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O papel do pianista e arranjador Radamés Gnattali na gravação, e o resultado

CAPÍTULO 3 “Em minha retina cansada”: Uma leitura passo a passo das soluções

3.8 O papel do pianista e arranjador Radamés Gnattali na gravação, e o resultado

A partitura do piano, neste arranjo, tem como função primeira a de sustentação harmônica, amalgamando-se ao violão e o cavaquinho que marcam os três tempos de cada compasso em seus respectivos acordes. Apenas em um trecho do arranjo ouviu-se nitidamente uma pequena frase de piano no segundo e terceiro tempo do compasso 64. Na análise de Bessa (2005), em “Lábios que beijei”, o uso do piano está em “executar o acompanhamento rítmico harmônico, no lugar do violão e cavaquinho” (BESSA, 2005, p. 190). Até onde se pode ouvir dos instrumentos harmônicos na gravação, não foi possível identificar somente o piano, mas uma amálgama entre os três instrumentos: o violão, o cavaquinho e o piano.

No que diz respeito ao arranjo para o piano, o fato de Radamés Gnattali ser o arranjador e o pianista desta gravação, mostra por parte dele, um comportamento neutro em relação à sua performance. Poderia ter evidenciado sua atuação, por meio do arranjo, pois

tinha capacidade para isso, mas preferiu ser modesto. Talvez, este perfil do arranjador possa ter contribuído para o seu sucesso profissional junto aos músicos e cantores de sua época. Não tinha intenção de roubar a cena, até porque, ao que tudo indicou, seus olhares estavam voltados para o âmbito composicional.

Encerrando os comentários sobre as participações dos outros intérpretes nesta gravação, observou-se que vários fatores anteriores a esse processo, interferiram para o momento da performance. A começar pela tradição dos músicos, que tinham em seus redutos familiares o convívio com a música, uma vez que, seus pais eram mestre de banda. Além disso, as diferentes formações musicais também colaboram para este evento.

Luis Americano, até onde se pode pesquisar manteve-se sempre tocando música popular sem um contato com a música de concerto. Esta condição lhe deu uma evidência no arranjo na maneira de “colocar o som” da clarineta, além de um balanço rítmico, diferenciado. Ao passo que Romeu Ghispman, provavelmente, atuou a maior parte de sua carreira na música erudita, o que lhe traz na gravação uma sonoridade rica com ritmo preciso. Essa mescla de elementos musicais, ou seja, uma “leitura erudita” sobre o arranjo, em conjunto com uma leitura de músicos que estavam mais ligados à tradição do choro, como Dante Santoro na flauta transversal e Luis Americano, na clarineta, resultou em uma simbiose que proporcionou ao arranjo um caráter “relaxado” e ao mesmo tempo “sofisticado”, como adverte Monteiro (2008):

Mas há um resultado muito peculiar quando existe uma leitura erudita das práticas populares ou de tradição oral. No caso de um músico erudito [...], talvez a modinha soasse como um lied alemão e não como uma cantiga espontânea feita a qualquer hora que desejasse acompanhada por uma viola de arame (MONTEIRO, 2008, p. 193).

As carreiras dos instrumentistas presentes neste registro fonográfico mostram uma vivência musical híbrida, nos setores da música de concerto e da música popular. Na música de concerto, Radamés Gnattali, e Iberê Gomes Grosso, ambos, tiveram em suas carreiras, uma grande atuação como concertista.

Outro fator relevante no grupo que executou esta gravação foi a proximidade entre os músicos. Esta relação interfere positivamente em uma produção musical, pois a partir de

um determinado tempo de convivência, a comunicação durante a execução de uma gravação pode se dar através de um simples movimento ou sinal por qualquer um dos instrumentistas sendo que este é entendido e absorvido rapidamente.

A maioria destes músicos que tocaram na primeira gravação de “Lábios que beijei” já trabalhavam juntos desde 1936, quando da inauguração da rádio Transmissora, que segundo Murce (1976), “[...] surgiu como uma “bomba”: apresentou um programa inaugural com um elenco artístico tão grande e tão bom que a gente chegava a duvidar” (MURCE, 1976, p. 48).

Nesse elenco citado por Renato Murce, estavam presentes: Romeu Ghispman, na regência, Radamés Gnattali, Iberê Gomes e o cantor Orlando Silva e Célio Nogueira. Esse evento ocorreu no dia primeiro de janeiro de 1936, um ano e oito meses antes da gravação de “Lábios que beijei”. Outro detalhe importante é que os músicos citados por Murce compõem aproximadamente a metade da formação de instrumentistas presentes na gravação de “Lábios que beijei”. Além disso, as diferentes áreas de atuação musical desses instrumentistas e suas formações podem acrescentar resultado à performance dessa gravação. Reforçando este fator relacional, cabe aqui o questionamento de Blacking: “Entre instrumentistas interpretações e experiências musicais contrastantes (não-verbais), como a experiência de um sistema musical influencia a percepção de um e a performance de outro?” (BLACKING, 2007, p. 211). O mesmo autor exemplifica que dois performers fazendo uma mesma passagem musical em uma partitura, há uma grande diferença. Em suas palavras:

Isto não é um dialogo entre pessoas no qual um deve dominar ou ambos devem tomar parte sem se afetarem um ao outro, mas sim uma fusão onde as duas partes saem transformadas e renovadas, uma viagem de descoberta mútua na qual diferentes maneiras de pensar sobre a música ganham um status heurístico igual, num terreno onde todos os seres humanos são capazes de produzir sentido da música (BLACKING, 2007, p. 207).

Desse modo, pode-se constatar que quando se pretende analisar a canção popular, os “ritos performáticos” têm um campo de liberdade considerável, tanto quanto a estrutura da canção. Como afirma Napolitano (2003): “A estrutura e a performance ‘realizam’ socialmente a canção, mas não deve ser reduzida uma à outra” (NAPOLITANO, 2003, p.

841). Dessa forma, na primeira gravação de “Lábios que beijei”, considerando-se a relação vivencial dos intérpretes em um mesmo grupo, além do aspecto da estrutura composicional do arranjo, estes dois fatores deram conta de garantir uma resposta positiva para a gravação.