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2.2 A Comunidade Remanescente Quilombola do Sutil através de olhares

2.2.1 O olhar da antropóloga: a etnografia como lente

Entre os estudos já realizados sobre a comunidade destaca-se a tese de doutorado de Miriam Hartung, em dois volumes. É o trabalho mais extenso, e intenso, sobre a comunidade do Sutil. Trata-se de um estudo etnográfico defendido em agosto de 2000, no programa de pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional do Rio de Janeiro.

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Para a realização da investigação etnográfica, a antropóloga morou na comunidade Sutil e procurou entender como se estabelecem sua formação e suas relações sociais, interna e externamente à comunidade. Além do exaustivo levantamento documental (inventários, testamentos, dentre outros arquivos oficiais), a pesquisadora realizou intensa observação do modo de vida dos integrantes da comunidade.

A tese encontra-se dividida em três partes.138 A primeira destas, por sua vez, divide-se em quatro subtítulos. O primeiro é intitulado “Do homem”139, no qual se apresenta uma descrição detalhada dos cento e vinte e dois indivíduos que compõem os grupos da comunidade, de suas vestimentas e do modo pelo qual se reconhecem como pertencentes a estes grupos. Nela Hartung convenciona, ou empresta a convenção: “os do Sutil”, para os descendentes, mesmo que não sejam moradores e “os de fora” para os não descendentes, inclusive moradores que se encontram há pouco tempo na comunidade.

Em “Da Casa”140 a autora descreve as residências da comunidade, bem como o cotidiano das pessoas a partir destas.

Não há, porém, rede de esgoto ou água tratada; esta última é obtida quer nos poços construídos pelos moradores de cada casa, quer nas muitas nascentes distribuídas pelo local, os olhos-d’água. A precariedade dessa infraestrutura não é exclusividade do Sutil, pois situação semelhante se verifica nas colônias vizinhas.141

Uma diferença da descrição feita à atual refere-se à mudança do “estilo” das casas, pois onze anos após a pesquisa de Hartung, as casas de madeira foram substituídas, em sua maioria, pela alvenaria.

O terceiro subtítulo, intitulado “Da Terra”142

, descreve os terrenos: o que se planta, tamanho, herança, quem mora, cercado. Ao final da descrição de cada terreno há um mapa. Descreve-se como algumas famílias conseguiram a posse, na

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Quando iniciei a leitura da tese de Hartung lembrei-me da leitura dos Sertões, de Euclides da Cunha, tanto pela extensão desanimadora, quanto, sobretudo, pela atribuição dos títulos e subtítulos.

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HARTUNG, A comunidade do Sutil..., op. cit., p. 19-35.

140 Ibidem, p. 36-58. 141 Ibidem, p. 37. 142 Ibidem, p. 58-87.

maior parte por usucapião. Há ainda a descrição dos caminhos: estradas, carreiros; da igreja e do espaço de festa; do cemitério; rapidamente, dos vizinhos e; dos arroios – “no restante do tempo todos tagarelam e riem, relembrando e comentando acontecimentos relacionados aos mortos, ensinando à piazada quem é quem naquela terra.”143

O último subtítulo da primeira parte, qual seja “Dos Outros”144

, contempla a localização geográfica da comunidade, tomando por referência o sistema rodoviário. Os vizinhos são citados e são descritos brevemente cada grupo. Primeiro os que ficam em direção a Palmeira: as colônias russas; uma família japonesa; a colônia do lago. Em seguida, os que moram em direção a Ponta Grossa: a comunidade da Colônia Santa Cruz, outra CRQ que, segundo a autora, possui condições piores que aquelas dOs do Sutil.

O texto segue com a descrição de Ponta Grossa e Palmeira. Refere-se aos proventos que veem de Ponta Grossa, e aos parentes que moram na periferia desta cidade, bem como a relação dOs do Sutil com os parentes que moram na cidade. A conversa é aqui observada como um elemento importante pela pesquisadora, que a associa aos momentos de visita e, sobretudo, às refeições. Em sua descrição acentua o aspecto de que todos falam ao mesmo tempo. Por fim, a autora descreve Palmeira e as relações dOs do Sutil com esta cidade: lá as mulheres frequentam o centro de dona Rosa (benzedeira, curadora, feiticeira).

Na segunda parte145 da tese de Hartung, dividida em dois capítulos, encontra-se a História do Sutil. Dentre as memórias encontradas sobre Os do Sutil, esta é a tentativa mais evidente, e mesmo de maior êxito, de estabelecer uma narrativa histórica como possibilidade de validade146, a partir da concepção de uma ciência histórica. Aqui se vê o emprego de método, cujo objetivo é assegurar a validade dentro de uma comunidade de historiadores. Hartung se refere ao registro

143 Ibidem, p. 83. 144 Ibidem, p. 88-106. 145 Ibidem, p. 107-264. 146

Conforme os recursos indicados por RÜSEN, Razão Histórica..., op. cit., p. 84-93, como fundamento de pretensão de validade da narrativa da História.

da história com “h” maiúsculo. Segundo a autora, a constituição e as trajetórias dOs do Sutil está armazenada nas entrelinhas da História.147

Vê-se em Hartung uma clareza de que a história não é algo substantivo, como se existisse uma única “História” a ser resgatada, ao contrário,

[...] a história do Sutil está sendo pensada enquanto resultante de formas de ler e interpretar o mundo, das intenções e ações daqueles que o constroem, sempre circunscritos, importa repetir, por momentos e eventos determinados. Surge assim um Sutil no plural, arranjos elaborados na interseção e ações de seus membros frente a diferentes momentos e processos históricos.148

Para a construção da “História do Sutil”, a qual chama de ambientação ou síntese histórica, Hartung recorre a outros historiadores.

A antropóloga segue a segunda parte fazendo um inventário sobre a ocupação do território paranaense, entre os séculos XVI e XIX, de sua economia, suas cidades e da localização na rota dos tropeiros. Nesta descrição, o escopo são os Campos Gerais, bem como as atividades econômicas, as formas de ocupação, as fazendas, os habitantes, os fazendeiros e os escravos. Hartung mostra que a presença da população escrava nos Campos Gerais esteve entre 7% e 12%, nos anos de 1772 e 1866, respectivamente. E que o plantel de escravos nas fazendas variava entre 30 e 100 escravos.149

À frente, Hartung aborda a história da fazenda Santa Cruz, que tanto pode ter sido uma sesmaria quanto uma posse qualquer. Os documentos permitem, segundo a autora, identificar Manoel Gonçalves Guimarães como proprietário da fazenda no século XIX, por meio do inventário de 1836, em que deixa a Santa Cruz aos seus filhos: Joaquim Gonçalves Guimarães e Maria Clara do Nascimento, a qual posteriormente doará metade das terras aos escravos libertos, conforme já exposto.150 Hartung identifica, nas relações com os escravos, preocupações

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HARTUNG, A comunidade do Sutil..., op. cit., p. 108.

148 Ibidem, 108-109. 149 Ibidem, p. 126. 150 Ibidem, p. 131-152.

religiosas, bem como valores ditos filantrópicos e humanitários, que resultaram em concessões de liberdade a escravos na primeira metade do século XIX.151

Na terceira e última parte da tese152, dividida em três capítulos, a autora explora mais detidamente alguns dos elementos já referidos. Inicialmente, volta-se aos elementos que compõe o grupo doméstico, tanto no que se refere aos espaços físicos, quanto em termos de relações sociais. Preocupa-se aqui em apresentar os valores dos homens e das mulheres da comunidade, os laços familiares e de compadrio, os casamentos, as linhagens e relações de parentesco, etc.

Na sequência, a autora se volta à exposição sobre “os de dentro” e “os de fora”, discutidos em função da igreja e das festas da comunidade, momentos estes que evidenciam as relações das pessoas da comunidade com as externas à mesma. Ao analisar as divisões sociais entre os grupos e as relações de poder, Hartung argumenta que a posição de um indivíduo dentro do seu grupo, na comunidade, em termos de configurações sociais, é comumente associada à posição de seus ascendentes.153

Por fim, em “Os de Deus Nosso Senhor”154

, a autora apresenta os costumes fúnebres da comunidade. Hartung observa que as doenças e a morte são dois dos temas preferenciais dentre Os do Sutil, que fazem de ambos os temas, assuntos obrigatórios em qualquer encontro. “Sua preocupação com estes acontecimentos se manifesta ainda, de forma particular, por ocasião da perda de alguém, quando o grupo mergulha em extrema ritualização do fato, cujo conjunto revela e reafirma a concepção de mundo dos do Sutil.”155

A partir da relação que os descendentes dos negros libertam estabelecem para com os seus mortos, a autora percebe em outros prismas as relações dos sobreviventes na própria comunidade, suas crenças, seus rituais, todo o seu universo simbólico.

Conforme já observado, a tese de Hartung é um elemento fundamental para a compreensão da configuração da comunidade dOs do Sutil, visto que a autora

151 Ibidem, p. 151. 152 Ibidem, p. 265-562. 153 Ibidem, p. 485. 154 Ibidem, p. 488-562. 155 Ibidem, p. 488.

apresenta desde os elementos do cotidiano da comunidade, de suas relações sociais, até a sua configuração física, espaços de vivência e moradias, além das relações de trabalho, hábitos sociais e mesmo suas crenças e relações com os mortos. A partir do olhar etnográfico, a antropóloga nos apresenta um retrato vivido dos inúmeros laços que unem os homens e mulheres da comunidade do Sutil.