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O POLÍTICO E A PÓLIS

No documento INSTITUTO DE CIÊNCIA POLÍTICA UnBIPOL (páginas 54-122)

Um homem de luz. Um homem sem sombra? Aquele que caminhou pelo deserto O compreendeu: É o inferno! Felizmente Deus fez o homem de luz com sombras. Jean-Yves Leloup

O passado é nossa fonte de inspiração; o presente, uma arena de respiração; e o futuro, nossa aspiração coletiva. Ngũgĩ wa Thiong'o

O mais sublime espetáculo pode tornar-se um sofrimento se não temos a sorte de ter alguém com quem partilhá-lo.

Luc Ferry

Como se dá a articulação da concepção de espaço público-político proposta por Hannah Arendt com o fenômeno da emergência da pólis?

No capítulo anterior, procurei apresentar os primeiros indícios de que Arendt procura resgatar uma particularidade da política – uma certa dignidade – que não somente parece ter escapado de nosso entendimento e de nossas práticas como, de algum modo, parece ter sido mais do que esgarçada ao longo dos séculos – foi mesmo eclipsada desde o início de sua fundação. Isso torna quase impossível ver essa atividade política ressurgindo em tempos atuais e quase impraticável localizá-la no espectro do humanamente possível. A despeito dessa possibilidade de insucesso, mas para o bem das energias utópicas, como queria Habermas142, é

precisamente esse lado distante e eclipsado da política – essa “outra dimensão” – que procuraremos conhecer, localizar e explorar143. No entanto, também é possível que esse anseio

142 No original lê-se: “Hoje as energias utópicas aparentam ter-se esgotado, como se elas tivessem se retirado do pensamento histórico” (HABERMAS, 1987. p. 104.).

em exaurir possibilidades ainda-sem-lugar não permita suficiente contextualização política – analogamente aos comentários de Maurizio Passerin d'Entrèves que, a despeito de reforçarem a ideia de que a teoria deve “reativar” a participação na política, mantiveram a política em um campo de abstração – de modo que ele diz, sobre Arendt, que “as supostas ambivalência, oscilação, não-integração arendtianas são testadas não contra situações políticas atuais, mas contra as demandas de coerência interna da teorização”144.

Entretanto, a política não precisa ser pensada somente a partir das categorias políticas de que já dispomos – se por “localizar” a política entendemos precisamente “ampliar” a política. Podemos situar a discussão sobre o que é a política dentro mesmo do próprio fazer político, a partir da práxis e da reflexão (que é, também, um exercício). As categorias políticas são, assim, empíricas, ou seja, ligadas a posteriori à experiência que temos delas – e esse é um aspecto intrínseco a essas categorias, mesmo que seus pontos de partida sejam teóricos ou presumidos aprioristicamente145. Em última análise, é isso que podemos extrair da experiência

grega: compreende-se que o agir humano na pólis situa-se tragicamente entre o éthos – espécie de espírito coletivo que rege as atividades comuns – e o daímon – traços idiossincráticos da personalidade que agem no e pelo sujeito, que se revelam em sua ação concertada; entre a hýbris – o caótico e imprevisível aberto – e a regulação harmoniosa da

díke, isto é, na inter-relação entre campos distintos, potencialmente suplementares, nem

sempre ligados diretamente à política, ou especificamente aos negócios humanos.

É nesse sentido que a discussão do último capítulo procurou sugerir que, para deixar de lado a necessidade que temos de articular a política como empreendimento de meios-e- fins, talvez seja uma boa estratégia recorrer também às faculdades do homem, e não somente às condições do mundo. No capítulo anterior argumentei, portanto, que o “fazer político” não

substantiva e expressiva” desta Dissertação.

144 No original, traduzido livremente por mim, lê-se: “Her supposed ambivalence, oscillation, non- integration get tested not against actual political situations but against the demands of the internal coherence of theorizing” (apud LANE, 1997. p. 151.).

145 O problema a ser superado aqui é que, ao afirmar algumas condições necessárias para a atividade política, Arendt ainda estaria estabelecendo hierarquia entre pensamento e ação, com a autonomia do primeiro e seu domínio sobre o último. A autonomia do pensamento remontaria ao ideal transcendental kantiano e às categorias a priori que permitem e conformam o conhecimento da experiência. Tais categorias seriam como imagens decalcadas, condicionadas extrinsecamente. As ligações entre elas se dão somente à experiência do possível previsível pelo pensamento, e não à experiência real. Poderíamos abordar esse problema considerando a revisão do conceito de transcendental em Kant, feita por Deleuze, mas isso fugiria ao escopo desta dissertação, de modo que indico somente uma referência: cf. SALES, 2006.

se concentra unicamente na ação, mas também no oásis que se situa no espírito humano, ou seja, na articulação de suas faculdades (e, em especial, de sua faculdade de julgar). Em meu modo de ver, as observações de Arendt sobre a vida do espírito são um esforço para resgatar, no homem, seu amor pelo mundo, já que parece que o mundo, largado a seus próprios meios, nada mais é do que um imenso deserto. Como Arendt diz, contra Marx e seu humanismo146,

não podemos tratar das necessidades humanas para salvar o homem do mundo, senão que, pelo contrário, devemos lidar com aquilo que sustenta a vida do homem – seu lado público e plural (descoberto por Kant) – para voltarmos a enxergar “o mundo habitado por homens”147.

Ao falar sobre o mundo, Arendt está falando especificamente sobre “o resultado de algo que os homens podem produzir”148. O mundo, assim, diferentemente da Natureza ou do

Universo, é essencialmente artificial e criado no espaço entre os homens. Não há sentido, portanto, em afirmar um mundo-sem-homens, apesar de Arendt saber que o que acontece no mundo não pode ser reduzido a um acontecimento puramente humano – o produto dos homens é sempre algo que os homens mesmos não são: artificial. Essa “exterioridade” do mundo, como enfatizada por Arendt, cria diversos problemas – e são os mesmos, sempre que se imagina a dicotomia interno-externo, dentro-fora.

Sendo o mundo produzido pelos homens – devido a suas habilidades e capacidades –, pode-se argumentar que seria somente pela modificação dos homens em sua práxis, portanto, que finalmente se construiria um outro mundo. Ou seja, uma vez transformadas as habilidades do produtor, os produtos produzidos seriam outros – e esse talvez tenha sido o sonho do humanismo marxista. Por outro lado, embora da mesma maneira, argumenta-se que, sendo o mundo algo exterior aos homens, a preocupação com o mundo permite que as discussões políticas sejam desinteressadas, uma vez que tratam de coisas “altamente reais”149 e que não

podem ser desviadas para um âmbito interno, pessoal, particular e movido pelo interesse privado; essa exterioridade permite exatamente a discussão e o mútuo-convencimento. Para Arendt, assuntos privados são objetos de reflexão, e não necessariamente de criação e de modificação. Os assuntos que dizem respeito à natureza humana, por sua vez, não são tratados como artificialidades e, portanto, não são sujeitos à revisão e à apropriação. Assim, é clara a

146 ARENDT, 1999b. p. 188.

147 ARENDT, 1999b. p. 189.

148 ARENDT, 1999b. p. 36.

opção de Arendt:

no ponto central da política está sempre a preocupação com o mundo e não com o homem – e, na verdade, a preocupação com um mundo assim ou com um mundo arranjado de outra maneira, sem o qual aqueles que se preocupam e são políticos julgam que a vida não vale a pena ser vivida.150

E por que não faria sentido pensar a política de outra maneira, focada no homem? Porque, para Arendt, só se pode optar por dar atenção ao homem, fazendo do homem – ou seja, do seu modo de conduta social e, finalmente, humano – seu objeto, “quando se exclui o homem atuante, o autor dos acontecimentos mundiais demonstráveis, degradando-o a um ser que só reage, que pode ser submetido a experiências e do qual até pode-se esperar ter definitivamente sob controle”151. E ressalta Arendt, não sem ironia e pesar, que essa tem sido a

forma como se articulam, na Academia, as ciências sociais e a psicologia, mas não a política de que ela trata.

Por conseguinte, denominaremos por político aquilo que pode ser entendido de diferentes maneiras no pensamento arendtiano, tais como: i) a distinção entre a esfera política e a esfera social, e entre o espaço público e o espaço privado; ii) a contraposição entre as concepções de massa, de pária e de parvenu; iii) a relação entre os aspectos individuais (e agonísticos) e coletivos (e associativos) da ação política; e, como prenúncio do próximo capítulo, iv) as projeções desses aspectos na vida do espírito. Para que não restem dúvidas sobre o modo como lançamos o olhar para a experiência dos anciens sobre a pluralidade, que “não pode significar um retorno a eles nem sua imitação”, já que aceitamos “a experiência hermenêutica segundo a qual os antigos nos permitem compreender certas coisas melhor que os modernos”152, aquilo que entenderemos por pólis deve ser mais bem observado como um exemplar que é, ao mesmo tempo: i) uma contingência histórica que apresenta rupturas e

continuidades em relação ao processo histórico; ii) uma simbiótica e trágica imagem das relações entre o cidadão e suas criações coletivas (na forma de instituições); iii) um acontecimento a ser visto com a esperança de quem lança os olhos para a novidade e a precaução de quem observa algo que já passou; iv) uma ideia que parece servir à Arendt tanto de modelo relativo como de inspiração prática, tanto de ideal concreto quanto de imaginário utópico – um gérmen153, afinal. Como então, a partir dessas elucidações, se poderia articular

150 ARENDT, 1999b. p. 35.

151 ARENDT, 1999b. p. 34.

152 GADAMER, 2004. p. 349.

esse político e essa pólis?

Como vimos brevemente no capítulo anterior, tentar seguir o pensamento de Hannah Arendt, que propôs algumas “reflexões sobre as catástrofes políticas do século XX”154, para

realizar uma leitura sobre o política a partir de alguns de seus principais conceitos, é pensar sobre a condição humana atual e seus predicados na era moderna, resgatando a pluralidade dos antigos como condição por meio da qual se alcança a autonomia e a liberdade e, consequentemente, reposicionando-a no centro das experiências políticas possíveis para uma atualidade em contínua formação. É desse modo que Hannah Arendt apresenta como cerne de seu pensamento político, tanto quanto Castoriadis, ainda que por outros meios e diferentes abordagens, a investigação sobre as implicações do modo greco-romano de criar e experienciar a política e a democracia, por um lado, e as rupturas e continuidades, com relação à tradição que a sustenta, empreendidas na modernidade, por outro. O interesse de ambos é saber como podemos receber, hoje, a herança dos anciens, como podemos adaptá-la aos novos significados e demandas de nosso tempo; enfim, é saber como podemos co-criar o presente, uma vez que a ligação que permite a humana continuidade entre o passado e o futuro tenha sido rompida, e que não possamos mais recorrer a qualquer testamento155 para nos

auxiliar nessa recepção.

Como aponta Castoriadis156, a modernidade nos trouxe: i) a noção de universalização

democracia e a filosofia e onde se encontram, por conseguinte, nossas próprias origens. Na medida em que o sentido e as potencialidades dessa criação não estejam esgotados – e estou profundamente convencido de que não o estão – a Grécia é para nós um ‘gérmen’: nem um ‘modelo’, nem um espécime entre outros, mas um ‘gérmen’” (CASTORIADIS, 1987. p. 271.).

154 CANOVAN, 1992. p. 7.

155 No prefácio “A quebra entre o passado e o futuro”, Arendt cita o poeta francês René Char: “Notre héritage n'est précédé d'aucun testament” (Nossa herança nos foi deixada sem [ou “não foi precedida de”] nenhum testamento). cf. ARENDT, 2005. p. 28. Para Arendt, essa ruptura da tradição nos expõe ao risco de novidades impensáveis – e, talvez, catastróficas – que não podem ser significadas e compreendidas, mas também nos apresenta a rara oportunidade de um “novo começo”, de trazer à luz os problemas elementares da política, “em sua urgência imediata e simples, como ao serem formulados pela primeira vez, e ao receberem seu desafio final”, justamente por não termos mais os olhos contaminados pela seletividade particular de qualquer tradição. cf. ARENDT, 2005. p. 44.

156 Em um de seus textos de sua fase mais madura, intitulado Imaginário político grego e moderno, datado de 1990, Castoriadis nos apresenta uma lista de aspectos que traçam as diferenças entre as concepções de democracia grega e as transformações trazidas pelo advento da modernidade. Esse texto trata-se na verdade de uma conferência proferida em 29 de outubro de 1990, parte das apresentações do Deuxième Fórum du Monde em Mans, que depois foi publicada na coletânea organizada por Roger-Pol Droit, sob o título: Les Grecs, les Romains et nous- L’Antiquité est-elle moderne?. Paris: Le Monde Editions, 1991. Em português, esse texto integra o volume IV da série As Encruzilhadas do Labirinto: cf. CASTORIADIS, 2002. Agradeço à Tatiana Rotolo pela indicação bibliográfica e pela síntese dos pontos discutidos, embora assuma qualquer equívoco pelo texto apresentado.

da cidadania, que era restrita aos homens livres da antiguidade, de modo que a própria liberdade pode assumir caráter pleno e assegurado; ii) a garantia de direitos e o ideal de soberania dos grupos humanos configurados como estados nacionais; e iii) a ampliação do bem comum com a alocação de questões antigamente restritas ao âmbito privado no espaço público. Da mesma forma, o resgate da experiência política dos antigos nos permite repensar as seguintes questões: i) o poder coletivo e popular como única fonte legítima das leis e a discussão pública e a persuasão como instrumentos de modificação das leis, o que culmina na separação entre poder e violência; ii) a imbricação dos indivíduos em sua comunidade como geradora de co-responsabilização e auto-limitação; e iii) a finitude dos negócios humanos que, aliada à imprevisibilidade da ação humana, conferem caráter trágico à política e à democracia. Assim, se a política, tal como realizada na pólis, é uma atividade que concerne à relação entre homens plurais, por um lado eles não podem se converter em material de trabalho, em objeto a ser moldado, produzido ou fabricado por meio de domínio e violência, e por outro lado eles não podem ser sacrificados pelo fim que se almeja alcançar; a pluralidade humana não pode ser preterida em detrimento da finalidade pretendida157, já que é a própria

condição por meio da qual se realiza qualquer finalidade e se mantém o sentido da política – a liberdade158. Desse modo, o reavivamento da experiência política de pluralidade humana

facilita que: i) a política não se converta em fabricação; ii) o mundo seja reconhecido em sua objetividade multifacetada159, permitindo uma experiência partilhada de imaginação-reflexão

cooperativa e de alargamento da mentalidade160; iii) os preconceitos sejam transformados em

juízos políticos; iv) não haja separação entre governantes e governados, isto é, diferenciação entre aquele que sabe o que fazer e aquele que meramente executa, gerando alienação do agente em sua ação, quando perde-se a identidade entre o querer-fazer e o poder-fazer161.

No entanto, entre a intenção de resgatar as experiências políticas de pluralidade humana e atitude que nos permitirá conviver de fato sob um regime plural, há ainda diversas

157 CANOVAN, 1992. p. 73.

158 Com Arendt, vemos que “o indivíduo em seu isolamento jamais é livre; só pode sê-lo quando adentra o solo da pólis e age nele” (ARENDT, 1999b. p. 102.).

159 ARENDT, 1999b. pp. 59-60.

160 ARENDT, 1999b. pp. 101-102.

161 cf. HOLLOWAY, 2003. pp. 43-51. Essa ideia será discutida na seção “A performatividade do herói: uma vontade de poder-fazer”, neste capítulo. Para ver a menção que fiz a essa expressão no capítulo anterior, cf. nota 117.

barreiras a serem superadas. A primeira delas, e talvez a mais importante, é saber como expressar essa pluralidade, como imaginar e comunicar – e portanto, sociabilizar – esse misto de desejo para o futuro e de experiência do passado, que acompanha geneticamente o homem em sua trajetória política. O poeta brasileiro Ferreira Gullar162, pseudônimo de José Ribamar

Ferreira, na síntese que a poesia permite e com a vastidão que ela suscita, escreveu sobre a dificuldade em traduzir – para si mesmo e para o mundo – a pluralidade, sentimento de multidão que habita cada indivíduo: aquela sensação de ser naturalmente plural – e portanto, ainda que autônomo, potente só no coletivo – aliada àquele medo sublime diante do desconhecido, àquele gosto nem sempre admissível pelo vário – que é o limite imposto pela diferença. Para dar conta dessa composição entre o íntimo e o público163, escreve o poeta, em Traduzir-se164, cujas estrofes já foram citadas no capítulo anterior:

Uma parte de mim é todo mundo: outra parte é ninguém:

fundo sem fundo. Uma parte de mim

é multidão: outra parte estranheza

e solidão. Uma parte de mim

pesa, pondera: outra parte

delira. Uma parte de mim

almoça e janta: outra parte se espanta.

Uma parte de mim é permanente:

outra parte se sabe de repente. Uma parte de mim

é só vertigem: outra parte, linguagem. Traduzir uma parte

na outra parte - que é uma questão

de vida ou morte - será arte?

Com isso, vê-se que a formação da subjetividade, se pudesse ser assim traduzida poeticamente, seria vista como produção de diferenças, como fragmentação identitária entre o eu e o não-eu, ou até mesmo como oscilação entre a percepção subjetiva do que me constitui e a comunicação socializante sobre aquilo de que sou constituído.

162 Uma boa aproximação à obra do poeta pode ser feita a partir de SAMPAIO, 2008.

163 Como afirma o crítico literário João Luiz Lafetá, citando Sérgio Buarque de Hollanda, “em Gullar a voz pública não se separa em momento algum de seu toque íntimo, de seu timbre pessoal, de esperança e desesperanças, das recordações da infância numa cidade azul evocada no meio do triste exílio portenho” (LAFETÁ, 1982. p. 63.).

É assim também que, na busca por experiências de pluralidade humana na política, diante de autênticas mudanças que “realmente apresentaram novos problemas que não poderiam ser resolvidos em termos tradicionais, mas que exigiam uma reformulação fundamental da experiência política”165, Arendt retoma a atividade grega da pólis e nos

apresenta dois elementos intrinsecamente combinados e relativamente paradoxais – o herói e as instituições – para clarificar tanto as potencialidades quanto os limites da ação humana, ou seja, para tentar rearticular a autonomia e a pluralidade, para tentar integrar o indivíduo que só existe no plural e o coletivo que se pluraliza pela variação de seus membros constituintes. Dessa forma, a revitalização da coragem como a autonomia heroica é a potência que torna possível o surgimento da novidade, mesmo nas mais trágicas circunstâncias e diante dos terrenos mais inférteis; e a auto-limitação derivada das “instituições políticas que os homens plurais podem estabelecer entre eles”166 é o próprio limite politicamente definido para o

novo167, que estaria, de algum modo imprevisível, entre a estabilidade da paz e o conflito da

guerra.

2.1 – Antecedentes: política e violência, pensamento e ação

As duas questões que motivam os estudos deste capítulo, em que revisaremos as relações entre os domínios do político e a compreensão da criação e formação da pólis, foram apresentadas principalmente no segundo capítulo de A Condição Humana, dedicado ao estudo das esferas pública e privada. Mais do que uma recapitulação nostálgica ou uma comparação anacrônica, o que se vê é a autora alemã debruçando-se, por um lado, sobre a difícil relação entre a política e a violência, entre a palavra e a força, entre a persuasão e a coação; e por

165 CANOVAN, 1992. p. 67.

166 CANOVAN, 1992. p. 68.

167 Este limite aparece mais claramente quando se compara, à luz do pensamento arendtiano, a ideia que os gregos faziam das leis – e da constituição – com a ideia dos romanos. Para André Duarte, por exemplo, “Arendt pensa as leis e, em particular a constituição, não apenas como elementos de estabilização da

novidade continuamente trazida ao palco da esfera pública, à maneira grega, mas também como

princípios de inspiração da ação humana, que propiciam o estabelecimento de novas relações entre os homens, à maneira romana” (DUARTE, 2009. p. 146. itálico do autor, negrito meu.). Uma outra forma de observarmos esta diferença encontra-se no sentido da palavra nomos, que em grego chegou a se aproximar de uma espécie de “muro”, uma linha divisória. Para os romanos, por outro lado, lex sempre indicou “uma relação formal entre as pessoas, não um muro que as separa” (ARENDT, 2001. p. 73, nota 61.).

outro, sobre a complicada hierarquização entre pensamento e ação, situada ao lado da equivalência entre discurso e ação. Cada uma dessas duas questões será tratada separadamente como paradoxos, para então buscar a compreensão que surge a partir de seu entrelaçamento.

A separação entre política e violência é tão rigorosa quanto precisou ser a distinção entre a esfera pública e a esfera privada, no surgimento da pólis. O homem que cria a pólis – e

No documento INSTITUTO DE CIÊNCIA POLÍTICA UnBIPOL (páginas 54-122)

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