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2. PARA UMA HISTÓRIA DO FOLHETIM

2.3. O público do folhetim

A expansão do periodismo e do folhetim, em Oitocentos, não traz apenas para as luzes da ribalta a figura do folhetinista. O destinatário ganha igualmente protagonismo e visibilidade. E com efeito, a entidade receptora não tem ela vindo a acompanhar, mais ou menos veladamente, o estudo e a reflexão que empreendemos em torno deste objecto periodístico? Pensar no destinatário não decorre apenas da óbvia razão de que todo o texto escrito precisa de um leitor para acontecer, mas, no caso em apreço, os factos de linguagem que um jornal apresenta são produtos feitos a pensar em putativos consumidores do objecto impresso. O jornal oitocentista, e de modo progressivamente mais acentuado ao longo do século, inscreve-se numa lógica da oferta e da procura. O jornal não vai apenas ao encontro de leitores, mas busca também assinantes e ao perseguir esse objectivo o periodismo contribuirá decisivamente para um alargamento do leitorado.

É precisamente essa dupla qualidade do destinatário – o que frui mas também o que assegura a existência de um periódico - que condiciona a escrita jornalística e, por consequência, a escrita folhetinesca difundida num suporte de vocação industrial e atento às solicitações do momento presente, pois como sublinha Silva Túlio, escondido na sombra do Barão d’Alfenim, “Hoje em dia, nenhum jornal satisfaz as exigencias do nosso publico – sendo politico, sem ter o seu roda-pé, a que chamam folhetim – sendo litterario, sem ter a sua revista ou chronica, e quanto mais sediciosas... (litterariamente fallando) melhor. – E’ moda”130. Não visando a mera informação ou formação, o folhetim vai sobretudo dar resposta a uma necessidade lúdica do público que precisa ser atendida, sem exigir grande dispêndio de tempo. Contemporâneo e testemunha da importância do folhetim na sociedade de então, Sampaio Bruno observará décadas mais tarde:

(...) [o folhetim] publicado n’um numero só, não força o leitor a esperar pelo seguimento, dá ao espirito a sensação grata do repouso; e elle sabe bem, como o alimento espiritual d’uma população pouco culta, não se indignando por que lhe despertem a preguiça do cerebro, comtanto que seja por pouco tempo. Depois, no modo de ser industrial e mercantil das sociedades

modernas, o homem de lettras não póde exigir uma attenção longa do grande publico, ao qual os affazeres poucas horas concedem de liberdade, de modo que, se o jornal é, como o viu Proudhon, a litteratura do futuro, o folhetim corresponde perfeitamente ao actual condicionalismo historico. Assim, a sua iniciação deveria ter amplitude deante de si, como succedeu com effeito131.

A reflexão empreendida pelo autor de A Geração Nova, aponta igualmente para a existência de um público português culturalmente pobre e culturalmente indolente que aceita e inscreve o contacto com o objecto periodístico e, em particular, folhetinesco num tempo de ócio que afasta o esforço, o trabalho, mesmo que só da ordem do intelectual e que poderia levar a um crescimento pessoal. Cerca de vinte anos antes, Júlio César Machado, em tom zombeteiro, traçava uma taxonomia do leitor:

Na nossa terra, ha ainda muitos leitores; (...) mas, esses que possuimos

dividem-se em tres respeitaveis grupos, que convem saber: Leitores para se instruirem.

Ditos, para se entreterem. Ditos, para chamar o somno132.

Dos primeiros diz César Machado existirem em Lisboa cerca de catorze, dos segundos uma porção regular, dos terceiros afirma serem o melhor grupo porém não compram livros e preferem “as pilulas opiadas”133.

Apesar do solo não ser o mais fértil, as sementes lançadas pelo folhetim parecem ter germinado e Sampaio Bruno reconhece o contributo do folhetim no alargamento do gosto, na estimulação da curiosidade intelectual e também no incremento de uma cultura estética através do contacto com uma escrita polimórfica134 pela variedade

temática que oferece, por diferentes formas textuais aí cultivadas. Na verdade, o periodismo português, ao seguir a lição francesa na adopção do folhetim, por via da tradução, faz-se veículo divulgador de diversas culturas e literaturas nacionais – em especial a oriunda de França ou as de que a França é intermediária -, proporcionando uma aproximação reflexiva ou inconsciente do público português a uma comunidade internacional dita civilizada e, consequentemente, dando a conhecer e familiarizando os leitores com novas propostas estéticas.

Tal como o jornal pretende ser, no seu conjunto, leitura para todos os membros da família, o folhetim enquanto microcosmos do jornal alberga assim uma escrita

131 Bruno – op. cit.

132 Julio Cesar Machado – “Revista da Semana”, A Revolução de Setembro, 31 Julho de 1860. 133 Idem, ibidem.

plurifacetada que responderá a interesses diversificados. Acontece de facto que esse público a que o folhetim se dirige não é de modo algum homogéneo. Tendo em conta os estudos existentes no domínio da história do livro e da leitura em Portugal e trabalhadas questões como o grau de alfabetização, a implementação da escolarização, os espaços de leitura ou as iniciativas editoriais, os diversos indicadores apontam para a existência de uma cultura burguesa em que a prática da leitura é uma realidade135. Contudo, se o perfil do leitor se enquadra em estratos sociais médios certo é que se pode desde logo efectuar uma sub-partição entre um público feminino e um público masculino136. Na verdade e durante boa parte do século XIX é uma pequena e média burguesia quem se constitui como destinatário do periodismo e se há inegavelmente uma diversidade fundada no género, há também a diversidade que decorre de interesses variegados a sustentar a escrita caleidoscópica da secção folhetim. No que ao povo diz respeito e tendo embora em conta todo um discurso em circulação no sentido de se implementar a instrução e progresso das camadas populares da sociedade, certo é que a literacia é apanágio de uma classe burguesa. As temáticas abordadas pelos cronistas revelam o grau de conhecimento que os autores têm do seu público – um público conhecido, familiar, próximo: os bailes, o teatro, a ópera, a estação de vilegiatura, a moda, os livros, as viagens, estes e outros assuntos que se prendem com formas de sociabilidade, práticas culturais apanágio da burguesia de então.

Justifica-se contudo uma nota particular em torno da mulher leitora. Com efeito, o público do folhetim parece ser grandemente composto por uma franja feminina. São pelo menos essas as representações maioritárias na própria escrita folhetinesca. Assistimos na verdade a uma feminização do leitorado preferencial do folhetim, dando conta afinal de imagens-estereótipo do masculino e do feminino na sociedade burguesa da época. Assim, o folhetim enquanto produto ameno para ocupação do lazer não pediria uma recepção exigente. Tomemos como exemplo uma crónica de 1848:

Cada assinante tem (termo medio) mulher, duas filhas, tres parentes, &c; e todas estas suas amigas, vizinhas e tal. Ora, sendo a maioria das senhoras

135 Cf., por exemplo, Maria Manuela Tavares Ribeiro – “Livros e leituras no século XIX”, Revista de História das Ideias, Coimbra, Instituto de História e Teoria das Ideias da Faculdade

de Letras da Universidade de Coimbra, 1999, pp. 187-227 (número sobre “O Livro e a Leitura”). Este e outros estudos dão conta de uma preocupação – que atravessa o século - com a difusão de conhecimentos úteis, com o contacto com o objecto impresso e em particular o livro por parte de camadas mais populares.

136 O próprio discurso folhetinesco reconhece explicitamente esta partição de género. Cf. a

crónica de Júlio César Machado em “Revista da Semana” da Revolução de Setembro a 9 Setembro de 1862, cujo início ilustra esse facto: “Amigo leitor, e leitora amiga (...)”.

(portuguezas) pouco dada ás politicas, sciencias, bellas lettras e artes, de que mórmente rezam os jornaes destes dois generos [políticos e literários], porém sim mui affeiçoadas á litteratura amena e chocalheira, ficariam privadas do legitimo usofructo da assignatura, se não fosse os romances de folhetim, as

revistas, chronicas e albums, que para suas excellencias principalmente se

escrevem. E assim é que um jornal sem este atavio, lhes parece tão freiratico e capucho como um vestido liso, sem barra, folho ou requife.

Digamos mais. Tambem os homens sisudos (não contando os cabeças-de- vento, que somos innumeraveis) gostam de se desenfadarem e espairecer n’estes prados artifciaes da murmuração jocosa, da critica bicuda, das facecias picantes, das vidas alheias, das noticias inéditas, das balélas e rolêtas do dia, em fim, das frivolidades, que é como se deve chamar a tudo isto, com licença dos (Srs.) litteratos que julgam passar á posteridade nas paginas de similhantes ninharias! 137

Os juízos formulados neste excerto assentam claramente em papéis sociais e representações específicas da mulher e do homem de então. Tais representações não podem ser desprezadas apesar de colhidas numa escrita fronteiriça a ligar literatura e jornalismo e, desde logo, pela parcela de ligação a uma história presente e vivencial que o folhetim regista - muito embora não se limite a esse tipo de objectivo – e ainda pela míngua de testemunhos outros sobre práticas de leitura, e respectivos estudos, que nos permitiriam traçar o perfil do público do folhetim em Oitocentos. De todo o modo é inegável, como salienta Martyn Lyons, que “La lecture jouait un rôle important dans la sociabilité féminine. Alors que dans les cafés et les cabarets, penchés sur les journaux, les hommes parlaient politique, romans et livres pratiques s’échangeaient presque exclusivement entre femmes”138. E nós acrescentaríamos: periódicos. Sintomaticamente, quer as representações iconográficas quer as representações na ficção relativas a espaços e modos de fruição do objecto impresso são em boa parte protagonizadas por figuras femininas.

Ler o folhetim e partilhar com outros a experiência de leitura, proceder a uma actividade de comentário, constitui-se, à época, uma prática de sociabilidade identificadora da pertença a um grupo, marca de uma cultura burguesa. Se o folhetim nem sempre possibilita um efectivo comércio intelectual, posibilita pelo menos um comércio social. Não é afinal isso o que é reconhecido pelo Commercio do Porto

137 Barão d’Alfenim – op. cit. Pelas razões apontadas pelo cronista também A Epoca passará a

oferecer a crónica.

138 Martyn Lyons – “Les Nouveaux Lecteurs au XIXe Siècle. Femmes, enfants, ouvriers”, Histoire de la Lecture dans le Monde Occidental, dir. Guglielmo Cavallo et Roger Chartier,

quando se rende à necessidade de oferecer um rodapé aos seus leitores? Em 1857 afirma o cronista: “A curiozidade publica está hoje mais espevitado [sic] do que nunca, porque a epocha é de publicidade e discussão; e a ignorancia de um facto qualquer, é no bulicio social um deficit no valor do individuo que a manifesta”139.

Falar de práticas de leitura, torna forçoso determo-nos nas condições físicas, materiais que rodeiam a recepção do folhetim. Como é ou pode ser recebido o folhetim? Quais as condições que rodeiam o acto de leitura? Em que espaços de leitura se dá? Em 1849, Lopes de Mendonça observava: “Não tenho um publico para me ouvir, tenho um publico que me lê ao almoço, entre uma omellete e uma chavena de café(...)”140. E em crónica da Semana afirmava-se: “[Os folhetins] são o Marrare onde as damas podem entrar sem ser no tempo da neve, e tomar aqui o seu chá preto, a que o vulgo ignorante de methaphoras chama ‘lettra redonda’ ”141. A recepção do folhetim pode na verdade

ter lugar quer num espaço privado – o lar – quer em espaço público – o café, a biblioteca, a associação ou, mais raramente no caso português, o gabinete de leitutra – mas num clima de informalidade permitido pelo dessacralizado suporte jornalístico, flexível na sua polivalência de manuseio142. Pode ser fruido solitariamente ou de modo colectivo. Lido em silêncio ou em voz alta, lembrando afinal que existe igualmente um público de ouvintes143. Adoptando estratégias de sedução do público, atraindo o leitor

139 “Retrospecto”, O Commercio do Porto, 9 Fev., 1857.

140 Lopes de Mendonça – “Revista de Lisboa”, A Revolução de Setembro, 13 Out., 1849. Anos

depois, numa “Revista de Lisboa” da Revolução de Setembro de 26 de Julho de 1851, Lopes de Mendonça aponta para outro espaço e momento de leitura do folhetim ao inventariar o que faz quem vai para “fóra-da-terra”: “(...) e deita-se ás onze horas com um folhetim da Semaine nas mãos, ou com um volume desses longos romances que estão hoje em moda nos dominios da litteratura militante”.

141 Visconde de A*** - “Chronica”, A Semana, nº 16, Abril, 1851, p. 187. Em Anexos, pp. 63-

65.

142 Quando, no prefácio a Azulejos do Conde de Arnoso, Lisboa, Imprensa Portugal-Brasil, s.d.,

Eça de Queirós observa que “A idéa de leitura, hoje, lembra apenas uma turba folheando paginas á pressa no rumor d’uma praça” (op. cit., p. 7), o que está em causa não é tão somente a tomada de consciência de que se caminha para uma cultura de massas ou que o objecto impresso se vulgarizou, mas o que está em causa igualmente é uma dessacralização do próprio acto de leitura, ligado a um mero consumo imediato do impresso.

143Cf. Carmo Reis – op. cit., p. 68: “A Imprensa é, portanto, a palavra que se lê e também a

para novos produtos de linguagem, a imprensa periódica vê ao longo do século aumentar o número dos seus leitores e, dentro dela, o folhetim, ao estimular o desejo de ler, dará um contributo inegável não apenas para uma fidelização do leitor, mas ajudará também a criar hábitos e práticas de leitura, fazendo do jornal objecto familiar e imprescindível na paisagem quotidiana da época. O folhetim no jornal fomentará então o gosto pela leitura e pelo livro, responderá a um interesse pelo coleccionismo que o século XIX vai conhecer, podendo mesmo levar ao gosto pela criação de uma biblioteca pessoal a combater a efemeridade de uma experiência de leitura jornalística.

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