• Nenhum resultado encontrado

1.2 O Fetichismo Freudiano

1.2.1 O Pioneirismo de Alfred Binet

O primeiro estudioso a tratar do fetichismo como conceito referente ao psiquismo humano foi o psicólogo francês Alfred Binet (1857-1911) através de dois artigos publicados em 1887 denominados de Le Fétichisme Dans L'amour (O Fetichismo no Amor) 54. Na verdade, como já foi mencionado, esse conceito era notório no meio intelectual da época por já existir uma recepção disseminada dos textos antropológicos de Charles De Brosses. Desse modo, quando Binet usou o conceito de fetichismo para a psicologia referindo à manifestação de perversões sexuais, ele manteve sua acepção basilar da Antropologia já referendada de que há uma imbricação entre o progresso histórico “natural” da humanidade, a filogênese, com o desenvolvimento do indivíduo, a ontogênese.

Até no final do século XIX, os estudos antropológicos consideravam os povos “primitivos” como indivíduos regredidos pertencentes a uma etapa anterior à etapa civilizatória. De modo semelhante, as doenças psíquicas em geral, incluindo o fetichismo e outras perversões, eram vistas também como um tipo de regressão e degenerescência do processo de desenvolvimento da psique do indivíduo. De fato, houve um deslocamento de sentido do fetichismo da Antropologia, como manifestações culturais “selvagens” observadas em certas sociedades, para a Psicologia, como descrição de comportamentos regredidos acometidos nos indivíduos. Com efeito, o sentido desse deslocamento estava sempre relacionado à ideia de que na sociedade “civilizada” existiriam comportamentos “selvagens” e regredidos se manifestando em certos indivíduos.

Na Europa da época, havia ampla predominância de uma ideologia que declarava a existência de uma força finalística de evolução, conduzindo a humanidade a um aperfeiçoamento de suas habilidades intelectuais e práticas. Assim, sob a égide dessa ideologia, a constatação da existência de sociedades diferentes dos padrões europeus ocidentais, bem como de suas respectivas descrições feitas por seus cientistas, era vista como regressão às etapas inferiores da etapa civilizatória. Com isso, associar essa regressão aos indivíduos portadores de doenças mentais era bem comum pelo fato de esses indivíduos terem suas capacidades intelectuais e práticas reduzidas a uma simplicidade funcional tal como esses cientistas pensavam ser as de um indivíduo “primitivo”. No caso específico do

fetichismo, sua acepção coube de modo preciso à análise da psique de indivíduos com

comportamentos sexuais peculiares por se tratar de um termo usado para descrever modos de vida de sociedades “primitivas” 55. É como se no interior da psique de alguns indivíduos

existisse um mundo “primitivo”, onde o fetichismo e as perversões em geral fossem como sintomas de uma ruptura das forças evolutivas as quais conduziriam a humanidade ao aperfeiçoamento e à maturação individual.

Além disso, quando se usou o fetichismo como termo referente às perversões sexuais, estipulou-se um certo discurso clínico de normalização, cujos sentidos de normalidade e de perversidade estariam muito arraigados à ideologia das ciências da época. Desse modo, o discurso científico sobre o sexo se inicia submetido a uma taxonomia e a uma valoração dos modos de configuração do desejo e das práticas sexuais. Não é por acaso que o termo

fetichismo é usado junto a uma gama de conceitos de ordem taxonômica, como o sadismo, o

masoquismo, o voyeurismo, as inversões, o exibicionismo, dentre outros56.

Com isso, Binet começou a descrever o fetichismo sexual em analogia ao fetichismo religioso, afirmando que o indivíduo acometido pelo fetiche era um adorador que atribuiria poderes sobrenaturais aos objetos naturais e inanimados, com a única diferença de que no fetiche erótico ele substituía a adoração religiosa pelo apetite sexual57. Para Binet, esses comportamentos sexuais praticados por certos indivíduos se configuram em desvios da função fundamental das necessidades genitais, cuja finalidade é de reprodução da espécie. É pelo fato de ser um desvio dessa finalidade que o fetiche não seria considerado normal, pois se fixa no prazer exclusivo do órgão, tornando-se uma perversão.

Não obstante, Binet teria relativizado um pouco a acepção do fetichismo como perversão, porque observou sua presença em pessoas consideradas normais em estado de paixão. Para ele, todas as pessoas estariam de certo modo fetichizadas quando apaixonadas, com isso, ele percebeu que o que diferencia um fetiche, digamos, “sadio” de um “perverso” é o grau de intensidade e de importância dado a ele. Assim, o fetiche só se caracterizaria como perversão sexual se fosse uma experiência erótica intensa e exclusivista, sobrepujando o sexo

55No século XIX, a Antropologia era marcada pela forte presença de uma ideologia que entendia os

comportamentos dos nativos de culturas não europeias como evidências de que eles eram indivíduos “primitivos”, “selvagens”, “regredidos”, como se tivessem numa eterna infância. No entanto, no começo do século XX, essa ideologia desmorona devido às críticas de certos antropólogos que verificaram nessas culturas uma racionalidade diferenciada, e não inferior. Isso foi atestado principalmente pelos trabalhos do antropólogo Marcel Mauss (1872-1950), em 1907.

56Apesar de o termo fetichismo diferir desses outros termos clínicos sobre a psique humana por possuir uma

história conceitual já bem consolidada, como foi mencionada no presente trabalho. As origens desses outros termos são mais recentes, coincidindo com a própria origem da psicologia clínica (SAFATLE, 2010, p. 22).

57Digno de nota é que Marx teria afirmado uma ideia semelhante sobre o fetichismo da mercadoria, já

mencionada aqui: “Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas” (MARX, 2010, p. 94).

como finalidade de reprodução da espécie.

Diante disso, Binet postulou três características gerais que tipificam o fetichismo como perversão: [1] a exageração; [2] a abstração; e [3] a generalização. A exageração seria a ênfase dada pelo fetichista às partes secundárias sexuais em detrimento das totalidades sexual, moral e física da pessoa amada. Isso quer dizer que a pessoa acometida pelo fetichismo não escolheria o objeto de desejo mediante suas atribuições físicas e de caracteres, isto é, a pessoa “desejada” não seria vista em sua totalidade e em sua especificidade, como pessoa dotada de virtudes, de defeitos e de atrativos físicos mais totais, pelo fetichista. No que concerne à

abstração, ela caracterizaria como a impossibilidade de o fetichista se ater à função geral do ato sexual como reprodução da espécie em detrimento de uma função atomizada no próprio objeto ou nas partes do corpo da pessoa “desejada” com a finalidade de simples gozo58. A

generalização, por sua vez, seria a incapacidade de o fetichista de se ater a uma pessoa desejada em particular devido à projeção que ele faz de um objeto desejado em sua mente. Sob essa perspectiva, o fetichista nunca adora uma pessoa em sua especificidade, pois essa pessoa é apenas uma acomodação objetal a um esquema mental produzida pelo fetichista por meio de uma generalização, digamos, por uma ideia geral e pré-formada da pessoa. Segundo Binet, o fetichista está numa espécie de virtualidade com o mundo real, ou seja, é como se os objetos da realidade fossem inferiormente categorizados em relação à imagem pré-formulada em sua percepção mental. A imagem e os processos imaginativos teriam um tipo de primado de satisfação de prazeres mais eficientes do que os objetos reais59.

Não obstante, quando Binet partiu do fetichismo para explicar as perversões, ele manteve dois sentidos primordiais de sua concepção já existentes anteriormente em Brosses: [1] o modo de pensamento projetivo, isto é, a projeção dos desejos do indivíduo como cognição da realidade; e [2] a incapacidade de operação mental por representações e por abstrações, isto é, a incapacidade de formulação do pensamento conceitual. O primeiro sentido corresponderia ao que se caracteriza, na sexualidade do fetichista, como um prazer com a imagem produzida do objeto de desejo e não com o próprio objeto. O segundo sentido,

58Nessas duas características, a exageração e a abstração, está embutida a ideia de reversão dos meios em

detrimento dos fins tão típica do fetichismo. No processo de fetiche, não se consegue vislumbrar uma finalidade do próprio objeto por se ater a uma imediaticidade do ato atomizado. Essa ideia é muito similar ao que Michael Henry (1922-2002) denomina de reversão da “teleologia vital” no processo de produção de mercadoria pelo sistema capitalista. (Ver HENRY, Michel. Marx. Paris: Gallimard, 1976.v.2).

59

A ideia de uma virtualidade do mundo real é semelhante ao que pensavam muitos antropólogos, antes do século XX, sobre os povos “selvagens”. Os “selvagens” teriam uma visão de mundo acomodada aos produtos de suas projeções mentais feitos da realidade. A explicação disso para muitos estudiosos era pelo fato de que eles não possuíam ainda uma cognição técnica a qual possibilitasse a manipulação do mundo. Para esses povos, o mundo seria, de certo modo, mais “subjetivo” do que “objetivo”, tendo em vista que a própria observação do mundo como um dado objetivo pressuporia uma ação técnica diante dele.

por sua vez, corresponderia à incapacidade de totalização, tanto do ato sexual com a finalidade de reprodução da espécie como para um prazer sexual totalizante que reconheça o objeto sexual em sua especificidade60.

Na verdade, esses dois sentidos sugeririam a existência do pressuposto de que há uma cisão entre o mundo da “racionalidade” e o mundo “primitivo”, onde naquele se realizou um trajeto do conhecimento em favor do esclarecimento e da emancipação e nesse, em contrapartida, ocorreu um bloqueio desse trajeto o qual estagnou numa minoridade. Esse pressuposto confluiria com a correlação entre as instâncias da filogênese e da ontogênese, pois demonstraria que os sentidos do fetichismo usados para descrever povos “primitivos” coincidiriam com os sentidos usados para descrever indivíduos acometidos pelo fetiche. Segundo Vladimir Safatle (2010), a razão pela qual isso ocorre é que pode haver uma semelhança muito grande entre o aparato mental do indivíduo “primitivo” com o do fetichista, pois ambos funcionariam por pensamentos associativos através de imagens, seguindo uma relação de contiguidade e de semelhança tal como a produção imagética. O que não aconteceriam com o pensamento conceitual, pautado pela explicação lógico-demonstrativa61.

Digno de nota é o comentário no mínimo interessante que Binet fez a respeito da paixão como contraposição ao fetichismo. Para ele, a paixão, na maioria dos casos, servia como contraposição ao fetichismo porque, nela, o amor sucede como fator totalizante das pessoas enamoradas, tendo em vista que há uma grande possibilidade de as pessoas se amarem sob os auspícios da paixão considerando reciprocamente as especificidades e as completudes de cada pessoa envolvida na relação amorosa. Isso se daria através de dois modos. Primeiro, pelo objeto de desejo considerado em sua totalidade, pois o foco da paixão direcionaria para a pessoa amada por completo e não para as partes de seu corpo, para os caracteres pessoais ou para objetos. Segundo, pelo objeto de desejo considerado em sua singularidade, pois o foco da paixão convergiria para a própria pessoa amada e não para mera projeção de uma ideia geral e abstrata a qual o fetichista faz da pessoa62.

60Ao que parece, o que estaria em jogo a respeito da sexualidade fetichista, sob a perspectiva de Binet, seria a falta de reconhecimento do objeto sexual como sujeito, como pessoa amada, dotada de atributos tanto físicos como de caracteres mais totais e eminentemente específicos. Estendendo-se essa perspectiva às análises sociais, pode-se pensar sobre a ideia de “esquecimento de reconhecimento” de Axel Honneth, isto é, a incapacidade de reconhecer o outro como ser singular devido a um tipo de percepção reificada que o indivíduo possui de si mesmo e dos outros.

61SAFATLE, 2010, p. 43.

62Interessante que Binet percebeu um importante, digamos, antídoto contra o fetichismo, a saber, o sentimento do

amor. Aliás, um estudo profícuo sobre esse sentimento parte do filósofo inglês McTaggart (1866-1925) que postulou uma teoria metafísica do Amor. Para esse filósofo, o Amor seria uma emoção de apreço, intenso e apaixonado, entre duas pessoas, caracterizando-se como condição sine qua non de acesso à realidade última, de ir além da mera experiência presente. Resumidamente, para McTaggart, as pessoas que estão amando teriam