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O PERCURSO DE LACAN: DE ESPINOSA A LÉVI-STRAUSS

Até a redação de sua tese, em 1932243, a filosofia de Espinosa, cuja Ética o fascinara já

aos quatorze anos de idade244, e as fenomenologias de Husserl e Jaspers, através de sua recepção

pela psiquiatria, constituíam suas principais referências filosóficas. Como alternativa ao cartesianismo, ao neokantismo e ao bergsonismo, representados no conservadorismo filosófico francês da década de 30, a vanguarda materialista, sob o signo do surrealismo e do comunismo, voltava-se às leituras de Hegel, Marx e Freud, aos quais se juntava a influência das leituras de Nietzsche, Husserl e do impacto de Heidegger em Ser e tempo (1927). É no contexto deste materialismo que Lacan desloca-se de sua teoria espinosista inicial da personalidade, e da fenomenologia presente na psiquiatria da época, para voltar-se mais intensamente para leituras alternativas do pensamento de Husserl e para o materialismo hegeliano-marxista, que o levará ao estudo da Fenomenologia do espírito e do pensamento de Heidegger pelo viés das leituras de Kojève e de Koyré.245 Kojève fora instigado para o estudo de Hegel por Alexandre Koyré,

nos anos 1925-26, em Berlim. Koyré apresentara no congresso da associação hegeliana, em

243 LACAN, Jacques. (1932) De la psychose paranoïaque dans ses rapports avec la personnalité. Paris:

Éditions du Seuil, 1975. Disponível em português: LACAN, Jacques. (1932) Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade; seguido de “Primeiros escritos sobre a paranoia”. Tradução Aluisio Menezes, Marco Antônio Coutinho Jorge, Potiguara Mendes da Silveira Jr. – 2ª ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.

244 ROUDINESCO, Elisabeth. (1993) Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento.

Tradução Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 27.

245 ROUDINESCO, Elisabeth. (1993) Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento.

1930, seu texto Rapport sur l'état des études hégéliennes em France, ao qual seguiram-se, em 1931, o artigo Note sur la langue et la terminologie hégélienne e, em 1934, Hegel à Iéna.246 A

partir de outubro de 1933, Alexandre Kojève, aluno do seminário de Koyré sobre a filosofia religiosa de Hegel, na Escola Prática de Estudos Superiores, é indicado pelo mestre para substitui-lo no momento em que necessita afastar-se da função.247 Na interpretação de

Roudinesco, o artigo de Lacan dedicado ao crime das irmãs Papin, publicado ao final de 1933 na revista surrealista Le minotaure248, já mostra, no uso de novas expressões que não faziam

parte de seu vocabulário até a redação da sua tese em 1932, a presença, no pensamento de Lacan, da sutil inflexão em direção ao vocabulário hegeliano-marxista derivado da recepção hegeliana de Koyré e Kojéve249.

Kojève apresenta seu seminário a uma plateia fascinada, na qual, para citar apenas alguns, encontram-se também André Breton, Alexandre Koyré, Georges Bataille e Merleau- Ponty. Ainda segundo Roudinesco, assim como Kojève, na sua leitura antropológica e marxista da Fenomenologia do Espírito, faz Hegel dizer o que não disse, Lacan encontrará também a oportunidade de fazer o texto freudiano dizer o que não disse ao dotá-lo de um sistema filosófico no qual a subjetividade escapa à psicologia do ego. Segundo ela, os ensinos de Kojève e de Lacan resultam em modos de implantação do hegelianismo e do freudismo que têm em comum promover um retorno “iniciático” ao texto.250 Lacan integrará ao freudismo os temas hegelianos

lidos pela ótica de Kojève, como, por exemplo, os temas do desejo e do reconhecimento; a ideia do desejo como desejo de reconhecimento e como desejo do desejo do outro. A recepção de Heidegger neste momento era também atravessada pela leitura de Kojéve, que não estava “condenado” apenas a ler Marx em Hegel como também a ler Hegel em Heidegger.251

246 JARCZYK, Gwendoline & LABARRIÈRE, Pierre-Jean. Cent cinquante années de “réception” hégélienne en

France. In: Genèses, Volume 2, Numéro 1, déc. 1990. A la découverte du fait social. pp. 109-130. (p. 118)

247 ROUDINESCO, Elisabeth. (1993) Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento.

Tradução Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 114.

248 LACAN, Jacques. (1933) Motifs du crime paranoïaque: le crime des soeurs Pappin. Le minotaure, n. 3-4,

1933-1934, p. 25-28. Disponível em português: LACAN, Jacques. (1933) Motivos do crime paranoico: o crime das irmãs Papin. In: LACAN, Jacques. (1932) Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade; seguido de “Primeiros escritos sobre a paranoia”. Tradução Aluisio Menezes, Marco Antônio Coutinho Jorge, Potiguara Mendes da Silveira Jr. – 2ª ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. p. 401.

249 ROUDINESCO, Elisabeth. (1993) Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento.

Tradução Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 79 e 449, na nota ao final da página. Cf. também ROUDINESCO, Elisabeth. (1986) História da psicanálise na França: a batalha dos cem anos. 1925- 1985. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. v. 2. p. 141-6.

250 ROUDINESCO, Elisabeth. (1986) História da psicanálise na França: a batalha dos cem anos. 1925-1985.

Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. v. 2. p. 155-6.

251 ROUDINESCO, Elisabeth. (1986) História da psicanálise na França: a batalha dos cem anos. 1925-1985.

Além de Kojève, será também na companhia de Alexandre Koyré, Henry Corbin e Georges Bataille que Lacan abrirá seu horizonte em direção não só ao pensamento de Hegel, como também de Husserl, Nietzsche e Heidegger. O pensamento de Husserl penetrou na França a partir dos anos 20 e ganhou especial impulso a partir de fevereiro de 1929, quando ele apresentou na Sociedade Francesa de Filosofia suas Meditações cartesianas. Suas ideias chegavam no momento em que se disseminava também a leitura de Ser e tempo, publicado em alemão em 1927. O impacto destas obras resultou, por um lado, no desenvolvimento das filosofias da experiência e do sujeito de Sartre e Merleau-Ponty; por outro, no desenvolvimento de uma filosofia do saber e da racionalidade, conforme fizeram Alexandre Koyré, Jean Cavaillès e Georges Canguilhem.252 A partir de 1933, Lacan participava das reuniões do grupo

da revista Recherches Philosophiques, fundada em 1931 por Alexandre Koyré e Henry Corbin, das quais participavam também Georges Bataille, Georges Dumézil e Emmanuel Levinas, entre tantos outros.253

Assinalemos, assim, que da apresentação da sua tese, em 1932, até sua primeira apresentação da ideia do estágio do espelho, em 1936, Lacan agregara ao pensamento freudiano elementos oriundos de suas leituras dos “três Hs”, Hegel, Husserl e Heidegger, lidos pelo viés da recepção destes autores na Paris dos anos 30. É importante observar também que outra fonte importante das concepções lacanianas até o final dos anos 30, como aparecem, por exemplo, no artigo de 1938, sobre Os complexos familiares254, são suas leituras da antropologia francesa de

Durkheim e Mauss, bem como dos trabalhos dos grandes etnólogos como Malinowski e Margareth Mead.255 Deste texto de 1938 até o “Discurso de Roma”256, de 1953, o pensamento

antropológico de Lacan terá transitado da antropologia clássica francesa para a antropologia de Claude Lévi-Strauss. Podemos observar já no texto de 1938 que Lacan adota uma antropologia diferente da antropologia freudiana. Trata-se de uma antropologia durkheimiana da família, onde o estado do grupo familiar e o valor social que aí encontra seu chefe, o “pai de família”, determinam os sintomas da maturação subjetiva. O enfraquecimento social do papel do pai levará à estagnação do desenvolvimento libidinal em um nível narcisista. Ao invés da ideia do

252 ROUDINESCO, Elisabeth. (1993) Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento.

Tradução Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 101-5.

253 ROUDINESCO, Elisabeth. (1993) Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento.

Tradução Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 111.

254 LACAN, Jacques. (1938) Os complexos familiares na formação do indivíduo: ensaio de análise de uma função

em psicologia. Tradução Marco Antônio Coutinho Jorge e Potiguara Mendes da Silveira Júnior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987.

255 ZAFIROPOULOS, Markos. Lacan et les sciences sociales: le déclin du père (1938-1953). Paris:UF, 2001. p.

9.

256 Esta expressão refere abreviadamente o texto: LACAN, Jacques. (1953) Função e campo da fala e da linguagem

desenvolvimento do Complexo de Édipo de uma maneira universal, como proposto por Freud, Lacan enfatizará o contexto social do declínio do pai nas observações feitas por Freud. Levando em conta as ideias antropológicas mais recentes, adotará a concepção da conformação da patologia às “condições sociais do edipismo”, conforme se pode ver também no texto Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia257, de 1950.258 Na mesma linha

de pensamento, François Dosse observa que a transição de Lacan para o pensamento estruturalista pode ser observada também na publicação do artigo sobre o estádio do espelho em 1949259. Se em 1936, data da primeira apresentação do trabalho, o estádio do espelho

lacaniano é tributário do sentido genético do termo, como encontrado em Henri Wallon, no artigo de 1949 sua leitura já é mais estruturalista do que genética. O estádio do espelho deixou de ser pensado como momento de um processo genético, como em Wallon, para ser pensado agora sob a dupla influência da linguística estrutural de Saussure, que Lacan toma a partir de Lévi-Strauss, e dos temas heideggerianos que agora tomam o lugar da dialética hegeliana no pensamento de Lacan. Segundo Dosse, a partir deste texto de 1949 Lacan pertence ao paradigma estruturalista antes mesmo de se referir explicitamente a Saussure em 1953.260

Lacan conhecera pessoalmente Lévi-Strauss em 1949261 e Heidegger em 1950262. Estas

relações pessoais se refletem no lançamento do primeiro número da revista La psychanalyse, em 1956, organizado por Lacan, que tem como tema a fala e a linguagem, e que apresenta, além do “Discurso de Roma”, há pouco referido, a tradução por Lacan do texto Logos, de 1951, de Heidegger. O “Discurso de Roma” já mostra tanto a influência do pensamento de Heidegger quanto do estruturalismo de Lévi-Strauss. A psicanálise lacaniana se mostra já identificada à onda estruturalista. O segundo número de La psychanalyse, de 1957, conterá a primeira publicação do seminário sobre a carta roubada, sobre o qual se dará o mais famoso embate público entre Lacan e Derrida.

257 LACAN, Jacques. (1950) Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia. In: Escritos. Tradução

Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

258 ZAFIROPOULOS, Markos. Du père mort au déclin du père de famille. Paris: PUF, 2001. p. 64-7.

259 LACAN, Jacques. (1949) O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na

experiência psicanalítica. In: Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

260 DOSSE, François. (1991) História do estruturalismo, v. I: o campo do signo, 1945-1966. Tradução Álvaro

Cabral. São Paulo: Ensaio; Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1993. p. 118-20.

261 ROUDINESCO, Elisabeth. (1993) Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento.

Tradução Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 219.

262 ROUDINESCO, Elisabeth. (1986) História da psicanálise na França: a batalha dos cem anos. 1925-1985.