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O paradigma alternativo e as relações entre estado e democracia

Como foi mostrado até o momento, o paradigma dominante encampa diversas maneiras de se enxergar a política de maneira geral e os processos de redemocratização de maneira específica. Esperamos ter mostrado como o paradigma dominante é definido, é avaliado, é aplicado e é criticado por si próprio. Além disso, esperamos ter mostrado que as análises feitas com o ferramental disponível ao paradigma dominante em nenhum momento trata do estado como agente

político, o que confirma a nossa hipótese – de que este paradigma analisa a democracia, como ela surge, como ela é vista pela população, mas não leva em consideração as ações do estado na definição dessa democracia. Por seu lado, o paradigma alternativo, para o qual nos viramos agora, tem como foco central a análise do estado e das relações econômicas que influenciam o e são influenciadas por esse estado, trazendo novos argumentos que podem ser agregados à análise dominante, como veremos no Capítulo Três.

O primeiro texto do paradigma alternativo que acreditamos ser relevante e que trouxemos a este trabalho é o de Morais (2002). O tema desse texto é uma crítica ao pensamento liberal que é dominante na atualidade. O autor inicia seu texto afirmando que a ação política tem como base vários instrumentos, dentre os quais a produção de idéias é um deles. Assim sendo, com a crise da década de 1970, teve início uma nova ação política, considerada como o “pensamento único” atual e chamada de neoliberalismo, cuja base consistia em apresentar soluções para os problemas da época, sendo que tais problemas teriam sua origem na falência do regime monetário definido na conferência de Bretton Woods (1944), no esgotamento dos modelos de acumulação de capital do pós-guerra e das instituições políticas que lhe eram afins (em especial a democracia de massas), com a inviabilidade das políticas nacionais voltadas para promover o desenvolvimento econômico, para controlar os ciclos de crescimento e recessão e para gerir eficientemente as relações interclasses (as políticas de renda e de bem-estar social, em particular). Em outras palavras, as idéias neoliberais objetivaram – e, até certo ponto, conseguiram – oferecer explicação aceitável para a crise daquele momento, além de ter se estabelecido como uma alternativa viável ao consenso keynesiano do pós-Segunda Guerra Mundial.

Os conceitos neoliberais se assentaram no ideário político tendo como base uma crítica ao modelo do bem-estar social. Essa crítica baseia-se em três pontos principais:

1) Os custos crescentes (e tendencialmente insuportáveis) das políticas sociais e seu impacto sobre os fundos públicos (inflação, endividamento); 2) Os efeitos deletérios dessas políticas sobre valores, comportamentos de indivíduos, grupos sociais e empresas; 3) Os resultados desastrosos, sobre o processo decisório e sobre as instituições democráticas, da maquinaria política exigida pela implementação desses programas. (...) O neoliberalismo econômico acentua a supremacia do mercado como mecanismo de alocação de recursos, distribuição de bens, serviços e rendas, remunerador dos empenhos e engenhos inclusive. Nesse imaginário, o mercado é matriz da riqueza, da eficiência e da justiça (Morais 2002, 15).

O ideário neoliberal acredita que o estado, ao proteger os trabalhadores contra a exploração, está influindo negativamente na obtenção da riqueza, da eficiência e da justiça. Ao mesmo tempo, inibe o investimento privado – que garante o desenvolvimento do país – com taxações e regulações legais. “Desse modo, além de pressionar os bolsos dos ricos (que assim se vêem impedidos de

investir), gera ‘desincentivos’ ao trabalho, induzindo ao comportamento, digamos, preguiçoso ou aproveitador, ‘encostado’” (Morais 2002, 16).

Os defensores do neoliberalismo conseguiram juntar idéias aparentemente separadas ou opostas: por um lado, o mercado como instituição inovadora, que acaba com tradições antigas e implanta o novo, e por outro o conservadorismo – não apenas político, mas social –, que defende exatamente as tradições e a autoridade já estabelecida.

Constitui um grande mérito literário da Nova Direita ter conseguido conectar todos esses elementos ideológicos, não necessariamente integráveis, em um discurso razoavelmente persuasivo. Assim, conseguiu ir além da denúncia “econômica” ou “fiscal” das políticas sociais, o que arriscaria preservá-las como “coisas boas, mas impossíveis de sustentar”. Com o enfoque da Nova Direita, elas aparecem, mais e melhor, como sintomas de decadência civilizacional e, simultânea e paradoxalmente, como indutoras da decadência. Como algo intrinsecamente mau e que não se deve sustentar, mesmo quando possível fazê-lo (Morais 2002, 18, grifos no original).

As narrativas do neoliberalismo, expressadas pelos membros da Nova Direita, estavam voltadas para desfazer um consenso e substituí-lo por outro. Para se atingir tal objetivo, as idéias precedentes tinham de ser apresentadas como contra-senso, como manifestação de interesses corporativos e/ou particularistas, ou ainda como sobrevivências de doutrinas antigas. No entanto, a reforma de estado defendida pela Nova Direita não leva à anarquia: as agências estatais “(...) são supostamente ‘profissionalizadas’ e ‘despolitizadas’ por meio de um enfoque ‘gerencial’, voltado para o ‘cliente’, para os ‘resultados’, para a ‘qualidade do output’ e não para a fidelidade a normas” (Morais 2002, 19, grifo no original). Assim, a Nova Direita pretende não apenas acabar com o modelo econômico de estado de bem-estar social, mas também com o modelo político associado a este estado – a democracia representativa, ou até mesmo a própria democracia.

A proposta neoliberal de “reforma” dos serviços públicos, como se sabe, é orientada por uma idéia reguladora: a idéia de privatizar, isto é, de acentuar o primado e a superioridade da ratio privada sobre as

deliberações coletivas. Daí suas diferentes maneiras de manifestação. Privatizar, no sentido estrito do termo, é apenas uma delas: transferir a agentes privados (empresas) a propriedade e gestão de entes públicos. Mas há outros modos de fazer valer o mandamento. Pode-se delegar a gestão, sem

necessariamente transferir a propriedade. Pode-se ainda manter na esfera estatal a gestão e a propriedade,

mas providenciando reformas que façam funcionar os agentes públicos “como se” estivessem no mercado, modelando o espaço público pelos padrões do privado. Diferentes modos de descentralização e dispersão de operações – com a correspondente centralização e o insulamento dos âmbitos de definição das grandes políticas, das práticas de avaliação de desempenho, de distribuição do bolo orçamentário – são pensadas como formas de introduzir o ethos privado (dinâmico, purificador) do mercado no reino das

funções públicas (Morais 2002, 20, grifos no original).

Conclui-se, portanto, que as mudanças econômicas propostas pelos neoliberais trouxeram, em seu bojo, mudanças também políticas, com o objetivo de diminuir a possibilidade de participação da sociedade. As reformas neoliberais pretendem mudar a agenda do país, mudando os locais e as

maneiras de se fazer política em determinado país, ao afirmar que a dívida social é causada não pelo excesso de capitalismo, mas pelo excesso de democracia (Morais 2002, 21).