• Nenhum resultado encontrado

3. O CO-HABITAR NO JALAPÃO

3.2. O Povoado de Galheiro e os Caretas

No povoado de Galheiro, presenciou-se a reza da sexta-feira da paixão ao sábado de aleluia. Nessa ocasião, acontece a brincadeira dos Caretas, festividade que me levou a esse local. A ocasião da reza durou mais de oito horas, foram várias atividades ao longo da madrugada até amanhecer o sábado de aleluia.

Nos últimos anos, o povoado tem sofrido o êxodo rural em decorrência da mudança econômica da região, com isso, as manifestações culturais agrárias vêm perdendo a força e até mesmo desaparecendo, sendo os Caretas a brincadeira que ainda acontece anualmente.

Ao contrário de Mumbuca onde as casas são concentradas umas próximas às outras e há a centralização das atividades na “praça”, Galheiro tem as casas bastante espalhadas. A distância espacial dificulta a aglomeração de pessoas para a realização de atividades como a Roda-Chata, por exemplo. O local onde acontecem os eventos da comunidade é na casa de Dona Alzira, onde se passou a noite da reza.

Em uma sala ampla, de chão de terra, encontra-se no centro de uma das paredes um altar com uma base feita de barro e coberto por renda em sua superfície. Sobre essa base, há uma estrutura de madeira, semelhante a uma caixa com vidro na frente. Nela são guardados os santos e a bandeira do Divino. Dos dois lados, vasos com flores ajudam a enfeitar o espaço. Atrás, tecido de chita com renda

por cima. E acima, uma prateleira também enfeitada com tecido e flores, e mais santos. Nessa parede, ao redor do altar, encontram-se também imagens de santos coladas a ela. Na sala descrita, as pessoas foram se acumulando até dar início à reza. O terço foi conduzido por Dona Alzira da forma convencional do catolicismo em que as rezas são faladas. As mulheres sentadas ao meu lado a provocavam, reclamando da maneira como estava rezando; todos pareciam incomodados. Eu não entendia o que estava acontecendo até outra mulher assumir a condução da reza. Nesse momento, os cantos entoados traziam rezas que contavam histórias nunca ouvidas antes por mim.

As senhoras mais velhas ficavam mais próximas do altar, e os mais jovens mais ao fundo em uma organização hierárquica do espaço. A devoção demonstrada pelas senhoras já idosas, era maior que a das mulheres e homens mais jovens. Elas usam pano na cabeça em sinal de respeito, permanecem ajoelhadas o maior tempo possível, e o foco do olhar é no altar. Há uma mobilização de seus corpos em direção ao altar que faz com que não se dispersem.

Ao longo da noite foram feitos intervalos na reza, e no primeiro deles uma atmosfera de mistério passou a rondar o ambiente, era o medo da aparição repentina dos Caretas. Era possível ouvir grunhidos que vinham dos lugares escuros ao redor da casa, vultos que passavam correndo, algumas moitas que se mexiam “sozinhas”. Crianças choramingavam de medo, pediam para que suas mães as escondessem. Os adultos entravam no clima da brincadeira, fazendo ameaças ao vento para que os Caretas ouvissem. O medo, a apreensão de andar sozinha, ou de ser surpreendida por um deles, conseguiu chegar em mim como uma sensação forte.

Os Caretas são personagens denominados “fantasmas”, dois homens e uma mulher grávida interpretados por três homens. Os figurinos são compostos de plantas, palhas, e peles de animais; utiliza-se uma máscara feita de cabaça revestida com folha de papel onde são desenhados os olhos, o nariz e a boca. Suas vestes são grandes e utilizam luvas para esconder qualquer indício que possibilite a identificação de seus “atores”. Há a transformação até mesmo da voz, que toma um som grotesco e rouco. Levam à mão cipó para bater nos “ladrões” de prendas, e naqueles que os provocam.

Antigamente, havia também a figura do boi, o qual era confeccionado pelo crânio do gado e a cobertura do corpo era de pele de animal. Não foi possível compreender certamente qual era o papel do boi na festa, segundo os brincantes, ele era “o boi dos Caretas”. A sua ausência é um sinal do enfraquecimento da cultura do povoado, pois segundo os moradores, a festa já não tem mais tanta graça por não ter a mesma quantidade de gente de anos atrás, e, por isso, não há tanta mobilização para a organização da brincadeira.

Durante o dia, é montada a quinta, uma estrutura quadrangular e fechada, feita de bambu. No centro dela, é cavado um buraco fundo onde são escondidas as prendas, um litro de pinga e doces, além de ser “plantada” cana de açúcar. A missão dos Caretas é guardar a quinta. A brincadeira consiste em provocá-los com ofensas verbais fazendo-os abandonar o entorno da quinta para castigar o “ofensor”, facilitando o roubo das prendas. As ofensas desferidas são a respeito de sua aparência feiosa, parecida com um “bicho estranho”, e ao fato de possuírem a mesma mulher que carrega na barriga um filho que nunca irá se descobrir qual dos dois é o pai.

Todos se mobilizam na brincadeira, os homens são mais ativos nas tentativas de invadir a quinta, há muita correria, como um pega-pega entre eles e os Caretas. Muitas das crianças ficam escondidas com medo, outras torcem para que alguém consiga roubar as prendas, ou até mesmo se aventuram a tentar fazê-lo sozinha. As mulheres também ficam na torcida e nas provocações, e eventualmente tentam entrar na quinta.

Quando chegam, após a meia-noite, os caretas percorrem todo o espaço, a estrada, o terreiro diante da casa, o quintal, entram na sala e se ajoelham diante do altar para rezar e reverenciá-lo, e depois se exibem e dançam. Após esse percurso é que se inicia a parte do roubo das prendas, e a brincadeira tem fim quando todos os itens são roubados da quinta, e é quando a reza volta a acontecer.

Com a entrada da madrugada, algumas pessoas cochilam, outras retornam às suas casas. As que permanecem acordadas seguem rezando, com pausas para conversas. É um momento em que a dinâmica do “evento” se torna diferente, a repetição dos cantos faz com que a reza se intensifique, torne-se mais densa e não há mais a dispersão em conversas paralelas. É construído um ambiente de

cumplicidade entre os que resistiram ao sono e ao cansaço, as conversas durante as pausas se tornam mais profundas, são feitos desabafos e dados conselhos.

Nos primeiros sinais de que o dia está começando, Dona Alzira solta rojões para acordar os que foram embora. Aos poucos, todos vão aparecendo, mas a reza só é retomada quando o sol já está alto, por volta das 8 horas. Quem decide esse momento é Dona Alzira, que, ao olhar a altura do sol, identifica se Jesus já “ressuscitou” ou não.