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2 O PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL VISTO A PARTIR DO

2.1 O planejamento urbano e regional e o pensamento social

A título de introdução à discussão aqui pretendida, retomemos a reflexão de Ianni (2000), que serve de epígrafe ao presente capítulo. Para o sociólogo paulista, o continuado e periódico pensamento sobre si próprio é uma das singularidades da história brasileira. De escopo setorial ou abrangente, de natureza mais teórica ou histórica, enfatizando esta ou aquela dimensão, as interpretações sobre o Brasil têm acompanhado de perto a formação da sociedade nacional e os seus momentos críticos e disruptivos, que colocam em xeque as ideias estabelecidas e demandam novas leituras interpretativas.

Os temas de reflexão são, no entanto, recorrentes ao longo de toda a história do País e as interpretações referem-se umas a outras, em posturas de reforço mútuo, de crítica e/ou de reformulação. Nesse sentido, a despeito da diversidade de orientações teóricas e da multiplicidade de aspectos abordados, Ianni (2000) reconhece algumas grandes vertentes comuns em torno das quais as interpretações sobre o Brasil têm orbitado.

Resumidamente, as vertentes identificadas por Ianni (2000) são: a) a que se concentra na análise do Estado, tomando-o como “demiurgo” da sociedade e da história6; b) a que enfatiza aspectos psicossociais e socioculturais relacionados à constituição de uma sociedade patriarcal, com forte peso das heranças coloniais e do mandonismo e clientelismo oligárquicos; c) a de cunho culturalista, que recorre frequentemente a tipos ideais para explicar a sociedade nacional7; d) a que destaca o peso do catolicismo no pensamento e nas sociabilidades nacionais e a sua presença marcante nos principais episódios da história brasileira8; e) a que defende um projeto de capitalismo nacional, baseado em um modelo de industrialização

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Segundo o autor, esse é o caso das obras de Alberto Torres, Oliveira Vianna, Azevedo Amaral, Francisco Campos, Hélio Jaguaribe, Oliveiros Ferreira e Bolivar Lamounier.

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Com forte influência de Sérgio Buarque de Holanda, essa vertente é representada por autores como Ribeiro Couto, Graça Aranha, Paulo Prado, Cassiano Ricardo e Menotti del Picchia (IANNI, 2000). 8

Com forte influência de Jackson de Figueiredo, essa corrente é bem representada por autores como Alceu Amoroso Lima, Gustavo Corção, Augusto Frederico Schmidt, Alvaro Lins, Farias Brito e Nestor Victor (IANNI, 2000).

substitutiva de importações, capaz de internalizar os centros decisórios da economia política9; f) a que defende um projeto de capitalismo transnacional, em um modelo de “desenvolvimento associado”, via inserção do País na economia internacional10

; g) a que se volta para a análise da formação e da transformação da sociedade nacional em termos de classes sociais e de lutas de classes, tendo como horizonte político o projeto de socialismo11; e h) a que resulta do trabalho dos “brasilianistas” sobre diversos aspectos da sociedade nacional.

Da confluência de vertentes interpretativas tão diversas, para as quais contribuíram intelectuais “precursores”, “clássicos” e “novos” (IANNI, 2000), emerge aquilo que podemos reconhecer como um pensamento social brasileiro, indissociável da própria formação nacional e periodicamente resgatado, revisado e renovado pelas novas gerações, posto que, como bem notou Ianni (2000, p. 72), “o Brasil é um país que se pensa contínua e reiteradamente”. Em face disso, as ciências sociais brasileiras reconheceram que o estudo da sociedade nacional deve passar, necessariamente, pelo estudo das interpretações que se fazem dela; reconhecimento este que se traduziu no desenvolvimento de um subcampo disciplinar que tem se consolidado, nas últimas décadas, sob o nome de pensamento social brasileiro.

A criação do Grupo de Trabalho “Pensamento Social no Brasil”, da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), no ano de 1981, representou um marco importante para a institucionalização desse campo científico no País, tendo sido seguida, desde então, por um crescimento do número de pesquisadores, grupos de pesquisa, eventos e ofertas de disciplinas em nível de graduação e pós-graduação voltadas à temática. Para Botelho e Schwarcz (2009), isso se deve ao interesse ascendente, tanto dentro quanto fora do âmbito acadêmico, pelas interpretações que o Brasil recebe ou recebeu.

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Ianni (2000) menciona, nessa vertente, autores como Roberto Simonsen, Rômulo Almeida, Jesus Soares Pereira, Celso Furtado, Francisco de Oliveira e Paul Singer.

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Nessa vertente, encontram-se tanto os defensores das teses liberais, em sentido clássico, quanto os neoliberais, que passavam a assumir posição hegemônica no País à época do texto de Ianni (2000). Nomes como Eugênio Gudin, Octávio Gouveia de Bulhões, Roberto Campos, Mário Simonsen e Delfim Netto integram essa corrente, mas dela também são representativos diversos outros segmentos sociais nacionais e transnacionais.

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A partir do pioneirismo de Caio Prado Jr., seguiram-se autores como Astrogildo Pereira, Nelson Werneck Sodré, João Cruz Costa, Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho, para mencionar apenas alguns nomes (IANNI, 2000).

Se é verdade que o pensamento social brasileiro, como afirmou Sérgio Miceli em simpósio sobre o tema (SCHWARCZ; BOTELHO, 2011), tem a ver com o exercício intelectual de interpretação do País em “chave macro”, é preciso assinalar que as leituras daí decorrentes não se podem pretender absolutas. Tolentino (2018) menciona, nesse sentido, que o próprio uso dos termos “interpretação” e “intérprete”, em lugar de “explicação”, denota certa falência dos grandes modelos estruturais que abundaram na produção sociológica da década de 1970. Ao invés disso, é posição cada vez mais corrente, entre os pesquisadores do pensamento social brasileiro, que “a interpretação, pertinente, mas não unívoca, se contrapõe à explicação totalizante e necessária” (TOLENTINO, 2018, p. 19), o que evidencia a revisão crítica vivida pelas ciências sociais nas últimas décadas do século XX.

Em uma perspectiva mais ampla, o pensamento social brasileiro está preocupado com a produção, circulação e recepção de ideias políticas, sociais e culturais sobre o País e, por conseguinte, seu escopo de análise é abrangente, abrigando pesquisas sobre intelectuais, obras e revistas específicas, editoras, movimentos artísticos, correntes de pensamento, academias e coleções, para mencionar apenas alguns exemplos.

Ademais, para Perruso (2004), a renovação do pensamento social brasileiro, a partir das décadas de 1970 e 1980, caracterizada pela crítica à matriz estatista da esquerda pré-1964 e pela adoção de uma perspectiva mais centrada na sociedade civil, permitiu deslocar o centro das preocupações analíticas da institucionalidade política para os chamados “setores subalternos” da sociedade e para os “novos movimentos sociais”, tanto enquanto objetos de investigação científica quanto como “intérpretes” legítimos da sociedade brasileira. Nesse mesmo movimento de renovação, as pesquisas no campo do pensamento social brasileiro também têm incorporado marcadores sociais de classe, gênero e étnico-raciais, inclusive no estudo de intelectuais cujas obras ainda não haviam sido investigadas nessa perspectiva.

Segundo Castro (2018), as perspectivas pós-coloniais e decoloniais, os estudos subalternos e as teorias feministas também têm prestado importantes contribuições à renovação do pensamento social em vários países da América Latina, à luz do projeto de descolonização do saber. Os autores engajados nessa tarefa buscam, assim, resgatar e visibilizar o legado epistemológico de intelectuais e ativistas de movimentos sociais que pensaram as sociedades latino-americanas

“com radicalidade e com especificidade”, para utilizar a feliz expressão de Oliveira (2001).

Ainda segundo Castro (2018), a reinterpretação crítica do campo do desenvolvimento – muito efervescente em meados do século passado e em revitalização nos dias presentes – constitui um dos grandes desafios contemporâneos do pensamento social latino-americano; desafio para o qual se faz imprescindível, conforme sugere a autora, a releitura de obras seminais de intelectuais como Gino Germani, Ruy Mauro Marini, Alberto Guerreiro Ramos, Florestan Fernandes, Celso Furtado e Octavio Ianni. Esse é, também, o posicionamento de Bastos (2011), para quem a atualidade do pensamento social brasileiro pode ser constatada pelo fato de que muitos dos temas atualmente discutidos pelas ciências humanas e sociais foram antecipados pelos debates intelectuais das décadas de 1950 e 1960, a exemplo da emancipação, do direito à diferença, dos limites à liberdade, do reconhecimento e da exclusão sociais, problemáticas que já se faziam presentes, de diversas maneiras, nas discussões de meados do século passado sobre o (sub)desenvolvimento, a marginalidade, a dependência e a mudança social.

Parte importante do legado intelectual latino-americano, o pensamento social brasileiro constitui, como visto, um campo bastante heterogêneo, mas no qual ainda predomina o tratamento dos intelectuais que marcaram a vida cultural brasileira, conforme aponta Maria Arminda do Nascimento Arruda em resposta às questões de Schwarcz e Botelho (2011). Martins (2018, p. 41) também considera que esse campo científico tem priorizado estudos sobre os “intérpretes” do País, intelectuais que “versam sobre determinado objeto, que possuem características próprias de ação social, produzem sensibilidades temporais e espaciais, criam e reinventam tradições intelectuais pelas quais se pode interpretar aquilo que interpretam”.

Para Martins (2018), o pensamento social brasileiro pode ser entendido como uma reflexão sobre a tradição da teoria social e política brasileira e sobre a constituição de uma imaginação sociológica no/do Brasil. Como se vê, o esforço de definição empreendido pelo autor, em consonância com grande parte da literatura sobre o assunto, privilegia aqueles intelectuais identificados com as disciplinas mais convencionalmente vinculadas às ciências sociais, notadamente a Sociologia e a Ciência Política.

Essa concepção resulta na consolidação e difusão de um seleto rol de “intérpretes do Brasil”, composto, por um lado, por aqueles cujas obras situam-se no período anterior à institucionalização das ciências sociais no País, mas que são reconhecidos como antecessores da reflexão científica sobre a sociedade (a exemplo do visconde do Uruguai, de Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha e, mesmo, de Gilberto Freyre), e, por outro lado, por alguns importantes nomes da teoria social e política pós-década de 1930 (Florestan Fernandes, Raymundo Faoro e Darcy Ribeiro são alguns dos nomes sempre constantes).

Tolentino (2018) dirige severas críticas à naturalização desse rol de “intérpretes”, considerando que o próprio campo do pensamento social brasileiro emergiu, nos anos 1940 e 1950, como um instrumento de criação de uma história e de uma tradição das ciências sociais no Brasil, articulando a incipiente produção acadêmica então existente com a tradição intelectual anterior à institucionalização das primeiras Faculdades de Ciências Humanas e Letras no País, notadamente no Estado de São Paulo.

Portanto, a gênese desse campo, muito ligada à emergência e à consolidação da Sociologia paulista, ajuda a explicar o motivo pelo qual carrega consigo, até o presente, fronteiras disciplinares muito rígidas, herdeiras de um período de autoafirmação das nascentes ciências sociais brasileiras, no contexto do qual se reproduziram “segmentos de saberes cada vez mais autoreferendados, com suas lógicas internas de composição de cânones, seguindo escopos teórico- metodológicos mais ou menos compartilhados” (TOLENTINO, 2018, p. 13). Daí o questionamento desse autor à tímida presença de intelectuais de fora do Sudeste brasileiro – tão abundantes no pensamento social até o século XIX – no rol de “intérpretes” do País no século XX, e a sua crítica à exclusão de escritores, artistas, ficcionistas, contistas, cronistas e – acrescentaríamos – de outros cientistas da sociedade, não exclusivamente ligados às ciências sociais mais convencionalmente reconhecidas.

A crítica de Tolentino (2018) é especialmente relevante para a presente pesquisa, dedicada a pensar o planejamento urbano e regional – um campo cujos intelectuais produziram suas obras a partir de diferentes regiões do País – na perspectiva do pensamento social brasileiro, notadamente a partir da obra de um pensador não vinculado à Sociologia ou à Ciência Política, mas à Geografia, disciplina menos convencionalmente associada às ciências sociais.

Defender a possibilidade de abordar o planejamento urbano e regional na perspectiva do pensamento social brasileiro, como aqui se propõe, significa dizer que há, na cultura intelectual do País (TOLENTINO, 2018), um “lugar” reservado àquele tema, expresso em um conjunto de ideias produzidas e divulgadas por intelectuais, individualmente ou reunidos em grupos; obras-chave; universidades e núcleos de pesquisa; revistas e periódicos; associações e editoras; órgãos e entidades estatais; e outros grupos de caráter formal ou informal.

Não obstante, como a demonstrar a indissociabilidade entre as dimensões técnico-científica e política do planejamento urbano e regional, a gênese e a trajetória do pensamento social sobre essa temática estiveram historicamente associadas à emergência e à consolidação das práticas de planificação de cidades e regiões como instrumentos do Estado brasileiro, a partir, sobretudo, da década de 1950. Trata-se, portanto, de um movimento dialético de fertilização recíproca, pois, de um lado, o debate intelectual foi continuamente fomentado pelas experiências concretas de planejamento e, por outro lado, essas mesmas experiências foram influenciadas e incorporaram, em níveis diversos, as críticas e proposições resultantes da produção intelectual.

Ademais, em um campo tão notadamente aplicado da produção científica, é frequente que os intelectuais acabem por exercer funções em órgãos e agências de planejamento urbano e regional e, inversamente, que estes últimos despontem como núcleos importantes de produção de ideias no campo em referência. Portanto, mesmo que o enfoque de um estudo seja conferido à sua dimensão técnico- científica – tomando como referência empírica um autor ou uma instituição de pesquisa, por exemplo –, não é possível dissociá-la completamente da dimensão propriamente política.

Na América Latina, em geral, e no Brasil, em particular, a porção do pensamento social que se dedicou, mais ou menos sistematicamente, a refletir sobre o planejamento urbano e regional foi, no decorrer dos anos 1940 e 1950, predominantemente influenciada pelo nacional-desenvolvimentismo, corrente teórica que, a despeito da grande heterogeneidade interna de posições assumidas pelos intelectuais que a compuseram, teve em comum a forte influência keynesiana de oposição ao liberalismo clássico e a defesa do papel da intervenção estatal na condução de um processo de industrialização e de aprofundamento do

desenvolvimento capitalista, vistos como capazes de superar o subdesenvolvimento (nacional e regional) e a herança colonial agroexportadora (MANTEGA, 1984).

Pode-se dizer que a emergência de um pensamento social sobre o planejamento urbano e regional no Brasil resultou da conjugação de fatores de ordem mais geral e mais específica. No plano geral, conforme aponta Galvanese (2018), os debates sobre as relações entre espaço e desenvolvimento no pós- Segunda Guerra Mundial foram disputados por duas principais correntes de pensamento econômico: uma de forte inspiração neoclássica, baseada em compartamentos microeconômicos e em pressupostos ideais de livre mercado (equilíbrio geral, convergência de renda per capita, concorrência perfeita, alocação ótima de fatores, neutralidade do espaço etc.), cujas principais expressões foram as teorias clássicas da localização de Johann von Thünen, Alfred Weber, Walter Christaller e Walter Isard; e outra, mais heterodoxa, fundamentada em uma matriz econômica keynesiana e schumpeteriana, que enfatizava as imperfeições de mercado (retornos crescentes de escala) e o caráter inerentemente desequilibrado do processo de desenvolvimento (com destaque aos fenômenos das grandes aglomerações e das desigualdades regionais), em face do qual o Estado teria um fundamental papel interventor e coordenador. Economistas ligados à corrente estruturalista do crescimento desequilibrado e da causação cumulativa, nomeadamente François Perroux, Albert Hirschman e Gunnar Myrdal, bem como aqueles vinculados à vertente latino-americana da Economia do Desenvolvimento, como Raúl Prebisch e Celso Furtado, foram os principais representantes desta segunda corrente.

No Brasil, a contenda entre as duas correntes expressou-se na chamada “controvérsia sobre o desenvolvimento econômico”, travada entre os defensores das teses liberalistas, muito ligadas aos interesses das elites agroexportadoras, e os apoiadores de teses desenvolvimentistas, mais afinadas aos nascentes segmentos urbano-industriais do País (MANTEGA, 1984). Durante as décadas de 1950 e 1960, ficou muito evidente a vitória do ideário desenvolvimentista e planificador, tanto do ponto de vista político – cuja culminância foi o Plano de Metas, de 1956, do governo Juscelino Kubitschek –, quanto do ponto de vista técnico-científico, dada a grande originalidade da produção intelectual desenvolvimentista, se comparada à reprodução pouco inovadora das teses liberalistas.

Além disso, não se pode deixar de mencionar o papel de relevo que a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) 12, organismo regional da Organização das Nações Unidas (ONU), exerceu na legitimação política e técnico- científica e na difusão do novo instrumental do chamado planejamento do desenvolvimento, considerado por Escobar (1995) como a operacionalização prática da economia do desenvolvimento do pós-guerra. No entanto, mais que uma mera reprodução de modelos teóricos europeus e estadunidenses, houve uma profícua e original produção intelectual nucleada na CEPAL, da qual resultou a teoria estruturalista do subdesenvolvimento periférico latino-americano (BIELSCHOWSKY, 2001). A efervescência intelectual cepalina teve grande repercussão no Brasil, inclusive porque a Comissão acolheu importantes nomes da política e da intelectualidade brasileiras em seus quadros técnicos, a exemplo de Celso Furtado, Maria da Conceição Tavares, Fernando Henrique Cardoso, Carlos Lessa, Antônio Barros de Castro e José Serra (MANTEGA, 1984).

Nesse contexto, grupos de intelectuais, veículos de divulgação e institutos especializados passaram a se constituir no Brasil, difundindo e dando corpo ao conjunto heterogêneo de ideias que ficou conhecido como nacional- desenvolvimentismo, descrito por Mantega (1984, p. 13) como “uma versão ligeiramente mais nacionalista do desenvolvimentismo na sua formulação cepalina”. Criado em 1955, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) foi, sem dúvida, a maior expressão institucional do ideário nacional-desenvolvimentista no País, reunindo um importante grupo de intelectuais, dentre os quais se destacaram Hélio Jaguaribe, Cândido Mendes, Alberto Guerreiro Ramos, Nelson Werneck Sodré e Ignácio Rangel, orientados por perspectivas teóricas e ideológicas distintas entre si, mas convergentes quanto à necessidade de elaboração de um projeto comum de nação, conforme explica Caio Navarro de Toledo em seu clássico “ISEB: fábrica de ideologias” (TOLEDO, 1997).

Foi nesse mesmo contexto, no âmbito do arcabouço institucional nacional- desenvolvimentista criado a partir das reformas administrativas do Estado brasileiro, durante as décadas de 1940 e 1950 (SILVA, S., 2017), que um pensamento social bastante original sobre o planejamento urbano e regional foi sendo formulado. Dessas instituições, muitas delas autarquias e sociedades de economia mista,

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ligadas a diferentes níveis da administração pública, intelectuais como Celso Furtado, Francisco de Oliveira, Rômulo Almeida, Pinto de Aguiar, Lucas Lopes, Armando Dias Mendes, Arthur Cézar Ferreira Reis, Leandro Tocantins e Djalma Batista elaboraram – e, em alguns casos, aplicaram em planos e programas – uma verdadeira tradição de pensamento sobre o planejamento urbano e regional, cujo principal fundamento teórico e ideológico foi o nacional-desenvolvimentismo.

É importante ressaltar, no entanto, que o pensamento social brasileiro sobre o planejamento de cidades e regiões, na época aqui tratada, nem sempre constituiu uma derivação automática das teses nacional-desenvolvimentistas formuladas e difundidas por instituições como a CEPAL e o ISEB. No caso do planejamento regional, por exemplo, as primeiras elaborações teóricas mais consistentes sobre o assunto foram desenvolvidas por intelectuais integrantes dos quadros técnicos de instituições situadas em regiões tornadas periféricas pelo avanço da integração nacional sob a égide da industrialização paulista; nesse contexto histórico-geográfico particular com o qual se defrontavam, aperceberam-se das especificidades regionais e defenderam um planejamento que, ao mesmo tempo em que mantinha relações com o debate nacional-desenvolvimentista dominante, também apresentava importantes diferenças em relação a ele. Na Amazônia, por exemplo:

considera-se que o debate que surgiu sobre o desenvolvimento da (e para a) região amazônica na segunda metade da década de 40, apesar de relacionado com a discussão nacional que ganhou força durante o período, isto é, o pensamento nacional-desenvolvimentista, apresentou importantes diferenças em relação a este, uma vez que envolto em heterogeneidade estrutural entre a região amazônica e o centro-sul do País (OLIVEIRA; TRINDADE; FERNANDES, 2014, p. 204).

Reconhecendo essas particularidades do debate desenvolvimentista na Amazônia, Fernandes (2011, p. 251) propõe falar em um desenvolvimentismo- regionalista, por ele definido como um conjunto de ideias e iniciativas que tinham em comum um grupo “de diretrizes voltadas para a formação de um projeto de desenvolvimento regional em um caráter, ao mesmo tempo, independente e complementar em relação ao projeto desenvolvimentista brasileiro”. A tensão entre os ideais de modernização e integração, por um lado, e os interesses das elites regionais, por outro, foi uma marca permanente do desenvolvimentismo-regionalista amazônico.

Ainda segundo Fernandes (2011), esse projeto desenvolvimentista de viés regionalista – que viria a ganhar um corpo institucional com a criação do Banco de

Crédito da Amazônia (BCA), em 1950, e da Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), em 1953 – levava em conta, enfaticamente, aspectos particulares à região amazônica e articulava demandas específicas, como a diversificação da base produtiva regional, face à decadência da economia gomífera; a melhoria da oferta de serviços básicos; a criação de instituições de pesquisa produtoras de conhecimento sobre os recursos naturais da região; e a integração à economia nacional, ainda que sem diluição da “identidade

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