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O princípio da norma mais favorável na legislação 91

O princípio da norma mais favorável, embora inicialmente elaborado pela doutrina trabalhista, encontra positivação legal em diversos ordenamentos jurídicos – entre os quais, por certo, destaca-se o português.

De fato, em Portugal, a antiga Lei do Contrato de Trabalho (LCT), de 1967, estabelecia em seu art. 13.º, n.º 1 que “as fontes de direito superiores prevalecem sempre sobre as fontes inferiores, salvo na parte em que estas, sem oposição daquelas, estabelecem tratamento mais favorável para o trabalhador”. Referido dispositivo era complementado pelo art. 6.º da Lei dos Instrumentos de Regulamentação Colectiva (LRCT, Decreto-Lei n.º 519-C1/79), segundo o qual as convenções coletivas não poderiam “contrariar as normas legais imperativas” ou “incluir qualquer disposição que importe para os trabalhadores tratamento menos favorável do que o estabelecido por lei”.

O favor laboratoris, aliás, era o norte de todo o sistema de fontes laborais em referido diploma: o art. 15.º da LRCT estabelecia que os direitos adquiridos durante a vigência de determinada convenção coletiva de trabalho só poderiam ser pontualmente reduzidos por novo instrumento de regulamentação coletiva e, ainda, se aludido instrumento fosse globalmente mais favorável do que o anterior; o art. 14.º estipulava que o contrato de trabalho somente poderia afastar normas legais e cláusulas de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho para estabelecer regime mais favorável ao trabalhador; o art. 14.º, n.º 2 b indicava o favor laboratoris como critério de solução de conflitos na concorrência entre duas convenções coletivas de trabalho; finalmente, eram comuns referências ao princípio do favor laboratoris em normas de direito intertemporal, visando a salvaguardar regimes mais favoráveis previstos em lei anterior.

Em 2003, entretanto, ocorre verdadeira revolução em tal orientação normativa.

Com efeito, o Código do Trabalho de 2003 contempla severa limitação ao princípio da proteção, especificando, no art. 4º, n.º 1, que “as normas deste Código podem, sem prejuízo do disposto no número seguinte, ser afastadas por instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, salvo quando delas resultar o contrário”. No mesmo sentido, o art. 533.º – sucessor do supramencionado art. 6.º da Lei dos Instrumentos de

Regulamentação Colectiva –, o qual, a despeito de continuar a prescrever que as convenções coletivas não poderiam “contrariar as normas legais imperativas”, deixa de acrescentar que aquelas tampouco podem incluir qualquer disposição com tratamento menos favorável para o trabalhador em relação ao estabelecido por lei.

Embora o art. 4.º venha previsto sob a epígrafe “Princípio do tratamento mais favorável”, consagra mitigação a tal princípio, ao permitir sejam normas do Código do Trabalho afastadas pela negociação coletiva, ainda que in peius, exceto quando o legislador tenha proibido expressamente o afastamento.294 Como salienta Pedro Romano Martinez, essa proibição pode tanto ser absoluta – caso das normas imperativas de conteúdo fixo, que, por conterem valores de ordem pública, não admitem qualquer derrogação, in melius ou in peius – quanto relativa – como, e.g., nas normas parcialmente imperativas, que apenas admitem derrogação in melius.295

A postura do art. 4.º do CT/2003 seria, posteriormente, repetida na reforma do Código do Trabalho, ocorrida em 2009. Com efeito, o art. 3.º de aludido diploma – agora sob a epígrafe “Relações entre fontes de regulação” – em princípio dispõe que “as normas legais reguladoras de contrato de trabalho podem ser afastadas por instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, salvo quando delas resultar o contrário”, analogamente ao diploma anterior (número 1). Em seguida (número 3), porém, especifica as matérias que apenas admitem derrogação in melius pela negociação coletiva, a saber: a) Direitos de personalidade, igualdade e não discriminação; b) Proteção na parentalidade; c) Trabalho de menores; d) Trabalhador com capacidade de trabalho reduzida, com deficiência ou doença crônica; e) Trabalhador estudante; f) Dever de informação do empregador; g) Limites à duração dos períodos normais de trabalho diário e semanal; h) Duração mínima dos períodos de repouso, incluindo a duração mínima do período anual de férias; i) Duração máxima do trabalho noturno; j) Forma de cumprimento e garantias da retribuição; l) Capítulo sobre prevenção e reparação de acidentes de trabalho e doenças profissionais e legislação que o regulamenta; m) Transmissão de empresa ou estabelecimento; n) Direitos dos representantes eleitos dos trabalhadores.

294 Segundo João Leal Amado, trata-se de gritante caso de “publicidade enganosa”, visto que “o rótulo do preceito não encontra a devida correspondência no respectivo conteúdo” (AMADO, João Leal. Tratamento mais favorável e art. 4.º, n.º 1, do código do trabalho português: o fim de um princípio? In Revista Evocati, n. 19, jul. 2007. Disponível online em http://www.evocati.com.br/evocati/artigos.wsp?tmp_codartigo=132. Acesso em: 31/08/2014).

295 M

As alterações ocorridas no ordenamento português no que tange ao princípio da norma mais favorável serão analisadas em momento próprio.296 Por ora, basta reconhecer que aludido sistema jurídico talvez seja, até hoje, o que melhor consagra a atuação de referido princípio na interação das fontes trabalhistas.

Na Espanha, o princípio da norma mais favorável foi inicialmente reconhecido por doutrina e jurisprudência297; apenas em 1976, seria introduzido no direito positivo pelo art. 4.1 da Ley de Relaciones Laborales (LRL, Ley 16/1976) enquanto método de solução de antinomias normativas, nos seguintes termos: “En el supuesto de

concurrencia de dos o más normas laborales, tanto estatales como pactadas, se aplicará aquella en la que se den las circunstancias siguientes: a) Que, apreciadas en su conjunto, resulte más favorable para el trabajador”.298 Nada se falava, como se vê, a respeito da inderrogabilidade relativa das normas trabalhistas – referido critério apenas atuava como solução para conflitos entre normas.299

O preceito viria a ser repetido no art. 3.3 do atual Estatuto de los

Trabajadores, segundo o qual “Los conflictos originados entre los preceptos de dos o más normas laborales, tanto estatales como pactadas, que deberán respetar en todo caso los mínimos de derecho necesario, se resolverán mediante la aplicación de lo más favorable para el trabajador apreciado en su conjunto (...)”.300

Assim como em Portugal, na Espanha também existem, atualmente, inúmeras discussões acerca da amplitude do princípio do favor nas relações entre lei e negociação coletiva. Não por outra razão, a Lei nº 11/1994 transferiu diversas competências normativas, antes alocadas à legislação, para o âmbito da autonomia coletiva., modificando dispositivos do Estatuto dos Trabalhadores. A matéria também será abordada com mais vagar em outro momento deste trabalho.301

296 Cf. infra, capítulo 4.

297 Nos acórdãos STS (6ª), de 30 de junho de 1966, Ar. 3636 e STS (4ª), de 29 de setembro de 1966, Ar. 3916, citados por UGUINA, Jesús R. Mercader. La silenciosa decadencia del principio de norma más favorable... Op. Cit., p. 21.

298 “Em matéria de concorrência entre duas ou mais normas laborais, tanto estatais quanto negociadas, se aplicará aquela em que se deem as circunstâncias seguintes: a) Que, apreciadas em seu conjunto, resulte mais favorável ao trabalhador” – tradução livre.

299 Consoante bem exposto por U

GUINA, Jesús R. Mercader. La silenciosa decadencia del principio de norma más favorable... Op. Cit., p. 21.

300 “Os conflitos originados entre os preceitos de duas ou mais normas laborais, tanto estatais quanto negociadas, que deverão respeitar, em todo caso, os mínimos de direitos necessário, se resolverão mediante a aplicação da mais favorável para o trabalhador, apreciada em seu conjunto (...)” – tradução livre.

Na França, o princípio do favor é atualmente consagrado pelo art. L. 2251-1 do Código do Trabalho, in verbis:

Art. L. 2251-1: Une convention ou un accord peut comporter des stipulations plus favorables aux salariés que les dispositions légales en vigueur. Ils ne peuvent déroger aux dispositions qui revêtent un caractère d'ordre public.302

No mesmo sentido, reconhece-se a positivação do princípio no art. L. 2241-1 – o qual disciplina a relação entre instrumentos de negociação coletiva e contrato de trabalho:

Art. L. 2254-1: Lorsqu'un employeur est lié par les clauses d'une convention ou d'un accord, ces clauses s'appliquent aux contrats de travail conclus avec lui, sauf stipulations plus favorables.303

Ademais da disposição legal, o favor laboratoris é expressamente reconhecido pelos Tribunais franceses, como o Conseil constitutionnel, o Conseil d'Etat e a Cour de cassation. Nesse tom, o Conseil constitutionnel, em diversas decisões, considera que o princípio do favor deve ser elevado à categoria de princípio fundamental do Direito do Trabalho, mas não possui valor constitucional (Decisão de 13 de janeiro de 2003).304

Na Itália, mesmo diante da inexistência de regulamentação específica acerca dos contratos coletivos305, a legislação também consagra expressamente o princípio da norma mais favorável.

Em verdade, o princípio do favor veio consolidado em solo italiano já em 1924, quando da primeira regulamentação em matéria trabalhista: o art. 17 da Lei sobre Emprego Privado (Regio Decreto Legge 13 novembre 1924, n. 1825 – convertido na Lei n. 562 em 18 de março de 1926) previa que “Le disposizioni del presente decreto saranno

osservate malgrado ogni patto in contrario, salvo il caso di particolari convenzioni od usi

302 “Uma convenção ou um acordo pode conter estipulações mais favoráveis aos empregados do que as disposições legais em vigor. Eles não podem derrogar disposições que apresentem caráter de ordem pública” – tradução livre.

303

“Uma vez que um empregador esteja vinculado às cláusulas de uma convenção ou de um acordo, essas cláusulas se aplicam aos contratos de trabalho concluídos por ele, salvo estipulações mais favoráveis” – tradução livre.

304Decisão disponível em http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/les-

decisions/acces-par-date/decisions-depuis-1959/2003/2002-465-dc/decision-n-2002-465-dc-du-13-janvier- 2003.854.html, acesso em 08/11/2014.

più favorevoli all’impiegato e salvo il caso che il presente decreto espressamente ne consenta la deroga consensuale” (grifou-se).306

Posteriormente, a Lei nº 741, de 1959, voltou a mencionar o princípio no art. 7, nos seguintes termos:

Art. 7. I trattamenti economici e normativi minimi, contenuti nelle leggi delegate, si sostituiscono di diritto a quelli in atto, salvo le condizioni, anche di carattere aziendale, piu' favorevoli ai lavoratori.

(...)

Alle norme che stabiliscono il trattamento di cui sopra si puo' derogare, sia con accordi o contratti collettivi che con contratti individuali, soltanto a favore dei lavoratori. (grifou-se).307

Atualmente, o favor laboratoris pode ser encontrado no art. 40 do Statuto

dei Lavoratori, o qual consagra a regra da impossibilidade de alteração da legislação in peius ao dispor que “ogni disposizione in contrasto con le norme contenute nella presente legge è abrogata”, mas que “restano salve le condizioni dei contratti collettivi e degli accordi sindacali più favorevoli ai lavoratori”.308 No mesmo sentido, há menção ao princípio no art. 1, parágrafo 2º, do Decreto Legislativo nº 151, de 26 de março de 2001 (Testo unico delle disposizioni legislative in matéria di tutela e di sostegno della maternità

e della paternità), que ressalva a aplicabilidade de disposições mais benéficas ao

trabalhador, previstas em contratos coletivos, em detrimento daquelas constantes do Testo

unico.

No Brasil, embora não haja previsão expressa do princípio da norma mais favorável, este pode ser extraído de alguns dispositivos legais, a saber: art. 620 da CLT (“As condições estabelecidas em Convenção quando mais favoráveis, prevalecerão sobre as estipuladas em Acordo”); art. 428, §2º, da CLT (“Ao menor aprendiz, salvo condição mais favorável, será garantido o salário mínimo hora”); art. 3º, II, da Lei 7.064/82 (“A empresa responsável pelo contrato de trabalho do empregado transferido

306 “As disposições do presente decreto serão observadas, a despeito de qualquer pacto em contrato, salvo o caso de particulares convenções ou usos mais favoráveis ao empregado e o caso em que o presente decreto expressamente consinta a derrogação consensual” – tradução livre.

307 “Os tratamentos econômicos e normativos mínimos, contidos nas leis delegadas, substituem-se àqueles contidos em atos, salvo as disposições, ainda que de caráter empresarial, mais favoráveis aos trabalhadores (...). As normas que estabelecem o tratamento acima podem ser derrogadas, seja por meio de acordos ou contratos coletivos, seja por meio de contratos individuais, apenas a favor do trabalhador” – tradução livre. 308

“qualquer disposição contrária às normas previstas na presente lei é revogada (...) exceto as condições dos contratos coletivos e dos acordos sindicais mais favoráveis aos trabalhadores” – tradução livre.

assegurar-lhe-á, independentemente da observância da legislação do local da execução dos serviços: (...) II - a aplicação da legislação brasileira de proteção ao trabalho, naquilo que não for incompatível com o disposto nesta Lei, quando mais favorável do que a legislação territorial, no conjunto de normas e em relação a cada matéria”).

De qualquer maneira, art. 8º da CLT, ao tratar da integração da norma jurídica trabalhista, determina a utilização de “outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho” – e, consequentemente, do princípio da norma mais favorável – para preenchimento de lacunas da legislação consolidada.

Não por outra razão, aludido princípio é frequentemente invocado pela jurisprudência trabalhista309, bem como consagrado por diversa Súmulas e Orientações Jurisprudenciais do Tribunal Superior do Trabalho.310

309

Consoante se infere dos julgados a seguir: TST - RR: 13452520125090965 , Relator: Kátia Magalhães Arruda, Data de Julgamento: 03/09/2014, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 05/09/2014; TST - AIRR: 2836020115150045 283-60.2011.5.15.0045, Relator: José Maria Quadros de Alencar, Data de Julgamento: 09/10/2013, 1ª Turma, Data de Publicação: DEJT 18/10/2013; TRT-1 - RO: 00016066820125010041 RJ , Relator: Claudia Regina Vianna Marques Barrozo, Data de Julgamento: 22/01/2014, Sexta Turma, Data de Publicação: 03/02/2014; TRT-4 - RO: 00006396920115040010 RS 0000639-69.2011.5.04.0010, Relator: BEATRIZ RENCK, Data de Julgamento: 11/12/2013, 10ª Vara do Trabalho de Porto Alegre; entre outros. 310

A respeito, cf.: Súmula 288, I, TST (“A complementação dos proventos da aposentadoria é regida pelas normas em vigor na data da admissão do empregado, observando-se as alterações posteriores desde que mais favoráveis ao beneficiário do direito”); Súmula 202, TST (“Existindo, ao mesmo tempo, gratificação por tempo de serviço outorgada pelo empregador e outra da mesma natureza prevista em acordo coletivo, convenção coletiva ou sentença normativa, o empregado tem direito a receber, exclusivamente, a que lhe seja mais benéfica”); OJ-SDC-31, TST (“Não é possível a prevalência de acordo sobre legislação vigente, quando ele é menos benéfico do que a própria lei, porquanto o caráter imperativo dessa última restringe o campo de atuação da vontade das partes”); entre outras.

3.3. Relações entre lei e acordos e convenções coletivas de trabalho na