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O perfil do poder judiciário nas sociedades contempo­

Parte I: A administração pública e o poder judiciário

Capítulo 5: O perfil do poder judiciário nas sociedades contempo­

especial no Brasil

5.1. O fenômeno contemporâneo do vanguardismo social e político da magistratura

Nas últimas décadas, as instituições judiciárias têm assumido uma posição destacada, seja perante a Sociedade, seja nas suas relações com os outros poderes do Estado, tudo em flagrante contradição com o perfil clássico da magistratura, como órgão distanciado da Sociedade e inferiorizado perante os demais órgãos estatais. Este fenómeno recente tem sido rotulado pelos sociólogos do Direito como “protagonismo social e político dos tribunais”, e pode ser observado com mais nitidez nos países mais desenvolvidos do sistema mundial (SANTOS et al., 1996, p. 19), embora também nos países menos desenvolvidos já comece a esboçar-se.

De um modo esquemático, pode-se afirmar que na fase do Estado liberal o poder legislativo era hegemônico. Depois, na fase do Estado social intervencionista, a supremacia política e social se deslocou para o poder executivo. Agora, em que nos países mais desenvolvidos o Estado social intervencionista está em crise, e nos países menos desenvolvidos ele ainda não conseguiu implantar-se, o Judiciário foi colocado na condição de destinatário das demandas e expectativas sociais, seja no sentido da manutenção dos direitos já

conquistados, seja no sentido da implementação de direitos apenas programados.

Uma das causas do fenômeno do vanguardismo judicial está na falência do sistema representativo baseado no sufrágio universal. As pessoas têm amplo direito de votar, inclusive analfabetos, adolescentes de dezesseis anos e outras parcelas da população antes excluídas (caso do Brasil), mas os rumos da política são determinados por outras forças42. Assim, enquanto os setores sociais que têm influência política conseguem fazer com que seus interesses particulares, sob a capa do bem comum ou da vontade geral, sejam tutelados pelos órgãos eletivos (Legislativo e Executivo), permeáveis que são à manipulação e à barganha, aos setores sem representatividade só cabe voltar-se para o Judiciário, levando-lhe demandas que são tipicamente políticas, como aquelas que dizem respeito à implementação de políticas públicas e as que buscam providências de justiça distributiva. A magistratura acaba cumprindo, por este modo, um papel, que por tradição pertence ao Legislativo e ao Executivo, de árbitro dos segmentos sociais em conflito.

5.2. A “judicialização da política”

O fenômeno do vanguardismo social e político da magistratura é também apresentado como “judicialização da política”43. Consistiria, em síntese, na tendência de atribuir-se ao Judiciário decisões que, nos termos da doutrina clássica da separação dos poderes, incumbiriam ao Executivo e ao Legislativo (FERREIRA FILHO, 1996, p.

189).

12 - Como diz CH OM SKY (1997, p. 35), “O povo pode ter suas opiniões; pode até mesmo votar, mas a orientação politica continua a mesma, determinada por outras forças.” D a m esm a opinião é COMPARATO (1985, p. 398): “os representantes do povo nada decidem e os que decidem não têm representatividade.”

43 - A expressão “’judicialização da política” deve-se, ao que se pôde apurar, a LOEWENSTEIN (1976, p. 321).

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A “judicialização da política” foi percebida mais claramente nos Estados Unidos, a partir do meado da década de cinqüenta, quando a Suprema Corte, dilatando as fronteiras da judicial

review, até então limitada ao âmbito da mera declaração de

inconstitucionalidade, passou a traçar condutas positivas para o legislador e para a administração pública. A mudança de paradigma teria ocorrido simbolicamente com o caso Brown v. Board of Education, em que a Suprema Corte impôs orientação política de dessegregação nas escolas. Aí, o Tribunal agiu como “legislador positivo”, e não apenas como “legislador negativo.”44

A nova postura se verifica em outros sistemas jurídicos e sob roupagens diversas. Assim, a técnica da “interpretação conforme a Constituição” , construída pela Corte Constitucional alemã, vai além da alternativa soma-zero (constitucionalidade / inconstitucionalidade), valendo-se da fórmula mini-max45 para obrigar os destinatários da Constituição, em especial o Legislativo e o Executivo, a uma determinada interpretação constitucional. Também a técnica da inconstitucionalidade por omissão alemã, acolhida em vários outros países, entre os quais Portugal e Brasil, ainda que não leve o Tribunal a substituir-se ao legislador, equivale a uma censura política, impensável segundo o esquema clássico da divisão de poderes, em que o poder judicial tinha função politicamente subalterna.

No Brasil, a tendência de judicialização da política já se esboçou, antes da Constituição de 1988, por meio de decisões proferidas em ações populares e em ações civis públicas. Estas duas

- Segundo Kelsen, a anulação de um a lei é um a função legislativa, mais especificamente legislativa-negativa, de modo que um tribunal que é competente para abolir leis, de modo individual ou geral, funciona como um “legislador negativo” (KELSEN, 1990, p. 261).

45 - SANTOS et al. (1996, p.48) fazem a distinção entre decisões mini-max e decisões som a- zero, nestes termos: “As primeiras procuram maximizar o compromisso entre as pretensões opostas de modo a que a distância entre quem ganh a e quem perde seja mínima e, se possível, nula. As decisões soma-zero ou decisões de adjudicação são aquelas que maximizam a distinção e a distância entre a pretensão acolhida e a pretensão rejeitada e, portanto, entre quem ganh a e quem perde.”

técnicas processuais permitiram uma interferência judicial nunca antes vista, em termos de extensão e profundidade.

É com a Constituição de 1988 que o Judiciário brasileiro passa verdadeiramente a roubar a cena aos outros poderes do Estado. Isto se deveu menos a mudanças estruturais do próprio Judiciário do que à atuação de novos atores, ou melhor, de novos papéis conferidos a velhos atores. O Ministério Público, instituição antes apagada, passou a atuar ativamente nos mais diversos setores, como defesa do meio ambiente, do consumidor, das minorias, dos direitos sociais e do patrimônio público, tanto mais que aliviado do tradicional ônus de, paralelamente com suas funções típicas, exercer a advocacia do Estado. Os partidos políticos passaram, do mesmo modo, a agir politicamente no âmbito judiciário, por meio de ações diretas de inconstitucionalidade e mandados de segurança coletivos. Também os movimentos sociais organizados como associações de classe ingressaram fortemente no âmbito judiciário com ações diretas de inconstitucionalidade e demandas coletivas, dando vazão a impulsos de participação durante muito tempo reprimidos.

A tônica do paradigma da “judicialização da política” consiste em obrigar a administração pública a atuar. Cotidianamente, a imprensa noticia decisões judiciais que determinam ao Poder Público adotar medidas práticas de defesa do meio ambiente, de proteção dos direitos sociais, de tutela do patrimônio público. Ao fazê-lo, o Judiciário sai de sua tradicional postura de “administrador negativo”, pela qual se limitava a anular atos ilegais da Administração, para investir-se na condição de “administrador positivo”, obrigando-a a atuar, e, mais que isto, em determinado sentido, não raro se substituindo mesmo ao administrador público.

Muitas são as críticas à nova postura do Judiciário. Na sua maioria, utilizam o argumento do despreparo dos juizes para

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fazerem as vezes de administrador público. Estas críticas, embora tenham um fundo de verdade, não demonstram que os efeitos práticos da nova atuação judicial tenham sido desastrosos. Pelo contrário, a “judicialização da política” tem cumprido o papel de válvula de segurança do sistema político, servindo para desbloqueá-lo. A possibilidade de recurso ao Judiciário em muitos casos evita que um conflito social se transforme em uma guerra civil. Por outro lado, se o processo judicial tradicionalmente é utilizado para produzir decisões de soma-zero (vencedor/perdedor), revela grande aptidão, em decorrência das técnicas do contraditório e da direção judicial voltada à busca da melhor solução, para converter-se em produtor de decisões do tipo mini-max, em que não haja perdedores nem vencedores.

5.3. O Judiciário como promotor de justiça comutativa

A função clássica do Judiciário, tal como definida por Montesquieu, é promover a justiça comutativa, que visa a repor a ordem nas relações jurídicas entre os indivíduos46. Basicamente, o juiz deve julgar as controvérsias entre os particulares mediante a aplicação do direito civil ou do direito penal, conforme o caso. A função do juiz é de certo modo paralela à do policial: manter a ordem.

Por este esquema, dominante no período do Estado liberal, a justiça distributiva, que visa em termos gerais à repartição das riquezas sociais, fica basicamente por conta das leis do mercado,

46 - Deve-se a Aristóteles a distinção entre justiça distributiva e justiça comutativa, nestes termos: “D a justiça particular e do que é justo no sentido correspondente, (A) um a espécie é a que se manifesta nas distribuições de honras, de dinheiro ou das outras coisas que são divididas entre aqueles que têm parte na constituição (pois ai é possível receber um quinhão igual ou desigual ao de um outro); e (b) outra espécie é aquela que desempenha um papel corretivo nas transações entre indivíduos. Desta última há du as divisões: dentre as transações, (1) algum as são voluntárias, e (2) outras são involuntárias — voluntárias, por exemplo, as compras e vendas, os empréstimos para consumo, as arras, o empréstimo para uso, os depósitos, as locações (todos estes são chamados voluntários porque a origem das transações é voluntária); ao passo que das involuntárias, (a) algum as são clandestinas, como o furto, o adultério, o envenenamento, o lenocínio, o engodo a fim de escravizar, o falso testemunho, e (b) outras são violentas, como a agressão, o seqüestro, o homicídio, o roubo a mão arm ada, a mutilação, as invectivas e os insultos” ( ARISTÓTELES, 1979, p. 124).

com intervenções pontuais do poder legislativo ou mesmo do poder executivo. Assim, enquanto a repartição da justiça comutativa é questão de direito, de competência do Judiciário, a justiça distributiva é questão estritamente política, da alçada do Legislativo e do Executivo (LOPES, 1994, p. 25). O Judiciário arbitra corretivamente a solução dos conflitos individuais, depois de ocorridos, ao passo que as tensões e os conflitos latentes entre os setores contrapostos da Sociedade, com vistas à obtenção de maiores vantagens na partilha dos bens sociais, são arbitrados distributivamente pelo Legislativo.

Em todo o período do Estado liberal, que nos países avançados cobre o século XIX e vai até a primeira guerra mundial, a magistratura não extrapolou os lindes da justiça comutativa. Isto se deveu principalmente ao dogma da legalidade estrita, que neutraliza politicamente a função judiciária. Por ele, a orientação política que deve imperar na Sociedade é dada pelo poder legislativo, limitando-se os juizes a concretizar essa orientação. Enquanto o primeiro faz as leis, os segundos simplesmente as executam. Se a legislação não é justa ou não atende os interesses sociais, o problema não é de responsabilidade dos juizes, mas do Legislativo: aos prejudicados cabe postular ao legislador a revogação da lei injusta ou a criação de novas leis. Por outro lado, a atividade judicial é limitada por entraves de técnica processual, que só reconhecem o direito de provocar a atuação judicial aos próprios interessados, individualmente considerados47 De resto, a legitimidade da magistratura não assenta no princípio democrático, mas apenas na legalidade de sua atuação. Por isso, decidir fora dos parâmetros legais, traçados pelo Legislativo, seria conduta ilegítima.

5.4. O Judiciário como promotor de justiça distributiva

47 - Trata-se da cham ada legitimação ordinária, figura de inspiração liberal-individualista, pela qual ninguém pode pleitear em nome próprio direito alheio; só o próprio interessado pode pleitear o que entende de seu direito (Código de Processo Civil brasileiro, artigo 6o).

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Devido especificamente ao fato de que os tribunais não podem atuar senão quando provocados, o que é o penhor maior de sua imparcialidade, a tradicional postura de subalternidade política frente aos demais poderes do Estado e de distanciamento da Sociedade só começa a alterar-se a partir do momento em que a própria Sociedade, por seus setores mais atuantes, passa a provocar adequadamente a intervenção do Judiciário. Isto, porém, não ocorre ex abrupto. Primeiro, faz-se necessário que novos direitos sejam positivados, como ocorreu, por exemplo, com os direitos sociais (ou de segunda geração). Depois, que não sejam satisfatoriamente implementados pelo Legislativo, pelo Executivo ou pelos setores empresariais. Só então os titulares destes direitos passam a adquirir consciência de que é insuficiente a luta para que os direitos sejam formalmente reconhecidos; ela deve prosseguir até sua efetiva implementação. Abre-se a alternativa de buscar no Judiciário o acolhimento de pretensões que deveriam ser tratadas num âmbito mais extenso como questão política. Embora busquem a justiça comutativa, as demandas judiciais, quando multiplicadas, acabam produzindo justiça distributiva. Para tanto, nem é necessário o ajuizamento de demandas coletivas48. Basta o efeito multiplicador de milhares de demandas individuais, que leve o Judiciário a firmar jurisprudência sobre determinado assunto. Desde então, passam a ser beneficiados por efeitos “normativos colaterais” da orientação judicial mesmo aqueles que não ingressaram em juízo com qualquer demanda. Assim, muitas decisões de justiça comutativa acabam, pela lei da dialética da conversão da quantidade em qualidade49, gerando justiça distributiva50.

48 - Dem anda coletiva é aquela proposta por um substituto processual (sindicato, associação, Ministério Público etc.) em nome de coletividade indeterminada ou determinada.

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- Sobre a lei da conversão d a quantidade em qualidade, ver ENGELS (1979, p. 101-109). 50 - É o caso, no Brasil, das sú m ulas dos tribunais, as quais resultam de uniformização de jurisprudência sobre determinado assunto, e, embora não sejam formalmente vinculantes para

Por outro lado, os conflitos trabalhistas, que na época do Estado liberal eram tratados como “casos de polícia”, foram progressivamente canalizados para o Judiciário. As greves passaram, deste modo, a ser julgadas pelos tribunais. Ao mesmo tempo, as categorias profissionais, representadas pelos seus sindicatos, transferiram para o Judiciário pretensões trabalhistas contra os sindicatos patronais correspondentes, cujo conteúdo ultrapassa nitidamente o âmbito estreito da justiça comutativa.

Com a emergência de movimentos populares de vários matizes, o Judiciário foi visto como ambiente propício para discussões políticas. Tanto o Legislativo como o Executivo mostram-se de certa forma refratários a iniciar discussões com os movimentos populares, seja porque esses poderes se afirmam porta-vozes da “vontade geral da nação”, seja porque estão comprometidos com interesses mais poderosos e menos visíveis. Já a atividade dos tribunais inclui obrigatoriamente a discussão como condição do julgamento. Por meio do processo judicial, transformado em instrumento de ação política, os movimentos sociais conseguem fazer-se ouvir não só pelos juizes, mas também pelo Legislativo e o Executivo, compelidos a participar do processo na condição de réus.

5.5. Fatores desencadeantes do novo perfil do Judiciário

O novo perfil do poder judiciário, marcado pelo intervencionismo social e político, não surgiu por acaso, como um raio caído de um céu azul. Conforme observou Cappelletti, a expansão do papel do Judiciário corresponde, num sistema de checks and balances, ao anterior agigantamento dos “ramos políticos” do Estado moderno, assim como a atual dilatação do direito jurisprudencial é explicada pela anterior expansão do direito legislado (CAPPELLETTI, 1993, p. 19-20).

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De fato, se a Constituição distribui funcionalmente o poder entre vários órgãos, justamente para impedir o absolutismo de qualquer deles, é da índole de semelhante sistema que qualquer tendência de supremacia por parte de um órgão encontra a resistência ou mesmo a reação, se não dos demais, ao menos de um deles. A assertiva é comprovada com os fatos. No Brasil recente, a tendência absolutista do poder executivo, mediante a prática de sucessivas reedições de medidas provisórias com força de lei só foi possível porque o Legislativo, a quem competia apreciar estas medidas em trinta dias, inclusive para rejeitá-las, simplesmente abdicou deste mister. Bastaria ao Legislativo o simples exercício de sua função constitucional de apreciar as medidas provisórias no prazo para que o Executivo não mais as pudesse reeditar51. Em decorrência, o poder judiciário viu-se obrigado, por provocação da sociedade civil, a oferecer o contrapeso necessário à consumação do absolutismo do Executivo. Certo é que não encontrou clima propício para a reação drástica da invalidação do mecanismo de reedição de medidas provisórias não apreciadas pelo Congresso; porém, com a resistência, mais contida, de pontualmente declarar algumas dessas medidas como inconstitucionais, outras como caducas, e enfim deixar aberta a porta ao exame dos seus pressupostos constitucionais (urgência e relevância)52, pôde evitar que a tendência absolutista do Executivo se convertesse em fato consumado.

51 - A posição do Suprem o Tribunal Federal sobre o tema é de que a praxe de revogações e reedições sucessivas de m edidas provisórias não configura ofensa ao princípio da independência de poderes, por parte do Presidente da República, um a vez que se trata de prática viabilizada exclusivamente pela inércia parlamentar (Acórdão proferido na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 2 93 -D F - M edida Liminar, rei. Min. Celso de Mello, publicado na Revista Trimestral de Jurisprudência, Brasília, vol. 146, p. 707-738, dez. 1993; Despacho inicial proferido pelo Min. Sepúlveda Pertence, Presidente, na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 1.313-1-DF, publicado no Diário da Justiça d a União de 1” ago. 1995, Seção 1, p. 21624).

52 - O Supremo Tribunal Federal entende que os requisitos constitucionais de urgência e relevância das medidas provisórias estão sujeitos a controle judicial, desde que se evidenciem, claramente, improcedentes (cf. acórdão na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 1.397-1- DF, Medida Liminar, rei. Min. Carlos Velloso, publicado no Diário d a Justiça d a União de 27 jun. 1997, Seção 1; e acórdão na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 1.667-9-DF, M edida Cautelar, rei. Min. Ilmar Galvão, publicado no Diário da Justiça da União de 21 nov. 1997, Seção 1).

O novo perfil do Judiciário não se explica, contudo, somente pelo mecanismo de reações e interferências recíprocas próprias de um sistema constitucional de distribuição de poder com freios e contrapesos. Talvez mais abrangente do que esta seja a explicação de que a Sociedade sempre dirige suas demandas contra o Estado, considerado genericamente como “Poder Público” . Se não encontra receptividade no órgão estatal que seria naturalmente competente para atendê-la, vai, pelo método das aproximações sucessivas, reendereçando suas demandas aos demais órgãos, até encontrar satisfação aceitável. Foi o que aconteceu no Brasil, no início da década de sessenta, com o reconhecimento, pelo Judiciário, do direito dos concubinos à partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum, comprovada a existência de sociedade de fato53. O Legislativo, aferrado a velhos preconceitos, estava despreparado para reconhecer o direito patrimonial dos concubinos, mas o Estado não podia deixar de atender à nova demanda social, de modo que o Judiciário teve de assumir o mister.

5.6. A legitimidade do novo perfil do poder judiciário

Ao abandonar a sua antiga condição de poder subalterno, limitado a repetir as sagradas palavras do legislador, para interferir na atuação do Executivo e do Legislativo, o poder judiciário se viu alvo de críticas baseadas na sua falta de legitimidade democrática, uma vez que, diferentemente dos “poderes políticos”, seus órgãos não são eleitos pelo povo, perante o qual não têm responsabilidade. E, como o Judiciário não é um “poder político”, deveria ficar limitado a resolver conflitos privados entre os indivíduos, sem qualquer repercussão na esfera pública.

53 - Suprem o Tribunal Federal, S úm u la 380: “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a su a dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum .”

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Antes de mais nada, devem ser definidos os termos da crítica, pois não raro as divergências são mais vocabulares do que semânticas.

Se por legitimidade democrática entender-se a escolha de determinado órgão pela vontade popular, certamente o Judiciário não é legitimado democraticamente, pois os cargos de magistrados não devem ser preenchidos pelos mais populares eleitoralmente, e sim pelos mais aptos juridicamente. Se por legitimidade democrática entender-se apenas o respeito à vontade das maiorias, certamente o Judiciário não tem este tipo de legitimidade, porque não raro deve pronunciar-se contra a vontade das maiorias eventuais, impedindo que elas aniquilem os direitos das minorias. De resto, a legitimidade democrática, como conceito ligado à só vontade da maioria, não é uma virtude que possa justificar-se por si mesma, visto que os regimes totalitários amiúde estão legitimados democraticamente. Ou a legitimidade democrática convive com o respeito aos direitos fundamentais do homem ou constituirá arma perigosa nas mãos dos governantes do momento.

A legitimidade do poder judiciário não se confunde com a legitimidade dos órgãos do poderes executivo e legislativo. Conforme demonstrou Cappelletti, a legitimidade da atuação judicial reside nas