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1.2 – O parcelamento fundiário da Boa Vista

A divisão territorial da cidade está presente desde a antiguidade e marca o limite entre o domínio público e o privado de uma localidade. É através do conhecimento e observação da história da propriedade urbana que podem ser compreendidos momentos importantes da formação e evolução de um lugar. Segundo Aldo Rossi (!998), o parcelamento fundiário pode ser avaliado pelo estudo das parcelas menores, ou lotes, uma vez que os mesmos encontram-se ligados ao contexto histórico-social do lugar, em virtude dos padrões de ocupação do solo observados, o que permite a identificação de influências histórico-sociais e dados econômicos relacionados à sociedade do local.

“[...] A forma dos lotes de uma cidade, sua formação, sua evolução, representa a longa história da propriedade urbana e a história das classes profundamente ligadas à cidade.[...]” (ROSSI, 1998, p.36).

O lote é uma porção cadastral que funciona como princípio norteador entre a edificação e o terreno, já que sua forma condicionará a forma do edifício. Por outro lado, o domínio do espaço construído dentro de uma determinada área aparece em meio ao ambiente compondo a estrutura fundiária e, junto com ela, o desenho dos quarteirões. Assim como o edifício se liga ao lote, o conjunto de parcelas que formam um determinado ambiente da cidade, por sua vez, está intrinsecamente ligado às ruas, que também associadas aos lotes, formam um todo identificador de padrões de ocupação e de organização espacial comuns a diferentes épocas da história de formação das cidades (PANERAI, 2006).

Observa-se que a relação entre a rua e o parcelamento caracteriza e estrutura o conjunto urbano-arquitetônico edificado, uma vez que os lotes se organizam tendo a rua como elemento referenciador, possibilitando que o espaço construído mantenha uma ligação com o espaço público (PANERAI, 2006). Analisada sob o enfoque das permanências, permite a renovação e adaptação às

necessidades em diferentes momentos temporais sem, contudo, alterar as características essenciais do conjunto urbano-arquitetônico.

“[...] Essas duas qualidades asseguram o funcionamento do tecido, o jogo entre permanência e mudança, sua capacidade de se renovar sem por em xeque a unidade do conjunto. A solidariedade entre os edifícios permite sua substituição gradual, preservando, mesmo assim, as disposições concernentes ao status da fachada (portanto, da entrada e do endereço) em relação à rua e os vínculos com lotes e prédios vizinhos [...]” (PANERAI, 2006, p.88).

A análise da estrutura fundiária presente em um tecido urbano pode ser observada segundo verificação do agrupamento dos lotes, homogeneidade, quantidade, morfologia e dimensões. A identificação realiza-se mediante o estudo de um grupo de lotes, em que se considera um determinado padrão existente e repetido em sua forma e dimensões. Largura e profundidade representam, assim, as extensões que proporcionam a relação existente entre a rua e o lote, e o lote e a edificação. Esse procedimento analítico possibilita a compreensão do parcelamento do setor estudado, as diferenças entre as ocupações antigas e as mais recentes revelando a trama inerente ao ambiente construído (PANERAI, 2006).

Os estudos dos autores Aldo Rossi (1998) e Philippe Panerai (2006) apontam para as reflexões acerca da averiguação das continuidades, dos registros de usos anteriores e das alterações morfológicas nas edificações, uma vez que, incorporados ao lote e evidenciando os limites entre áreas e épocas de construção, é por meio do estudo do parcelamento e das dimensões dos lotes que se torna possível ver as oposições ou diferenças entre dimensões e formas edificadas ao longo do tempo. A observação dos arranjos dos lotes oferece condições de estudo sobre a hierarquia das vias, justifica a arquitetura edificada e suas soluções internas, trazendo, também, indicações sócio-culturais de suma importância para a verificação do período de urbanização de um local.

O conhecimento das alterações da estrutura fundiária da cidade ao longo do tempo está diretamente relacionado às mudanças sociais inerentes aos grupos humanos. No que concerne aos ambientes antigos, partes significativas da cidade possuem sinais identificadores de um modo de vida, de sua forma e de sua memória, identificadas claramente pela observação da estrutura fundiária local, principalmente nos casos em que os núcleos não dispuseram de um desenho prévio, cuja estrutura resultou da agregação de edificações ao longo de ruas ou nas circunvizinhanças de edificações pré-existentes (ROSSI, 1998), como muitos casos de núcleos de cidades brasileiras em que sua formação desenvolveu-se em torno de igrejas.

Na construção da cidade brasileira, a composição estrutural, sob a qual se organizaram lotes e quarteirões, baseou-se no modelo português e sofreu alterações ao longo do tempo, principalmente a partir do século XVII, quando se observam maior regularidade do traçado e, consequentemente, da distribuição dos lotes e da morfologia dos quarteirões. Nesses casos, seguiram-se modelos uniformes tanto com relação à arquitetura quanto com relação ao espaço público edificado (TEIXEIRA, 2004).

Os núcleos urbanos brasileiros, cuja formação se deu nos três primeiros séculos de colonização, apresentam influência marcante da cultura portuguesa. No que tange ao parcelamento do solo e desenho dos quarteirões, Manuel Teixeira (2004) identifica três formas características que se desenvolveram ao longo do tempo, a saber: o quarteirão medieval, estreito e comprido com lotes que vão de um lado a outro do quarteirão, criando assim as ruas de frente e as ruas traseiras; o segundo, mais tardio, formado com lotes costas-com-costas cujas faces se voltam para os lados opostos e ruas diferentes. O terceiro tipo, não apresenta forma geométrica regular e está configurado por lotes dispostos com frentes voltadas para as ruas que contornam o conjunto, ou seja, todos os lotes limitam-se no interior das quadras – nos quintais – cujas habitações possuem entrada apenas para uma das ruas que configuram o quarteirão.

Essa maneira de ocupação influenciará irremediavelmente a tipologia edilícia, com casas térreas e sobrados que ocupam a largura do lote, edificados

lado a lado. A irregularidade dos desenhos formados estará intrinsecamente relacionada às condições topográficas do sítio sobre o qual se instalou a povoação, melhor dizendo, a morfologia resultante estará articulada ao território em que foi implantado o arruamento ou núcleo urbano, seguindo “[...] uma idéia de plano em que a regularidade está afirmada através de um desenho [...]” (TEIXEIRA, 2004, p.29), no qual que a forma resulta principalmente no momento de sua execução sobre o sítio, compreendendo as especificidades locais, os elementos pré- existentes e as hierarquias previamente estabelecidas.

“[...] O urbanismo português situou-se sempre entre estes dois pólos, fazendo a sua síntese. De um lado, o plano e a idéia de regularidade que o enforma; do outro lado, a realidade física do terreno e o confronto com essa regularidade, desenhando com ela e tirando partido dela. É deste processo, e da síntese destas diferentes atitudes, que resulta em grande parte a especificidade do urbanismo português. [...]” (TEIXEIRA, 2004, p.30).

Em consonância com o conjunto urbano edificado e os elementos singulares referenciadores dos ambientes da época, surgem as definições dos bairros e do zoneamento da área urbanizada. Essa divisão foi, na maioria das vezes, determinada pela presença de elementos naturais ou pela interrupção do arruamento para construção de uma praça, seguida do edifício religioso ou público. A localização das igrejas, distribuídas em diferentes setores, também serviu como divisora de bairros, que correspondiam a distância entre os percursos, suficiente para dividir a povoação entre duas ou mais paróquias, nela baseando-se também a organização das guardas ou tropas de Ordenança encarregadas da vigilância da cidade (REIS, 2000).

Quando se analisam as características gerais das cidades edificadas sob influência lusitana em relação ao bairro da Boa Vista, observa-se que o bairro se formou apresentando uma relação intrínseca entre o plano urbanizável e a arquitetura, ou seja, o cenário urbano se encontra definido pela relação entre o lote e a arquitetura. O parcelamento fundiário observado (Figura 40) demonstrou a existência de um padrão em dimensões para o lote, tanto em largura quanto em

profundidade. As larguras definiram os tipos que foram edificados, encontrando-se as casas edificadas coladas umas às outras, estreitas e profundas, além da possibilidade de ligação direta entre a rua e a residência, uma vez que não existe recuo separando a via da habitação e os quarteirões também conformados em virtude do lote e dos caminhos existentes.

Estudo da forma dos Quarteirões da Boa Vista.

Estudo da forma dos quarteirões da Boa Vista.

Estudo da forma dos quarteirões da Boa Vista.

Estudo da forma dos quarteirões da Boa Vista.

Figura 40: Estudo da forma dos quarteirões da Boa Vista na área delimitada para estudo com base na planta da FIDEM.

O padrão do parcelamento no bairro da Boa Vista, em que diferentes tipos são encontrados, evidenciando assim nas diferentes épocas de ocupação e crescimento da localidade. Observe-se que as áreas cuja urbanização se deu nos três primeiros séculos de crescimento do bairro, os lotes apresentam semelhanças em dimensões, homogeneidade e adensamento, portanto, o padrão de ocupação não se alterou na área em que se deu a gênese do núcleo urbano.

A comparação entre os mapas antigos e o atual referente à área estudada confirma a semelhança e manutenção dos lotes agrupados lado a lado, localizados principalmente ao longo das principais vias da área, configurando um conjunto denso e uniforme, uma vez que, na área avaliada, poucos elementos interferem na unidade morfológica do conjunto urbano. Identificaram-se os três tipos de quarteirões estudados por Manuel Teixeira (2004): o formado por um agrupamento de lotes estreitos e compridos que ocupam o quarteirão de uma rua à outra, na parte mais antiga do bairro; os quarteirões compostos por lotes do tipo costas-com- costas, também estreitos e compridos, em maior quantidade que os primeiros, e o terceiro tipo, em que o quarteirão se alarga e permite que as quatro ruas as quais o delimitam possuam grupos de casas geminadas e com frente para as ruas, nestes casos os fundos dos lotes se encontram no interior dos quarteirões.

A forma resultante está estreitamente relacionada aos limites geográficos do sítio e decorrem da existência de áreas inundáveis e dos caminhos que levavam às igrejas a partir do século XVIII. A estruturação e o arranjo urbano-arquitetônico edificado na Boa Vista encontra-se em consonância com as normas da época de urbanização do bairro em virtude das dimensões que apresentam e da maneira

orgânica29 sobre o qual se conforma ao sítio, onde os templos religiosos foram os

elementos fundamentais para a organização espacial e para a compreensão da lógica social e dos padrões reguladores daquela sociedade.

Essa análise permitiu verificar que, ao longo dos séculos XVIII e XIX a maneira de ocupar, parcelar e edificar no ambiente estudado manteve as mesmas características formais, identificadas, portanto, como continuidades, uma vez que ainda podem ser observados na Boa Vista de hoje, gerando estruturas de parcelamento distintas apenas quando nos afastamos do núcleo primitivo do bairro,

fora da área delimitada para estudo.

A permanência da mesma estrutura fundiária ao longo dos séculos permite a observação de que conservando algumas estruturas, pouca coisa muda com relação às diretrizes dos caminhos pré-existentes, da maneira de ocupar o lote, da

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Entende-se por forma orgânica de se adequar ao sítio, as conformações que não resultaram de planejamento prévio para o crescimento de uma localidade.

distribuição fundiária que continuaram inalteradas. As razões que explicam tal fenômeno estão imersas na subjetividade que só o conhecimento da cultura e da história do lugar podem identificar ou fornecer as ferramentas para seu conhecimento. Assim sendo, a significação cultural se impõe, e o conjunto urbano-

arquitetônico torna-se testemunho do passado e um documento de uma cultura

urbana para a cidade do Recife; um elo entre o que poderíamos chamar de forma tradicional da cidade brasileira e as novas propostas que se reafirmaram no princípio do século XX.