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CAPÍTULO 1 AUTISMO: CONTEMPORANEIDADE E PSICOPATOLOGIA

1.3 O pathos e a clínica psicanalítica da infância

Ao centrar-se na fisiopatologia dos transtornos mentais, a terceira versão do DSM parece ter desconsiderado que os processos cognitivos por si só não podem se constituir adequadamente, antes necessitam da subjetividade para estruturarem-se. O reposicionamento entre o normal e o patológico ancorou-se em motivações econômicas, da mais se

(Bernardino, 2010, p.116).

Interessa, então, frente a esta ordem psiquiátrica contemporânea, retomar o resgate que a psicopatologia fundamental empreende em torno do pathos que, além de sofrimento, designa também paixão e passividade. Berlinck (1998) define que a psicopatologia fundamental visa o sujeito trágico que se constitui pelo sofrimento, paixão e passividade. Com a ênfase no sujeito trágico, a psicopatologia fundamental reconhece também o trágico do sujeito.

Para tanto, o pathos pressupõe um saber particular ao sujeito, o que diverge do modelo classificatório atual. Sobre isso, Florsheim (2014) argumenta que, e nesse último é o médico (ou psicólogo, terapeuta ocupacional, etc.) quem detém um

Assim, a palavra psicopatologia refere-se etimologicamente ao discurso (logos, logia) da paixão (pathos) psíquica. Segundo Berlinck (2009), isso remete ao método clínico. Afinal, por esse método se garante o estabelecimento do endereçamento do discurso a um interlocutor. Nesse endereçamento, será possível transformar o pathos, que se mantém obscuro, em narrativa.

Então, o que aponta Florsheim (2014) é que face à visão organicista representada pelas atuais versões dos manuais diagnósticos dos transtornos mentais e as imposições da indústria farmacológica, a psicopatologia e o método clínico perdem terreno ao ter que comprovar eficácia diante desses critérios. Contudo, o autor define que assim como na psicanálise freudiana, o sintoma na psicopatologia fundamental só existe a partir do discurso do pathos, do saber do próprio sujeito, que não se reduz a uma classificação exterior.

Zepellini Júnior (2013) que

remete ao cuidado e a atenção dispensada ao doente. Ancorada na tradição clínica, a psicopatologia fundamental assinala que aquele que fala, porta um saber particular e íntimo sobre seu adoeci O ato de debruçar-se sobre alguém que padece revela a à história de seu sofrimento (p.22).

Por discordar radicalmente de um adoecimento que se faça externo ao sujeito, em que os tratamentos possíveis recorram à adequação, em uma repetição que não incorre a elaboração (Freud, 1914b/2010), é que retomo a psicopatologia fundamental. Esse resgate auxilia a articular o sofrimento e a paixão à possibilidade que habita no endereçamento do discurso ao outro. Essa interlocução não ocorre pela via da categorização e adequação, mas da transformação da experiência única do vivente em uma narrativa, esta que diz respeito, em última instância, à experiência humana.

Nesse sentido, Bernardino (2006) esboça que no autismo há um pathos inicial que precipita defesas que poderão fixar-se em uma organização autista, em uma experiência de absoluta solidão. Porém, preconiza que há também e, sobretudo, um

pathos decorrente de sua marginalização no campo das palavras e esse é do que se trata

.

Segundo a autora, para tratar esse pathos e que ele encontre espaço de expressão, é necessário que haja uma abertura para um interlocutor e, a partir da confiança entre a dupla, algo desse sofrimento inicial possa ser dito, ou mesmo, revivido. Só assim é -la, e, quiçá, elaborá-la, para poder ocupar um novo Bernardino, 2006, p.11).

Touati, Mercier e Tuil (2016) estabelecem que independente da perspectiva, o que está em causa no autismo é a dificuldade do sujeito de viver no mundo comum. A partir de um desarranjo nas relações sociais e as decorrências disso para sua família, não há dúvidas da necessidade de intervenções.

Assim, demarco tal posição no que se refere à compreensão do pathos que se circunscreve o autismo. Posição que faz frente ao que os manuais contemporâneos e declaradamente a-teóricos produzem, como a banalização diagnóstica de transtornos mentais. Nessa banalização, se aventa a possibilidade de diversas epidemias na infância, entre elas, o TEA.

Isso justifica o necessário rigor diagnóstico, na medida em que o maior conhecimento do transtorno constitui-se como via de mão dupla. Por um lado, permite intervenções a tempo para crianças que, de fato, apresentam sofrimento psíquico. Por outro, se feita de forma descriteriosa, oferece um diagnóstico para a criança que pode fixá-la em uma posição estática frente ao crivo da ciência. Segundo Telles (2012), os

diagnósticos ofertados pela palavra da autoridade científica impõem às mães novos modos de significar esse filho após receberem um rótulo, um nome, uma resposta, uma sentença

Essas velozes classificações diagnósticas expõem também as crianças ao perigo do uso medicamentoso. A noção da disorder, ou do mau funcionamento, referido tão somente às instâncias fisiológicas, são premissas que sustentam a solução medicamentosa para crianças diagnosticadas com transtorno mental. Diretamente proporcional à velocidade de classificação diagnóstica, parece ser a velocidade com que a psicofarmacologia e a psiquiatria contemporânea ampliaram seu mercado. Dessa forma, ão deixa de ser surpreendente que o que foi apresentado como avanço na capacidade de curar tenha levado a ampliar em uma progressão geométrica a quantidade

).

Kamers (2013) analisa que a perspectiva médica predominante sobre a criança se ampara, em certa medida, a um deslocamento do olhar para a infância. Antes, esse costumava guiar-se pelo campo assistencial, psicológico e pedagógico. Atualmente, tem se dirigido para o campo da intervenção médico-psiquiátrica. A autora, sobre a contemporaneidade e a escuta da família, afirma:

a práxis médico-psiquiátrica na infância prescinde completamente da escuta da narrativa dos pais sobre seus filhos, localizando o olhar médico, exclusivamente, nas sintomatologias apresentadas pela criança, cuja causa é atribuída a uma falha no real do corpo, mais precisamente a uma falha no funcionamento cerebral e seus mecanismos neuroquímicos, o que, aliás, justifica e fundamenta a medicalização (p. 155).

Assim, diante do mundo novo que uma criança representa a cada família, o nome autismo parece ser um fiador possível do que é percebido como diferente ou

estranho nessa criança. É nesse nome, seja da doença ou do remédio, que se recorre para dizer desse infante, aquele que porta o saber sobre o filho. Para tanto, na contramão desse movimento, resgatar o pathos da criança e sua família nessas condições contemporâneas é um movimento que pode fazer frente a isso que está instituído.

A comunhão entre a criança e sua família, situada em tempos de garantia de direitos, nos lança para a perspectiva política. Se os diagnósticos aumentam, pressionados pelos manuais psiquiátricos, o campo político também nos interessa, na medida em que se constitui como lócus de batalhas por benefícios assistenciais e, mais recentemente, por certo repúdio à psicanálise. Empreender a escuta em torno do pathos convoca que o discurso das famílias também seja escutado nessa esfera.