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O Perdão do Ofendido na Cultura Jurídica do Império do Brasil (1824 – 1889)

Arley Fernandes Teixeira

O art. 67 do Código Criminal do Império, datado de 1830, prevê que o perdão pelo ofendido ao réu de crimes públicos ou particulares com acusação oficial não o exime das penas impostas. O objetivo desse presente estudo é compreender e clarificar as discussões dos juristas do século XIX no Brasil acerca desse dispositivo, tendo em vista a crescente tendência do monopólio pelo setor público no trato do direito penal, intensificado, sobretudo nas formulações teóricas iluministas acerca do fundamento do direito de punir no século XVIII, nas figuras de Beccaria e Bentham. O primeiro, inclusive, critica abertamente o perdão do ofendido, desejando exclui-lo do processo penal.

É uma lógica atraente, sem dúvidas, principalmente quando se tem em mente que uma parcela considerável das construções penais do século XIX são derivadas do pensamento iluminista, porém o Codigo Criminal de 1830 não adota essa postura, já que ao impossibilitar a exclusão da punição nos crimes públicos e particulares com acusação oficial, aceita-a nos particulares sem acusação oficial, também chamados de puramente particulares. Resta agora diferenciar esses dois tipos de delitos privados.

Pois bem, para isso precisamos entender como se inicia uma ação penal nesse período. Pimenta Bueno (1857) afirma que há três instrumentos para ingressar-se com uma ação penal, a queixa, a denúncia e o procedimento ex officio pelo juiz. Diferente do que aconteceria a partir do Código Penal de 1890, a queixa era a regra nos crimes particulares na época imperial, ou seja, em todos esses delitos era admita a queixa, porém, em determinadas exceções previstas na legislação o processo terá início por denúncia do Ministério Público ou qualquer do povo. Logo, os crimes puramente particulares, nos quais eram admitidos o perdão são aqueles em que o processo penal é iniciado somente por queixa e, portanto, não se enquadram nas exceções previstas.

Sobre essas exceções, Thomaz Alves Junior (1861) vai enxergar quatro situações em que o promotor público pode apresentar denúncia: 1) conforme o disposto no art. 37 do Código de Processo Criminal de 1832; 2) em caso de flagrante delito; 3) em todos os crimes inafiançáveis; 4) quando o ofendido for pessoa miserável.

Esse último ponto é o que suscita maiores discussões. O art. 73 do Codigo de Processo Criminal declara que em caso de ofendido miserável, em qualquer crime o promotor público

deve ou qualquer do povo pode intentar queixa. Primeiro, é preciso clarificar o conceito de miserável na legislação. Para isso há o Aviso de 30 de agosto de 1865, que afirma que a miserabilidade a que se refere o Código é acerca daquela vítima que, por circunstâncias próprias, não pode perseguir o ofensor.

A grande discussão acerca desse tema é referente à aceitação ou não do perdão do ofendido miserável, antes ou depois da sentença, uma vez que já houve acusação por parte do promotor. Aqui, visualizamos uma divisão por parte da doutrina e da jurisprudência. Azevedo (1852) defende a tese de que a ofensa a um membro frágil da sociedade, reverbera em todo o corpo social e que, nesse sentido, em respeito a um sentimento de justiça e proteção, não poderia ser aceito o perdão do ofendido miserável. Prossegue ainda, afirmando que as ofensas feitas à sociedade não podem ficar impunes ao arbítrio de um de seus membros, mesmo que somente ele fosse o paciente individual do delito, completando que apenas ao Poder Moderador é atribuída a capacidade de perdoar livremente.

Liberato Barroso (1866), por outro lado, enxerga que a miserabilidade do ofendido não altera a natureza do crime, e que isso é claramente o propósito do legislador ao afirmar que o promotor público deve ou qualquer do povo pode intentar queixar, não denúncia. Por essa linha de raciocínio, o autor chega à conclusão de que o ofendido tem o direito de desistir da ação, pelo perdão por exemplo, em respeito ao caráter puramente privado dos delitos. Ademais, afirma que um entendimento diverso abriria espaço para recorrentes abusos de acusação, afinal qualquer um do povo poderia intentar a ação, incentivando, de acordo com o autor, a pura vingança privada por terceiros.

Passando à análise em abstrato de todos os crimes particulares previstos no Código Criminal de 1830, chegamos à conclusão de que o perdão do ofendido é estendido a quarenta e quatro dos sessenta e seis crimes particulares (parte terceira do Código) previstos na legislação, sendo que nesses sessenta e seis estão inclusas diferentes qualificações, por assim dizer, de um mesmo delito; por exemplo, no crime de ferimentos leves, os arts. 201, 202, 203, 205 e 206 foram classificados como crimes diferentes, uma vez que dependendo da pena prevista para cada fato o perdão poderia ser aceito ou não.

Além disso, um caso especial é o crime de estupro e suas diferentes qualificações (arts. 219 a 224), no qual, por meio da análise unicamente pelos quatro requisitos ditos acima chegaríamos à conclusão de que tal crime não poderia ser enquadrado entre os que é aceito o perdão, porém, como previsto no art. 225, o casamento entre o réu e o ofendido exime o primeiro das penas impostas. Ou seja, por mais que não haja referência expressa ao perdão, o casamento é entendido também como um meio tácito de perdoar o crime de estupro, no qual o

ofendido não deseja mais a penalização do ofensor e isso é respeitado pela Justiça Pública, portanto, por mais que não há, de fato, a utilização do instrumento do perdão do ofendido propriamente dito, a opção por colocá-lo no rol dos crimes que possam ser perdoados pela vítima parece-nos razoável. Nesse sentido, o crime de rapto (arts. 226 e 227) segue a mesma lógica, já que também nesse caso há previsão expressa de que o casamento impede a imposição de penas ao condenado.

Como parâmetro de comparação, o Codigo Penal Brazileiro de 1890 restringe a queixa e, portanto, o perdão do ofendido (como dito anteriormente, a denúncia torna-se regra nesse código, mesmo nos crimes particulares) ao furto e dano (em caso de prisão em flagrante a denúncia pode ser intentada pelo promotor), bem como aos crimes de violência carnal, rapto, adultério, parto suposto, calúnia e injúria, que também admitem a possibilidade de denúncia em caso de ofendido miserável, abuso de pátrio poder ou de autoridade de tutor, curador ou preceptor e, especificamente no caso de violência carnal, quando sobrevier morte, perigo de vida ou alteração grave da saúde do ofendido. Ou seja, há nesse Código uma maior preocupação com o interesse público e proteção social e, consequentemente, maior exclusão da vítima do processo penal.

Referência Bibliográficas

ALVES JUNIOR, Thomaz. Anotações teóricas e práticas ao Código Criminal. Rio de Janeiro: Francisco Luiz Pinto & C. editores, 1864.

AZEVEDO, Manoel Mendes da Cunha. Observações sobre vários artigos do código de processo criminal e outros da lei de 3 de dezembro de 1841. Pernambuco: Typographia da Viuva Roma, 1852.

BARROSO, José Liberato. Questões práticas de direito criminal. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1866.

PIMENTA BUENO, José Antônio. Apontamentos sobre o processo criminal. Rio de Janeiro: Empreza Nacional do Diario, 1857.

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