• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 1 Perspectiva de observação e análise

1.4 O ponto de vista do trabalho

A evolução da tecnologia aeronáutica foi motivada não apenas pelo transporte comercial de massa, mas pelo fato de que as aeronaves se destacaram como as principais máquinas de guerra do séc. XX. Durante a Primeira Guerra Mundial, o inventor Santos Dumont viu seus projetos23 e protótipos transformarem-se em poderosas armas bélicas. Podemos relacionar o avanço da aviação civil à história das últimas guerras, na medida em que ao final de cada uma havia um saldo tecnológico de bens e serviços disponíveis para serem aproveitados em âmbito público e privados. Assim, o desenvolvimento da aviação comercial esteve atrelado, desde a sua origem, ao avanço tecnológico e operacional da indústria bélica. As normas operacionais de voo, a estrutura dos cursos de formação de pilotos, a organização das bases aéreas, as hierarquias a bordo e fora das aeronaves, os padrões aeronáuticos de comunicação (oral e escrita), os formulários, enfim, os principais fundamentos utilizados pela aviação militar foram universalizados e adotados como modelos na aviação civil. Mas as normas técnicas e operacionais trazem consigo a marca cultural de seus agentes institucionais. A esse respeito, gostaríamos de destacar um traço característico da cultura por trazer seus efeitos para o nosso campo de análise. Referimo-nos à disciplina.

Sabemos que a doutrina militar24 está organizada com base na sujeição a preceitos rígidos de disciplina. Tal doutrina irá submeter à vida pessoal do militar às exigências da hierarquia, de tal modo que o apagamento do sujeito em detrimento aos objetivos da

23 Os principais conceitos aerodinâmicos para fazer voar de modo governável um aparelho mais pesado

que o ar foram definidos por Santos Dumont, que construiu, experimentou e disponibilizou à humanidade sem reivindicar patente todos os seus projetos (numerados de 01 a 21) entre os anos de 1898 a 1909.

24

De acordo com o art. 142, capítulo II da Constituição Federal da República Federativa do Brasil, “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”.

34 nação são práticas incentivadas. Para melhor compreensão do uso que faremos do termo disciplina, destacaremos o estudo realizado por Michel Foucault (1977) ao relacionar o surgimento da disciplina com a explosão populacional do século XVIII, ao crescimento e à complexificação do aparelho de produção. De acordo com esse autor, as disciplinas são técnicas que impõem uma ordenação às multiplicidades humanas para garantir as diversas formas de produção: de saber nas escolas, de saúde nos hospitais, de força destruidora nos exércitos. Isso fará com que o exercício do poder seja menos custoso econômica e politicamente e seja estendido ao máximo possível sem lacunas.

As análises históricas de Foucault (1975) sobre a formação do saber e o poder da normalização na sociedade moderna, apresentadas na terceira parte de Vigiar e punir dedicada à disciplina, referem-se ao livro O homem-máquina, no qual La Mettrie (1747) apresenta o corpo humano como uma máquina que funciona mediante uma mecânica metabólica. O impacto que esse livro causou na sociedade daquela época decorre de sua tese provocativa de que os seres humanos não seriam personagens de um teatro divino, mas sistemas mecânicos autodeterminados. Para Foucault, a tese cartesiana do automatismo dos animais, e a negação de sua alma sensitiva, abriu um vasto debate anátomo-metafísico que se prolongou até a metade do século XVIII, ganhando máxima expressão com a publicação de “O homem-máquina”. Foucault observa, contudo, que La Mettrie também definiu outro registro constituído por um conjunto de regulamentos militares, escolares, hospitalares e por processos empíricos para controlar ou corrigir as operações do corpo, em um âmbito técnico-político. A distinção entre esses dois registros se faz notar pela submissão e utilização do corpo no primeiro caso e funcionamento e explicação no segundo, demarcando a descoberta do corpo como objeto e alvo de poder, durante a época clássica, seja como corpo útil, seja como corpo inteligível.

“O Homem-máquina” de La Mettrie é ao mesmo tempo uma redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, no centro dos quais reina a noção de “docilidade” que une ao corpo analisável o corpo manipulável. É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado. (FOUCAULT, 1975, p. 132)

A novidade reside menos no fato do corpo configurar-se como objeto de investimentos imperiosos e urgentes, preso a poderes que lhe impõe limitações, proibições ou obrigações, do que por certas coerções que o controlam sem folga, mantendo-o no mesmo nível da mecânica, através de um poder infinitesimal:

35 “movimentos, gestos, atitude, rapidez”. O que está em jogo neste controle é a eficácia dos movimentos, sua organização interna; uma coerção ininterrupta, que vela sobre os processos da atividade e se exerce de acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos. “Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõe uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as “disciplinas”.” (FOUCAULT, 1975, p. 132)

Diferente da escravidão, pois não se fundamentam numa relação de apropriação do corpo – diferente da vassalidade, que é uma relação de submissão codificada, porém longínqua que se realiza sobre os produtos do trabalho; ou ainda do ascetismo monástico, que tem por função realizar renúncias e obediências a outrem e o domínio de cada um sobre o seu próprio corpo - o momento histórico das disciplinas visa não apenas o aumento das habilidades do corpo, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente.

Forma-se então uma política de coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica do poder”; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. (FOUCAULT, 1975, p. 133)

No artigo “Por uma genealogia do poder”25

, Machado (1979) observou que o poder disciplinar age através da inscrição desses corpos em espaços determinados, do controle do tempo sobre eles, da vigilância contínua e permanente, e da produção de saber, conhecimento, por meio dessas práticas de poder. Tal noção de disciplina foi retomada no primeiro volume da História da Sexualidade, onde Foucault introduz o conceito de biopoder (e de biopolítica). Se a disciplina age sobre os indivíduos, o biopoder atua sobre a espécie, “no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos” (FOUCAULT, 1988, p. 152).

O sentido que adotaremos neste trabalho para o termo “disciplina” se articula, portanto, com as políticas de coerções que atingem integralmente o trabalho do

25

Roberto Machado organizou a publicação do livro Microfísica do Poder de Michel Foucault que é introduzido por este artigo.

36 aeronauta, capturando-o corporalmente. Os aspectos econômicos de utilidade visados pela indústria aeronáutica aumentam as forças do corpo e as diminuem, conforme as necessidades políticas de obediência através da disciplina. Neste sentido, o corpo do aeronauta, as inspeções de saúde que conferem a sua “aptidão” para o voo, os julgamentos exarados em perícias médicas, com sentenças do tipo “incapaz definitivamente para a atividade aérea”, ou ainda “apto com restrição” 26; sua “capacidade” promovida por adestramentos (ou treinamentos técnicos e não técnicos) que, através de métodos operacionais oriundos, não apenas de práticas intuitivas, mas também por doutrinas formais que descrevem seu corpo e decompõem suas faculdades mentais, numa convergência instituinte e instituída através de disciplinas tais como a human factors.

Veremos que nos discursos sobre o trabalho na aviação, existem certos critérios meticulosamente definidos para avaliar o desempenho do piloto, potencializar suas habilidades, ou refreá-las ao máximo numa relação de sujeição absoluta. A padronização de seus comportamentos, gestos, ações e reações; a universalização da comunicação em um só idioma, o Inglês; o regime de trabalho organizado em escalas; a preparação estética das comissárias, seus uniformes, as aulas de boas maneiras, de maquilagem, enfim, todas essas técnicas minuciosas, mas de suma importância porque definem certo modo de investimento político e detalhado do corpo, esquadrinhando-o, desarticulando-o e recompondo-o em cada momento através de uma “microfísica do poder”. Para Machado, a disciplina, “é o diagrama de um poder que não atua do exterior, mas trabalha o corpo dos homens, manipula seus elementos, produz seu comportamento, enfim, fabrica o tipo de homem necessário ao funcionamento e manutenção da sociedade industrial, capitalista”. (Machado, 1979, XIX)

Atuando em um cenário tecnológico e disciplinar, a racionalidade objetiva e a universalização de processos prescritivos determinarão uma tendência que se espraia por todos os setores da aviação e que exerce forte influência sobre as transposições de modelos objetivos de análise de inspiração tecnicista aplicados ao trabalho humano. Conforme já observamos, as leis da natureza aplicadas ao mundo físico a partir de certas aproximações resguardam o seu caráter estável e necessário, mas pela natureza contingente das relações humanas, não seria possível tratar todas as atividades dos

37 trabalhadores a partir dos mesmos modelos ou métodos de análise derivados das ciências naturais, ou mesmo das práticas de gestão administrativa e financeira. As normas aplicadas aos homens não repousam sobre bases invariantes e universais e nem se acomodam a fenômenos objetiváveis ou a-históricos, porque são instituídas a partir de um jogo dinâmico baseado na política, na vontade e no poder. Se a maior parte do trabalho desenvolvido na indústria aeronáutica deriva de estudos realizados no campo das ciências da natureza, e se suas aplicações em diversos segmentos tecnológicos não trazem problemas para o campo da engenharia aeronáutica, o mesmo não ocorrerá com campo da atividade humana.

Claro que os sistemas técnicos misturam de maneira complexa o uso de leis da natureza e de leis científicas e implicam maneira de fazer funcionar esse sistema, uma maneira de antecipar a organização do trabalho. Mas não podemos identificar tudo como leis da natureza, o que é diferente. Claro que, com a força das leis científicas, as tecnologias exercem essa fascinação, e se impõem por causa disso. Temos que ajudar os engenheiros a compreender que a engenharia tem uma racionalidade puramente técnica, mas que, em cada situação de trabalho, essa racionalidade não basta; para implementar o sistema concebido, é preciso considerar sempre as racionalidades da atividade. (SCHWARTZ, 2006, p. 464)

Acreditamos que o ideal de supremacia da racionalidade objetiva, regulado não apenas pela razão, mas também pela disciplina, favoreceu a simplificação do entendimento do trabalho do aeronauta a partir da lógica da hierarquia descendente, ao ponto de reduzir os “fatores” humanos a elementos técnicos e objetivos. Ao apoiarem-se unicamente nos métodos de organização do trabalho, a atividade humana torna-se oculta pelo conjunto de procedimentos que regulam o setor aéreo e quando a singularidade dessa atividade é apontada sua apreensão serve apenas para explicar as falhas operacionais pelo descumprimento das prescrições. De modo geral, haverá uma desconexão entre as funções de gestão e execução do trabalho e cada vez mais as decisões são tomadas longe da realidade do “chão de fábrica”.

Nesse enfoque, é expectativa dos administradores o comando total da cena laboral, na qual os trabalhadores exerceriam meros papeis de representantes de uma vontade que lhes é exterior (...). A “maquínica” do trabalho busca engolir os corpos e anular suas diferenças, tentando transmuta-los assim em massas informes, sem rosto e sem nome; apenas força de trabalho a ser dirigida por uma vontade exterior, alienante e arbitrária, mas que se insinua como sendo própria daquele a quem invade e captura, o que não significa (...) que esse processo se desenrole sem lutas. Acreditamos em uma interferência criadora dos humanos permanentemente presente

38

no universo do trabalho. No curso das atividades, não há passividade; há microdecisões e mudanças, mesmo em pequenas escalas. (FONSECA; BARROS, 2010, p. 102)

Para Michel Jouanneaux, experiente piloto aposentado pela Air France, o distanciamento entre os diferentes setores que organizam e executam as operações aéreas parece aumentar com o passar dos anos. As trocas de experiência estabelecidas entre os pilotos não ocorrem mais do mesmo modo que no tempo em que começou a atuar como comandante, entre os anos de 1972 e 1975, quando pôde se beneficiar do capital profissional transmitido por seus companheiros (JOUANNEAUX, 2002). Segundo ele, nessa época o trabalho do piloto era bem diferente do modo como hoje é organizado, pois o enquadramento regulamentar explícito não tinha prevalência sobre o ofício artesanal. A divisão de tarefas e funções era objeto de uma preparação cuidadosa da tripulação e o copiloto podia fazer a aproximação27 e até mesmo o pouso por instrumentos, tendo o apoio do comandante ao seu lado, que controlava e monitorava todo o processo através da voz e por gestos.

Agora, estas aproximações estão sujeitas a procedimentos muito sistemáticos, intimamente entrelaçados às exigências de formalização da competência e à necessidade de seguir a lógica de funcionamento e supervisão de sistemas automatizados. O que antes procedia diretamente da consciência situacional agora procede da obrigação de seguir uma prescrição cuja correspondência com o contexto nem sempre é evidente.28 (JOUANNEAUX, 2002)Tradução nossa.

Mas apesar da gestão administrativa das companhias aéreas decompor as operações em etapas, segmentando o trabalho do aeronauta em partes interdependentes, em missão a tripulação enfrenta a totalidade de cada situação. Há situações conflituosas em que diferentes correntes prescritivas deverão sofrer uma síntese, de modo a restabelecer a perspectiva adequada em que a decomposição organizacional havia previamente invertido, criando uma coerência imediata com os diferentes contextos, evitando que surja no momento da ação a incompatibilidade entre seus diferentes elementos. Por isso, os pilotos necessitam apreender o fluxo de documentos e precisam

27

As fases mais críticas de um voo são a aproximação para aterrissar e a decolagem. Segundo um levantamento da Boeing divulgado em julho de 2009 com dados de desastres aéreos de 1998 a 2008, 41% dos acidentes ocorrem nas fases de aproximação, quando o avião começa a descida, e pouso. Apenas 16% dos incidentes fatais são registrados durante o voo de cruzeiro, quando o avião está com altitude e velocidade estabilizadas.

28

Ces arrivées sont maintenant l'objet de procédures très systématiques, dans lesquelles sont intimement

imbriquées les exigences de formalisation de la compétence et la nécessité de suivre la logique du fonctionnement et de la surveillance des systèmes automatiques. Ce qui procédait auparavant directement du sens de la situation procède maintenant de l'obligation de suivre une prescription dont la correspondance avec le contexte n'est pas toujours évidente.

39 conhecer as mudanças significativas num tempo razoável antes de suas aplicações para que a homogeneidade da justaposição de diferentes fontes prescritivas não seja uma fonte de problemas operacionais. Tal coerência poderia ser alcançada por profissionais experientes, cuja responsabilidade muito naturalmente seria integrada aos pilotos na gestão das companhias aéreas. Mas Jouanneaux lamenta o fato de que, na prática, isso hoje não ocorre: “Infelizmente eles são neutralizados por sua colaboração com a divisão administrativa e, ao fazer isso, eles perdem a sua perícia sobre a especificidade do funcionamento operacional.” 29 (JOUANNEAUX, 2002) Tradução nossa.

Segundo esse autor, para sair desse impasse seria preciso promover o ponto de vista da atividade, afirmando a vontade de não encerrar a organização sobre suas certezas pré-concebidas, defendendo o princípio de que o trabalho não pode ser organizado totalmente no nível da concepção. A qualquer momento e durante cada missão, devemos dar aos trabalhadores o máximo de recursos para que eles possam desenvolver a melhor consciência da melhor forma possível da situação, dando-lhes o espaço de autonomia suficiente para que sua ação seja natural. A organização da tarefa deve ser preenchida pela organização do trabalho real, quando os trabalhadores se engajam e assumem um compromisso verdadeiro, frente à incerteza das situações reais. Assim, não seria possível compreender as atividades humanas no trabalho sem a consideração dos saberes dos próprios trabalhadores que as realizam, não como executores, mas como pessoas criativas que a reinventam a cada momento.

A perspectiva de análise de Jouanneaux decorre de sua filiação a um grupo formado por trabalhadores de diferentes setores em parceria com professores- pesquisadores de variadas especialidades do conhecimento que no início da década de 1980, na França, na região de Marseille (Université d’Aix-en-Provence) constituiu um coletivo de formação, pesquisa e intervenção, que veio a se denominar Análise Pluridisciplinar de Situações de Trabalho (APST). Os estudos desenvolvidos por esses pesquisadores-trabalhadores nos interessam particularmente por contemplar a análise de situações singulares do trabalho, numa perspectiva que vai ao encontro da problematização que faremos ao longo desta pesquisa. Apesar de não tratarmos de casos específicos vivenciados junto aos trabalhadores consideraremos os principais elementos que caracterizam a abordagem ergológica, para explicitar nossa perspectiva de análise,

29

Malheureusement, ceux-ci sont neutralisés par leur collaboration au découpage administratif et, ce

40 baseando-nos no capítulo intitulado “A perspectiva da ergologia e o campo da saúde mental e trabalho” (ATHAYDE; MUNIZ; FRANÇA; FIGUEIREDO, 2010), do livro Saúde mental no trabalho: da teoria à prática (GLINA; ROCHA, 2010).

Documentos relacionados