• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

2.2. L ÍNGUA , C ULTURA E D IMENSÃO I NTERCULTURAL DE ENSINO DE LE

2.2.4. O próprio e o estranho em LE: uma relação dicotômica

“O estranho só é estranho no lugar estranho”.20

Karl Valentin21

Verificamos atualmente uma grande preocupação por parte de alguns lingüistas, como por exemplo, Rogajopalan (2003, p.105), com uma Lingüística Aplicada crítica, que não se mantenha apenas no mundo acadêmico, mas participe do mundo comum dos mortais. Para

20

Fremd ist der Fremde nur in der Fremde 21

isso, ela deve agir em duas frentes: primeiramente, questionando a própria validade de teorização e da sua aplicação no mundo prático. Em segundo lugar, ela deverá proporcionar aos aprendizes capacidade de desenvolver formas de resistência e lhes dar condições de enfrentar os desafios, bem como decidir o que é melhor para si, evitando, por exemplo, o que o autor estabelece como foco importante, o imperialismo lingüístico (op. cit., p. 112).

Entendemos a melhor compreensão do outro, e também de si, como condição necessária para o desenvolvimento da capacidade crítica de aprendizes. Mas o que, ou quem é o outro?

Podemos afirmar que o outro é aquele que se opõe ao eu. Existe uma série de marcas apresentadas pelo outro como outra pessoa, com, por exemplo, outra estatura, outra cor e tipo de cabelo, outro sexo, outra cor de olhos, tipo, outro nariz, outra forma de vestir, e tantas outras marcas.

Para reconhecermos as características da “alteridade” faz-se necessário percebermos a distinção entre as características de caráter corporal-natural e as de caráter sócio-cultural (Weinrich, 1998). As características naturais corporais não necessariamente registram um estranhamento. O mesmo pode-se dizer das características sócio-culturais, pois como uma pessoa se veste, como ela mora, pode ser percebido como sinais interessantes que marcam um indivíduo ou um grupo. Dessa forma, podemos concluir que o outro, não necessariamente causa “estranhamento”; não é a alteridade que marca o “estranho”.

Quando pessoas desejam falar umas com as outras, mas não são capazes, por falarem línguas diferentes; a língua do “outro” pode se apresentar, num primeiro momento, como estranha. Todavia, também a língua estrangeira não tem necessariamente a característica do estranho. Na verdade, sabe-se que duas pessoas são capazes de se comunicar mesmo uma não tendo conhecimento da língua da outra: por meio de gestos, de outra língua estrangeira, do olhar, ou mesmo de um tradutor. A língua estrangeira pode soar familiar e assim, por vezes,

apesar de não se ter o conhecimento dela, é possível concluir-se alguns sentidos, alguns significados de textos ou discursos. Nessa situação, a LE é outra, mas não estranha.

A nossa questão central é o estranhamento (Fremdheit). O estranho é definido pela interpretação que se faz do outro como tal; o que torna o outro instigante é o outro como estranho, é a interpretação do outro como estranho em relação dialética ao próprio.

O autor Bausinger (1998) afirma que o estranho não é nada que seja objetivo. Ele não parece estar em coisas concretas como em paisagens, em objetos, mas na verdade trata-se de uma atribuição que nasce no plano subjetivo. Quando afirmo que algo é estranho, isso significa que é estranho para mim, para o próprio. Por essa razão, o estranho não é sempre estranho, visto que ele pode se relativizar, suavizar, ou se deslocar.

Weinrich (1998) aponta também para uma questão importante sobre as crenças quanto à língua–alvo: para ele, o estranhamento da língua estrangeira é o maior inimigo da didática de LE. Deve-se desvendá-lo muito bem, para ser possível combatê-lo de forma eficaz.22 Ressaltamos que o autor, em sua afirmação, não considera o fato de que, em alguns casos, o estranhamento pode significar também desafio ao aluno, e por essa razão, ter a motivação como efeito positivo. Porém, o autor enfatiza aquele estranhamento que leva ao distanciamento, afastamento do outro e falsos julgamentos e vemos aí a relevância da afirmação. O estranhamento é uma questão de interpretação e também o estranhamento das línguas estrangeiras se comprova como interpretação cultural (op.cit. 1998) e pode (mas não sempre) levar ao distanciamento.

Muitas pessoas privilegiam o próprio e desvalorizam o que é do estranho. Esse fenômeno já é bastante conhecido há muitos anos no campo da sociologia como etnocentrismo. Porém, o que os estudos de Wierlacher et.al (1998) nos evidenciam é que esse outro não é necessariamente o estranho. Interpretamos a alteridade segundo princípios

22

Die Fremdheit der Fremdsprachen ist die groβe Feindin der Fremdsprachendidaktik und man muss sie gut ausprähen, um sie wirkungsvoll bekämpfen zu können.

individuais, segundo lembranças culturais, nossos medos, nossa esperança e damos assim um sentido de estranhamento específico.

Todorov (1995, citado por Dornbusch, 1999) reconhece quatro fases na compreensão do outro:

1. Num primeiro momento, assimila-se o outro a si próprio, existindo apenas uma identidade: eu mesmo. Organizo culturas distintas das minhas de acordo com a minha própria e o meu conhecimento do outro é apenas quantitativo e não qualitativo.

2. Numa segunda fase, elimina-se a própria identidade em benefício do outro, eliminando minha subjetividade. Aqui também temos uma única identidade, a do outro.

3. Nessa fase reassumo minha própria identidade, mas busco de todas as formas compreender o outro. Minha exotopia (noção de não pertencimento à outra cultura) produz conhecimento qualitativo e não quantitativo. Concluo que meus valores são tão relativos quanto os do outro. A dualidade, aqui, substitui a unidade, sendo que o eu estabelece-se como diferente do outro.

4. Na última fase, o conhecimento do outro determina o conhecimento do outro e de mim próprio; interagindo com o outro, meus conceitos se transformaram de forma a responder pelo outro e por mim.

Em outro trabalho, Todorov (1996, citado por Dornbusch, 1998) distingue três planos de alteridade: o axiológico, o praxiológico e o epistêmico. Como mencionamos anteriormente (item 2.1.4) no primeiro plano, axiológico, apresenta-se um julgamento de valor acerca do outro, no sentido ele é bom, ou mau, eu gosto, ou não gosto dele, ele é inferior, ou igual a mim (corresponde à primeira fase de sua divisão anterior). No eixo praxiológico, identifico- me com os valores do outro ou não, conferindo primazia à minha própria identidade (correspondendo às segunda e terceira fases). No eixo epistêmico, ocorre o conhecimento e compreensão da alteridade. As fases descritas pelos autores referidos serão retomadas no decorrer deste trabalho, por terem caráter bastante relevante em relação ao escopo desta pesquisa.

Hogrebe (1998), por sua vez, distingue três negações centrais, para se afirmar que algo é estranho (fremd) 23 a alguém: a negação do pertencimento, a negação de um conhecimento e

23

a negação de uma confiabilidade. O primeiro caso refere-se à negação do pertencimento de coisas ou pessoas a grupos, classes, porções objetivas. No segundo, não se trata de questões objetivas, mas de negação de um conhecimento que o falante próprio não possui. No terceiro caso a referência pode se dar em três níveis: algo se tornou estranho para mim, algo é ainda estranho, ou algo não me é mais estranho.

Temos aqui um dos objetivos centrais do ensino intercultural: o desestranhamento do estranho. Com relação à língua-alvo, Almeida Filho chamou esse processo de desestrangeirização da língua estrangeira (Almeida Filho, 1993, p.7). Nessa perspectiva, busca-se não apenas no campo lingüístico, mas também no campo cultural, maior sensibilização para as diferenças, para a compreensão e para a tolerância e a reflexão acerca da própria identidade.

Bassinger (2005, citado por Rösch, 2003) aponta para a importância de se considerar o fato de que, para que se possamos agir de forma sensível e bem-sucedida em uma relação intercultural, é necessário refletirmos e conhecermos a própria identidade, pois assim como a visão do outro, a visão de si mesmo é um fator que irá exercer grande influência nas relações interculturais.

Nos estudos da compreensão do outro é atribuído grande destaque a Alois Wielacher (1990, 1994, 1998) um dos responsáveis pela constituição da Interkulturelle Germanistik, ou Germanística Intercultural, como parte da ciência da cultura que ocorreu nos anos 80. O autor foi também um dos fundadores, em 1984, na Alemanha, da Sociedade Interkulturelle Germanistik (GIG: Gesellschaft für Interkulturelle Germanistik), que se ocupa ainda hoje em desenvolver estudos que estabeleçam uma relação entre a própria cultura e a cultura alheia em relação dialética (Wielacher et. al, 1996). Para autores como Wielacher (1996), Volkmann et.al. (2002, p.7), trata-se de um novo campo de pesquisa com objetivos de aprendizagem político-sociais no âmbito do conhecimento de culturas.

Em nosso entendimento, a competência intercultural irá possibilitar o desenvolvimento da capacidade de manejo das diferenças, de compreensão do outro e do próprio e de tolerância no confronto entre culturas. Reconhecemos, por esta razão, sua grande relevância e dedicaremos, assim, o próximo item, para a discussão de alguns de seus fundamentos.