compatível com interesses da indústria da doença, crescera enormemente fortalecendo o consumo de seus produtos em detrimento do investimento na promoção da saúde (BARROS, 1983; 2000).

Retornando aos registros das mudanças na disciplina que foi o embrião do PMz, pode-se dizer que nos debates em torno desse tema, essa ideologia compactada aos interesses da indústria da doença estava incorporada em propostas hegemônicas da Faculdade de Medicina, independentemente da ideologia política dos indivíduos.