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A Recepção do Livro de Daniel nos Primeiros Séculos da Cristandade

3. O Livro de Daniel na Tradição Cristã

3.1 O Novo Testamento

Os primeiros líderes cristãos provavelmente escreveram suas obras não como uma alternativa às escrituras judaicas, mas como uma maneira de preservar o pensamento de Deus revelado por meio das palavras de Cristo. Com o passar do tempo, os textos dos Evangelhos e epístolas escritos pelos apóstolos assumiram um lugar de primazia em relação aos demais escritos e se tornaram a parte central do cânon cristão. Este cânon passou a ser levado ao conhecimento de todos os povos possíveis, procurando manter, porém, seu formato original à medida que se difundia.

Era por meio de cartas que o mundo helenístico romano se comunicava, à época do surgimento da Cristandade. Geralmente escritas por escribas, tratavam dos mais variados assuntos pessoais ou comerciais e representavam pelo menos para os mais cultos, o modo predominante de transmissão de exortações e conselhos, algumas vezes “acompanhados pela exposição de alguma doutrina filosófica de fundo moral, psicológico ou cosmológico”. Esses escritos podiam ser publicados e eventualmente “funcionar como pequenos tratados” (NORRIS, 2010: 12).

Foi nesse formato que a maioria dos livros do NT foi escrita e seus textos mais antigos, atribuídos a Paulo,42 datam dos anos 50 e 60 EC. Tratavam de assuntos práticos e doutrinários, geralmente relacionados às igrejas recém-criadas e diferenciavam-se do estilo das cartas helenísticas convencionais basicamente na maneira que refletiam a origem judaica e a fé cristã de seu autor. Eram dirigidos a públicos diversos em diferentes situações, mas ensinamentos apocalípticos

42 Das 14 cartas do Novo Testamento atribuídas a Paulo, apenas 1Thes, 1-2Cor, Phil, Phlm, Gal e Rom são consideradas inquestionavelmente genuínas.

importantes já estavam presentes na Primeira Epístola aos Tessalonicenses, provavelmente escrita em 51 EC:

Se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também os que morreram em Jesus, Deus há de leva-los em sua companhia. [...] Quando o Senhor, ao sinal dado, à voz do arcanjo e ao som da trombeta divina, descer do céu, então os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; em seguida nós, os vivos que estivermos lá seremos arrebatados com eles nas nuvens para o encontro com o senhor. Consolai-vos uns aos outros com essas palavras. (1Thes 4: 14- 18)

Da mesma forma, ecos do Livro de Daniel também podiam ser encontrados na tradição paulina, como nos seguintes versos da Segunda Epístola aos Tessalonicenses:

Ele que é um adversário, e exalta-o mesmo acima de tudo que é chamado Deus e Venerável, de modo a também se sentar no Templo de Deus como um Deus, e mostrando a si mesmo como se fosse Deus. Não vos lembrais de que quando estava convosco eu disse essas coisas? (2Thes 2:4-5)

E o rei agirá de acordo com sua vontade e exaltará a si mesmo e se colocará acima de todos os deuses [...] e falará coisas inauditas contra o Deus dos deuses e no entanto prosperará [...] pois é a si mesmo que ele exaltará acima de tudo. (Dan 11:36)

Também fazendo parte do Novo Testamento e escritas algumas décadas depois, mas no mesmo estilo das anteriores, encontram-se as Epístolas aos Hebreus e a Primeira de São Pedro, ambas de autoria anônima e focadas em temas já presentes na literatura paulina. São também dessa época as três epístolas atribuídas a João, em quem a tradição identifica o autor do quarto e último dos evangelhos canônicos. O mais provável, porém, é que essas obras representem o produto de uma “escola” e não de um indivíduo, o que explicaria melhor suas diferenças e afinidades de estilo e vocabulário. Algumas das divergências internas que agitavam a Igreja no início do séc. II, possivelmente provocadas pelas diversas correntes nela abrigadas podem ser encontradas em duas outras cartas que fazem parte dos textos canônicos: em Judas,43 que denuncia aqueles que “transformam a graça de Deus em lascívia” e na Segunda

43 Cf. Jude 1:4.

Epístola de São Pedro,44 que repreende aqueles que “seguem fábulas habilmente engendradas” (NORRIS, 2010: 15).

Além de cartas, outro gênero literário, o evangelho,45

foi bastante utilizado no período inicial da Igreja. O termo, originalmente aplicado exclusivamente às narrativas da vida e do destino de Jesus, eventualmente passou também a identificar diversos tipos de textos da nova fé. Os quatro evangelhos canônicos foram considerados por Irineu de Lyon como sendo da autoria de Mateus, Marcos, Lucas e João, e por esses nomes são desde então, conhecidos:

Pois, após nosso Senhor ressuscitar dos mortos, (os apóstolos) foram investidos do poder das alturas quando o Espírito Santo desceu (sobre eles); estavam cheios de todos (os Seus dons) e tinha conhecimento perfeito: eles partiram para os confins da terra, pregando as boas novas das boas coisas (enviadas) por Deus para nós, e proclamaram a paz celestial para os homens, os quais, na verdade, fazendo tudo igual e individualmente, possuem o evangelho de Deus. Mateus também emitiu um Evangelho entre os Hebreus, escrito em sua própria língua, enquanto Pedro e Paulo estavam pregando em Roma, lançando as bases da Igreja. Depois de sua partida, Marcos, o discípulo e intérprete de Pedro, também nos entregou, por escrito, o que havia sido pregado por Pedro. Lucas, também companheiro de Paulo, registrou em um livro o Evangelho pregado por ele. Depois, João, o discípulo do Senhor, que também havia se inclinado sobre Seu peito, publicou ele mesmo um Evangelho durante sua permanência em Éfeso, na Ásia. (AH 3.1.1)

O Evangelho segundo São Marcos, possivelmente o mais antigo deles, teria sido escrito ainda à época de Pedro e forma, juntamente com os atribuídos a Mateus e Lucas, os chamados “Evangelhos Sinóticos”, devido à relação literária entre eles ser bastante próxima. Já o Evangelho segundo São João, escrito um pouco mais tardiamente, difere dos demais tanto na cronologia quanto nos detalhes da vida de Jesus. Os quatro evangelhos abrem os livros do Novo Testamento e neles as citações a Daniel resumem-se ao “Filho do Homem” (Dan 7:13), concentradas nos textos dos três primeiros:46

44 Cf. 2Pt 1:16.

45

Do grego εύαγγέλιον (“boa nova”).

46 O texto apocalíptico atribuído a Jesus pelos sinóticos é chamado de Pequeno Apocalipse ou Discurso

E então verão o “Filho do Homem” vindo entre nuvens com grande poder e glória. (Mk 13: 26)

E ele, Jesus, disse para ele: “Eu sou”. E vereis o “Filho do Homem” sentado à direita do Poderoso e vindo com as nuvens do céu. (Mk 14:62)

E então será visto o sinal do “Filho do Homem” no céu: e todas as tribos da Terra irão se lamentar quando virem o Filho do Homem vindo sobre as nuvens do céu com poder e grande glória. (Mt 24:30)

E então verão o “Filho do Homem” vindo do numa nuvem com poder e grande glória. (Lk 21: 27)

“Eu vi, nas visões noturnas, e veja, [um] como o “Filho do Homem” veio com as nuvens do céu”. (Dan 7:13)

Embora possa ser tecnicamente considerado uma carta “endereçada às sete igrejas da Ásia”,47 o Apocalipse de João é o principal representante desse gênero no Novo Testamento. Aparentemente escrito à época das perseguições religiosas promovidas por Domiciano (81–96 EC), corresponde basicamente a uma serie de visões descritas por um autor que se identifica como João. Embora considerado “o apocalipse por excelência”, o texto constituiu-se num “centro de controvérsias dos primeiros tempos da cristandade” e só veio a ser aceito pelas igrejas orientais a partir do séc. VI (McGINN, 1979: 12-13).

Os frequentes paralelismos com o Livro de Daniel encontrados no Apocalipse de João atestam, no entanto, a persistência e a importância daquela matriz nos livros do Novo Testamento (EVANS, 2001: 526):

E eu vi um grande trono branco e aquele que nele se assenta [...] E eu vi os mortos, grandes e pequenos, de pé, diante do trono; e os livros foram abertos. (Rev 20: 11-12)

Eu olhei até que os tronos fossem colocados e o Antigo dos Dias se assentasse [...] Milhares de milhares o serviam e dez mil vezes dez mil estavam diante dele: o julgamento estava pronto e os livros foram abertos (Dan 7: 9-10)

E eu vi tronos e eles [os santos] neles se sentaram e poder de julgar foi entregue a eles. (Rev. 20:4)

47 Cf. Rev. 1:4.

Até que o Antigo dos dias veio, e o julgamento foi entregue aos santos do Altíssimo. E chegou o tempo que os santos possuíram o reino. (Dan 7: 22)

E o sétimo anjo tocou e houve vozes e trovões, que disseram: O reino do mundo tornou-se [o reino] do Nosso Senhor e do seu Messias; e ele reinará para sempre (Rev. 11:15)

E foi entregue a ele o domínio, a glória e o reino e todos os povos nações e línguas servirão a ele [...] e seu reino jamais será destruído. (Dan 7:14)