• Nenhum resultado encontrado

4. O PARADIGMA DA MODERNIDADE E

4.1. O período do capitalismo liberal

No período do capitalismo liberal, afirma Santos, começaram a se revelar as contradições do paradigma da modernidade, contradições entre ideais como solidariedade e identidade, justiça e autonomia, igualdade e liberdade, evidenciando tanto os excessos da modernidade, como o déficit no cumprimento de suas promessas. Contudo, a idéia da irreversibilidade do déficit no cumprimento das promessas ainda era rejeitada, embora fosse possível identificá-lo claramente em cada um dos princípios e lógicas de racionalidade constitutivos dos pilares da regulação e da emancipação.

No pilar da regulação entrou em colapso a idéia de desenvolvimento harmonioso entre os princípios do Estado, do mercado e da comunidade. Enquanto o princípio do mercado desenvolvia-se extraordinariamente, ocorria uma atrofia do

princípio da comunidade e uma ambigüidade no desenvolvimento do princípio do Estado, que se estenderia pelos dois períodos subseqüentes.

O desenvolvimento do mercado está patente, por exemplo, no surto vertiginoso da industrialização, na crescente importância das cidades comerciais, na primeira expansão das novas cidades industriais. E está ainda patente na conversão complexa filosófica política liberal num princípio unidimensional, e mesmo assim contraditório, mas politicamente eficaz e afeito a grande divulgação – o princípio do laissez faire. Por outro lado, a comunidade, que era em Rousseau uma comunidade concreta de cidadãos tal como a soberania era efectivamente do povo, reduziu-se a um composto de dois elementos abstractos: a sociedade civil, concebida como agregação competitiva de interesses particulares, suporte da esfera pública, e o indivíduo, formalmente livre e igual, suporte da esfera privada e elemento constitutivo básico da sociedade civil. 58

No pilar da emancipação evidenciaram-se as tensões no desenvolvimento das três lógicas de racionalidade, tornando-se cada vez mais difícil a articulação entre elas e sua interpenetração na vida prática.

No domínio da racionalidade cognitivo-instrumental, estes processos traduzem-se no desenvolvimento espetacular da ciência, na conversão gradual desta em força produtiva e no conseqüente reforço da sua vinculação ao mercado. No domínio da racionalidade moral-prática, os processos de autonomização e de especialização manifestam-se sobretudo na elaboração e consolidação da microética liberal – a responsabilidade moral referida exclusivamente ao indivíduo – e no formalismo jurídico levado ao extremo pela Pandektenschule alemã e transformado em política jurídica hegemônica através do movimento de codificação de que é expressão mais lídima o code civil napoleônico de 1804. Finalmente, no domínio da racionalidade estético-expressiva, a autonomização e a especialização traduzem-se no crescente elitismo da alta cultura (a separação da arte e da vida) legitimado socialmente pela sua associação à idéia de “cultura nacional” então promovida pelo estado liberal. 59

Nesse primeiro período analisado por Santos, marcado pela minimização por parte do Estado constitucional do século XIX dos ideais éticos e das promessas políticas para satisfazer as necessidades regulatórias do capitalismo liberal, o direito, separado dos princípios éticos, tornou-se um instrumento da construção institucional e da regulação do mercado. Com o desenvolvimento do capitalismo, a

58

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade, p. 81.

59

tensão entre regulação e emancipação explodiu, provocando um caos que deu ao Estado a justificativa para impor um determinado modo de regulação que transformou em utopia as pretensões emancipatórias do paradigma da modernidade.

A emancipação foi deslegitimada tanto no direito e na política como na ciência e na tecnologia de forma quase que simultânea, levando ao “caos sócio-político” e ao “caos epistêmico”, interligados pela filosofia positivista, que gradualmente penetrava as transformações político-jurídicas e epistemológicas, acentuando-as. Para Santos, o século XIX foi o século do positivismo no direito e na ciência.

O aparecimento do positivismo na epistemologia da ciência moderna e o do positivismo jurídico no direito e na dogmática jurídica podem considerar-se, em ambos os casos, construções ideológicas destinadas a reduzir o progresso societal ao desenvolvimento capitalista, bem como a imunizar a racionalidade contra a contaminação de qualquer irracionalidade não capitalista, quer ela fosse Deus, a religião ou a tradição, a metafísica ou a ética, ou ainda as utopias ou os ideais emancipatórios. No mesmo processo, as irracionalidades do capitalismo passam a poder coexistir e até a conviver com a racionalidade moderna, desde que se apresentem como regularidades (jurídicas ou científicas) empíricas. [...] Graças à ordem positivista, a natureza pode tornar-se previsível e certa, de forma a poder ser controlada, enquanto a sociedade será controlada para que possa tornar-se previsível e certa. Isto explica a diferença, mas também a simbiose, entre as leis científicas e as leis positivas. A ciência moderna e o direito moderno são as duas faces do conhecimento-regulação. 60

Segundo Santos, o direito moderno que se desenvolveu no Ocidente no século XIX tem como características principais o cientificismo e o estatismo, que de certa forma correspondem à preponderância dos princípios do Estado e do mercado em detrimento do princípio da comunidade. Transformado em instrumento do Estado, o direito foi reduzido ao Estado da mesma forma que o Estado foi reduzido ao direito, porém em processos assimétricos, ou seja, ao contrário do que aconteceu com o direito, o Estado não se converteu em instrumento do direito. O que ocorreu, explica Santos, foi a perda de poder e autonomia por parte do direito, uma vez que este os concedeu ao Estado.

60

Dentro do Estado, porém o direito tornou-se autônomo e politizado e na medida em que foi se tornando estatal, foi se tornando científico e finalmente transformado em um eficaz instrumento do Estado. Santos conclui que a transformação do direito em um direito científico e estatal o converteu em uma “utopia automática de regulação social”, idêntica a “utopia automática da tecnologia” criada pela ciência moderna, o que significa dizer que, “embora a modernidade considerasse o direito um princípio secundário (e talvez provisório) de pacificação social relativamente à ciência, uma vez submetido ao Estado capitalista o direito acabou por se transformar num artefacto científico de primeira ordem”. 61

Documentos relacionados