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O POLÍTICO: PENSAMENTO E PRÁTICA CONTRA-HEGEMÔNICOS

3 UM DIÁLOGO POSSÍVEL

3.2 O POLÍTICO: PENSAMENTO E PRÁTICA CONTRA-HEGEMÔNICOS

O fato de se colocar direito e teatro na mesma esfera de existência social e política sugere inicialmente duas ordens de preocupações: a complexidade temática e a definição do que se entende por político. A primeira já foi tematizada, entre outros, por Losano (2007, p. 3), para quem um milenar debate teórico procura responder à simples indagação: “o que é direito”? No campo jurídico que interessa aqui, Flores (2009, p. 41) sentenciou que “os direitos humanos são um tema de alta complexidade”, a qual é cultural, empírica, jurídica, científica, filosófica, política e econômica43.

Que dizer da complexidade do teatro? Desde Aristófanes e Platão – os únicos autores, segundo Carlson (1997, p. 14), de comentários de peso sobre o drama antes da Poética de Aristóteles –, o teatro vem sendo objeto de estudo especulativo e “de modo algum existe consenso geral (hoje talvez menos que nunca) quanto ao que constitui ou deve constituir o corpo de teoria crítica devotado a essa arte” (CARLSON, 1997, p. 9). Dos gregos aos pós-dramáticos, o teatro ocidental teve uma evolução

extraordinária, a ponto de chegar na contemporaneidade com uma profusão de estilos e experiências que desafiam o espírito crítico e qualquer tentativa de estabelecer uma suposta unidade comum à gama de variedades expressivas. Prova disso é o que afirma Bornheim (1975, p. 9) acerca do teatro contemporâneo, no qual se insere o Teatro do Oprimido:

A situação do teatro contemporâneo é extremamente complexa, para não dizer caótica. Errado, contudo, andaria quem disso inferisse que se trata de um teatro pobre, sem imaginação, desprovido de recursos maiores. Deve-se mesmo afirmar que é exatamente o contrário que se verifica: o panorama do teatro de hoje é, inegavelmente, de uma riqueza imensa, de uma pluralidade de experiências jamais vista em nenhuma fase da história da dramaturgia e da arte cênica.

Bornheim (1975, p. 11) levanta duas hipóteses para explicar essa “complexidade atomizante”. Uma delas seria “a ânsia de originalidade” que acompanha todas as manifestações culturais de hoje, e a outra o desgaste da tradição cultural do ocidental, que sugere talvez um frenesi criativo para poder superá-lo. Correlata à ideia de decadência do Ocidente, há a noção de “fim da história”, que não é nova, mas passou a ser mais conhecida a partir da publicação do livro homônimo de Fukuyama (1992). Segundo Santos44 (2008, p. 51), essa tese “exprime a incapacidade do Ocidente de se reinventar a si próprio”.

O presente estudo apresenta, assim, uma dupla complexidade: a dos direitos humanos e a do teatro. No que tange à segunda preocupação, impõe-se uma revisitação ao significado clássico de política como “tudo aquilo que se refere à cidade, e portanto ao cidadão, civil, público e também sociável e social” (BOBBIO, 2000, p. 159). O termo político, que no étimo grego e latino diz respeito ao Estado e ao cidadão, é invariavelmente associado a polis, que não só significa a cidade-Estado na Grécia antiga, mas também o Estado ou a sociedade caracterizados pelo senso de comunidade (HOUAISS, 2001, p. 2252-3). Via de regra, a polis grega é tida por estudiosos da ciência política como umparâmetro de sociedade, muito lembrada nas reflexões sobre a associação política no Ocidente. Nesse sentido, ainda continua em parte atual o conceito aristotélico de cidadão como a pessoa que possui a faculdade de intervir nas funções

44 Santos (2008, p. 52) vislumbra também no “fim da história” a impossibilidade de renovação do sistema capitalista. Para ele, tal teoria, na verdade, revela “o máximo de consciência possível de uma burguesia internacional que vê finalmente o tempo transformado na repetição automática e infinita do seu domínio”.

deliberativa e judicial da cidade (ARISTÓTELES, s/d, p. 102), sendo, pois, um “homem investido de um certo poder” (ARISTÓTELES, s/d, p. 103).

Tendo como pano de fundo esse conceito aristotélico, Berthold (2006, p. 103) afirma que o teatro grego começa aos pés da Acrópole, assinalando com essa imagem a vinculação original do teatro ocidental à comunidade política, embora lhe reconheça as origens arquetípicas na dança e no culto, que “em todos os tempos e lugares, prendem os homens aos deuses e os deuses ao homem”. Garcia (2006, p. 245), citando Dort, também observa que o teatro é ontologicamente político, uma vez que “todo grande teatro é, por definição, político; mesmo quando se recusa a ser político” (DORT, 1987, p. 381).

Afirma Bobbio (2000, p. 160) que o conceito de política como práxis humana está ligada ao de poder. E, discorrendo sobre a tipologia moderna das formas de poder, apresenta uma classificação baseada nos meios utilizados pelo sujeito ativo da relação interpessoal para condicionar o comportamento do sujeito passivo, pelo que distingue três tipos: econômico, ideológico e político. O poder econômico vale-se da posse de bens para induzir aos que não os têm a um determinado comportamento; o ideológico funda-se na influência de ideias sobre o comportamento humano, nela se destacando os que sabem, como os sacerdotes nas sociedades arcaicas e os cientistas e os intelectuais nas evoluídas; o político apoia-se no uso exclusivo da força, sendo o poder, de fato, coercitivo. Bobbio, aliás, assevera que

todas as três formas de poder instituem e mantêm uma sociedade de desiguais, isto é, dividida entre ricos e pobres, com base no primeiro, entre sapientes e ignorantes, com base no segundo, entre fortes e fracos, com base ao terceiro: genericamente, entre superiores e inferiores (BOBBIO, 2000, p. 163).

Flores (2009, p. 82), todavia, aposta na recuperação do verdadeiro significado do político:

Primeiro, recuperar o político não consiste em entender a política como a busca de um melhor ou pior sistema de governo. Essa compreensão apenas reduz a ação pública a uma mera gestão das crises. O político nada mais é que uma atividade compartilhada com outros na hora de criar mundos alternativos ao existente. A dignidade do político não reside unicamente na gestão, mas, verdadeiramente, na criação de condições para o desenvolvimento das potencialidades humanas (FLORES, 2009, p. 82).

Para Boal, como para Flores, a recuperação do significado do político só faz sentido como pensamento e prática contra-hegemônicos: “No confronto com o pensamento único, temos que ter claro que a política não é a ‘arte de fazer o que é possível fazer’, como é costume dizer, mas sim a arte de tornar possível o que é necessário fazer” (BOAL, 2009, p. 22).