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3. OS PRINCÍPIOS DA NOVA CONCEPÇÃO DE FAMÍLIAS

3.3 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

A Constituição Federal de 1988 elegeu expressamente a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil. É o que se vê do art. 1°, inciso III, CRFB17.

Trata-se de princípio geral do direito invocado em diversos ramos do do direito. Não seria diferente no direito de família.

Como bem lembrou Carlos Roberto Gonçalves, “o direito de família é o mais humanos de todos os ramos do direito” (GONÇALVES, 2014, p.22), e por isso, há que se invocar a dignidade da pessoa humana como princípio norteador da família.

Nessa senda, arremata o autor:

“O princípio do respeito à dignidade da pessoa humana constitui, assim, base da comunidade familiar, garantindo o pleno desenvolvimento e a realização de todos os seus membros, principalmente da criança e do adolescente” (GONÇALVES, 2014, p.23).

17 Nesse sentido (grifos nossos):

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania; II - a cidadania

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Nos mesmos termos, Maria Helena Diniz ainda acrescenta que o princípio da dignidade da pessoa humana guarda relação com a afetividade, alcançando tanto a família biológica quanto a família socioafetiva, sem qualquer tipo de distinção (DINIZ, 2013).

Fato é que a dignidade da pessoa humana é inerente ao sujeito. Como a constituição da família envolve a relação entre pessoas, logo, a dignidade da pessoa humana sempre estará incidindo sobre a família.

O princípio ora em análise é tão elementar que chega a ser invocado como “a maior conquista do Direito brasileiro nos últimos anos” (GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, 2014, p.75). Isso porque, para os autores, enquanto princípio solar do nosso ordenamento, trata-se de uma norma que assegura a vida plena, sem intervenções desnecessárias de qualquer natureza.

Ou seja, se a dignidade da pessoa humana consiste em um princípio de garantia de uma vida plena em busca da felicidade, com respeito à dimensão existencial dos indivíduos, viola o referido preceito qualquer tentativa fútil, moral ou desnecessária de impossibilitar a formação da família.

Não há que se falar, por óbvio, que diversas circunstâncias justificam a impossibilidade de contrair matrimônio, por exemplo. Veja-se o caso do vínculo de parentesco18.

Diferentes são as hipóteses em que o mero valor moral e religioso, o padrão social e até a opinião pessoal dos indivíduos passam a constituir barreiras contra a formação de famílias. É o caso das uniões homoafetivas, por exemplo. No decorrer de décadas, para não dizer séculos, milhares de famílias estavam lançadas à marginalidade, sem qualquer amparo e proteção estatal, apenas pelo fato de a moral

18 Código Civil:

Art. 1.521. Não podem casar:

I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil; II - os afins em linha reta;

III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante; IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive; V - o adotado com o filho do adotante;

VI - as pessoas casadas;

VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.

e a religião negar a possibilidade de uniões afetivas entre pessoas do mesmo sexo. Essas circunstâncias, como se percebeu, repercutia na atuação legislativa e judicial, o que culminou em anos de silêncio e morosidade.

Porém, em corajosa decisão19, fundada na garantia de respeito à dignidade da pessoa humana, o Supremo Tribunal Federal entendeu ser possível a tutela das uniões afetivas entre pessoas do mesmo sexo, aplicando-se para os(as) companheiros(as) as mesmas disposições atinentes à união estável, regulada pelo Código Civil.

Como se vê, a dignidade da pessoa humana constitui princípio de eficácia plena para a garantia ao respeito às dimensões existenciais dos indivíduos, bem como das suas escolhas que não sejam incompatíveis com a própria ordem constitucional. Nesse sentido, indica Claudia Mara Viegas com precisão:

“A dignidade da pessoa humana transcende o direito, por isso, desempenha o papel de Princípio Constitucional Civil, constituindo-se uma norma jurídica atuante nas relações entre particulares, notadamente, na família. Mostra-se expressa como uma cláusula geral, que vem protegendo e ampliando as possibilidades de determinado direito” (VIEGAS, 2017, p.79).

Ocorre que, infelizmente, sua aplicação ainda não alcançou total plenitude. Assim como as uniões homoafetivas, outras modalidades de arranjos familiares ainda estão relegadas ao desprezo da não regulamentação, sendo para muitos consideradas ilegais. É o caso, por exemplo, das uniões estáveis simultâneas, objeto central deste trabalho, que para parte da doutrina e jurisprudência, são relações afetivas não tuteladas pelo ordenamento jurídico.

A despeito de entendimentos contrários, com fulcro à dignidade da pessoa humana, este trabalho acredita na aplicabilidade do referido princípio para proteger essas relações, que não passam de escolhas de vida que nada tem de incompatível com a ordem constitucional. Muito pelo contrário. Trata-se de exercício da autonomia privada, outro princípio a seguir estudado.

Na defesa das famílias poliafetivas, outra espécie de família plural, Claudia Mara Viegas sinaliza a dignidade da pessoa humana como fundamento para a tutela deste arranjo familiar também estigmatizado:

“Fato é que a elevação da dignidade da pessoa humana, como fundamento da República, consagrou a primazia dos valores existências sobre os

patrimoniais, razão pela qual tal princípio se mostra como fundamento basilar para justificar o reconhecimento das famílias poliafetivas” (VIEGAS, 2017, p.81).

Pelo exposto, entende-se que a dignidade da pessoa humana enquanto princípio norteador do direito de família, constitui instrumento hábil a justificar o reconhecimento de famílias fadadas ao escanteio no jogo da vida. Ao longo da história, como foi visto, deixamos muitos núcleos familiares jogados ao desprezo da ilegalidade. Foi assim com as uniões informais - hoje uniões estáveis - bem como com a família monoparental, bem com as uniões homoafetivas.

Festeja-se que a dignidade da pessoa humana tenha alcançado esses lares. No entanto, ainda há muito o que se avançar. As famílias simultâneas, não menos importantes, não menos famílias, merecem o mesmo grau de respeito e proteção, como defende este trabalho.