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2. O corpo como assunto das Ciências Sociais

2.2 O problema da agência feminina sobre o corpo

Excetuando Mauss, todos os autores supracitados neste capítulo (e há ainda muitos mais) nos colocam como o corpo da mulher ocupa historicamente uma posição central na própria definição do que é ser mulher e como ele é modificado a partir desta definição, trazendo para elas várias implicações. Só que, de modo geral, nenhuma destas teorias nos explica de maneira coerente o que é feito do poder agêntico feminino nestes processos.

Nenhum destes autores discute a possibilidade de que o corpo de uma mulher

é inalienável da sua própria consciência. Em outros termos: não existe um individuo

que não tenha/seja um corpo e uma consciência. Assim, mesmo em situações de opressão, todas as mulheres têm uma mínima consciência sobre o que pretendem para si mesmas e, portanto, para seus corpos; se querem fugir ou se querem ficar, por exemplo.

O que quero ressaltar, enfim, é que o corpo da mulher é a mulher e na medida em que ela assume determinado curso de ação para si, o está assumindo através de seu corpo. Por mais subjugado ou fisicamente danificado que este corpo esteja, não existe individuo sem corpo, portanto, ser uma pessoa implica, necessariamente, em ser um corpo. Falando do nível de agência das mulheres sobre seus corpos, estamos falando do nível de agência sobre si mesmas. Ou seja, falamos, então, da possibilidade de haver uma margem de autonomia feminina que pode ser mantida mesmo em situações onde esta autonomia é constantemente ameaçada ou fragilizada (mesmo que tal margem seja pequena ou que tal autonomia seja negociada).

Sobre isso, é preciso considerar que Archer nos fala dos poderes causais que a estrutura pode exercer sobre os agentes, por meio daquilo que ela chamou de “restrições e capacitações” (2003). Isso quer dizer que na realidade podem haver limites para o nível agêntico das pessoas, independentemente de suas vontades. De

toda forma, o que intento mostrar aqui é que, mesmo em situações onde determinado curso de ação não seja possível, isso não implica necessariamente que uma dada pessoa se tornará não-agêntica ou pouco agêntica, mas, sim, que sua agência pode ter sido impedida ou minimizada por fatores alheios à sua vontade.

Voltando aos dados empíricos do primeiro capítulo, tomaremos agora um caso como exemplar e, para ajudar o leitor a entender onde está o nosso problema, efetuaremos um exercício contrafactual: foi dito, por exemplo, que segundo pesquisa Datafolha (FOLHA DE SÃO PAULO, 2009), 88% da clientela que se utiliza da cirurgia plástica é do sexo feminino. Esse percentual poderia ser interpretado de várias formas, mas vou torná-las extremas aqui para fins de esclarecimento do problema. Então: se lido através da ótica teórica feminista, este índice, provavelmente, seria entendido como um claro indicador da submissão do corpo feminino, resultado do fenômeno corpo-para-o-outro ou do mito da beleza. Por outro lado, se lido através de uma ótica teórica pós-feminista, provavelmente, este número poderia ser interpretado como indicador de que as mulheres estão mais livres para modelarem seus corpos conforme lhes aprouver, de que o girl power25 permite esta liberdade e que, portanto, isso pode demonstrar que as mulheres têm mais desenvoltura para modificar seus corpos. Em suma, o que intento mostrar com essas duas leituras hipotéticas é que o que vemos acerca da discussão teórica sobre mulheres e corpos é um verdadeiro embate “hipo-agência” X “hiper-agência”, o qual, por vezes, parece querer “dobrar” a realidade de forma muito intensa, até que ela “caiba” na teoria. Guardadas as devidas proporções, é um pouco essa a sensação que eu tenho ao ler os dois modelos teóricos; um “aperta” demais, o outro “folga” demais. Por isso mesmo, após estas leituras, as minhas perguntas continuavam: onde está a agência real das mulheres em relação aos seus corpos e aparências? Como ela funciona? De que maneira a estrutura influi nisso?

Ao colocar esta crítica, não pretendo nem recair no erro do anacronismo e, muito menos, no da presunção acadêmica e assumo que todas essas teorias são absolutamente basilares na discussão da autonomia feminina sobre os corpos, alicerçando minha própria discussão. Apenas aponto que suas lentes teóricas estavam ou voltadas para os poderes estruturais que agem sobre as mulheres ou para a força do poder individual feminino. E aqui, eu pretendo problematizar tanto o

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“o poder das garotas”; termo criado pelo grupo musical inglês Spice Girls e que servia para enaltecer e alardear a juventude feminina e o seu suposto poder.

alcance e a intensidade dos poderes transformadores ou de resistência que estas mulheres podem ou querem exercer, quanto o alcance e a intensidade dos poderes da estrutura.

Assim, dadas as “extremizações” encontradas nas teorias, assumi que nenhuma das duas “correntes” (feministas e pós-feministas) dava conta de resolver o problema da agência feminina. Daí minha imersão, num nível teórico mais geral, na discussão agência-estrutura e, mais profundamente, na obra de Margaret Archer. Essa teórica, sem nenhuma filiação feminista assumida, possibilita vislumbrar um equilíbrio plausível entre o alcance da agência feminina (humana) e a força exercida pela estrutura. Sua teoria permite construir a hipótese de que os seres humanos e, portanto, as mulheres, tenham uma capacidade (parcial) de monitorar e processar a realidade à sua volta, agindo ativamente em relação a ela - inclusive em seus mecanismos mais naturalizados, caso isso seja realmente de sua vontade. A responsável por essa nossa capacidade agêntica no mundo seria, então, a reflexividade.

Sustentando esta hipótese, para que a idéia de sujeitos ativos se esclareça, o próximo capítulo será inteiramente dedicado à teoria de Margaret Archer.

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APÍTULO TRÊS

AT

EORIA DE

M

ARGARET

A

RCHER

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