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O problema da origem da negação em Que é metafísica?

No tópico anterior, destacamos que de 1912 a 1914 há, por parte de Heidegger, a preocupação de pensar a negação, a partir de sua inextrincável relação com o juízo, no âmbito das doutrinas judicativas vigentes, sem, no entanto, questionar a sua origem ontológico- metafísica. Com efeito, não está no horizonte imediato do filósofo formular a questão fundamental, e impensada, de considerar o sentido, o juízo e a negação, a partir de seus fundamentos pré-lógicos. É o início da década de 1920, em contrapartida, que marca o rompimento do filósofo com a teoria do juízo, à medida que a questão pelo sentido de ser, e o projeto da ontologia fundamental por ela presidido, passa a nortear seu caminho de pensamento. Em compasso com a exigência de originariedade estabelecida pela Seinsfrage e pelo método fenomenológico por ela requerido, o juízo deixa de ser o âmbito privilegiado para a abordagem da negação, de modo que o problema central é a origem da negação, isto é, a pergunta pelo fundamento da possibilidade de sua estrutura interna, de sua essência42.

42 Reis abordou rigorosamente este ponto, ao defender a tese de que “a hermenêutica da negação concretiza-se como uma investigação sobre a origem” (REIS, 2014, pp. 232-241).

Não por acaso, na preleção Que é metafísica? (1929), o problema fundamental sobre a origem da negação a partir do nada não apenas é expressamente levantado como também ganha tamanha relevância que surge a necessidade de determinar a fonte mesma da negação lógica. Ao domínio da teoria do juízo permaneceria inacessível o âmbito originário do qual a negação retira sua condição de possibilidade. Em virtude disso, cumpriria à ontologia, presidida pelos fenômenos do nada e do ser, trazer à luz a gênese do sentido próprio de estruturas tais como negação e juízo, mais concretamente, do juízo negativo. Mas vejamos como este argumento é desenvolvido por Heidegger na passagem sobre a origem da negação, em WM:

O que testemunha de modo mais convincente, a constante e difundida, ainda que dissimulada, revelação do nada em nosso Dasein, que a negação? Mas, de nenhum modo, esta aproxima o “não”, como meio de diferenciação e oposição do que é dado, para, por assim dizer, colocá-lo entre ambos. Como poderia a negação também produzir por si o “não” se ela somente pode negar se lhe foi previamente dado algo que pode ser negado? Como pode, entretanto, ser descoberto algo que pode ser negado e que deve sê-lo enquanto afetado pelo “não” se não fosse realidade que todo o pensamento enquanto tal, já de antemão, tem visado o não? Mas o “não” somente pode revelar-se quando sua origem, o nadificar do nada em geral e com o isto o próprio nada foram arrancados de seu velamento. O “não” não surge pela negação, mas a negação se funda no “não” que, por sua vez, se origina no nadificar do nada. (...) Com isto está demonstrada, em seus elementos básicos, a tese acima: o nada é a origem da negação e não vice-versa, a negação a origem do nada. Quando a potência do entendimento se encontra assim esgotada no campo da questão do nada e do ser, então se decide, dessa forma também, o destino do domínio da “lógica” no interior da filosofia. A própria ideia de “lógica” se dissolve no turbilhão de uma interrogação mais originária (WM, 36-7).

Na primeira sentença interrogativa, há a declaração de que o nada não é – como podemos, a princípio, pensar – um fenômeno completamente oculto e obscuro para a existência humana, cuja primordial expressão de ser é indicada pelo termo Dasein (cf. SZ, 12). Por não ser alheio ou extrínseco ao modo de ser da existência humana, haveria para ela uma revelação – mesmo que difusa e dissimulada – do fenômeno do nada, testemunhada pela negação lógica, em rigor, pelo juízo negativo. Não obstante, logo em seguida, podemos notar a ressalva de que a negação, por si só, é incapaz de vincular ao que é dado a partícula de que ela própria faz uso para negar: o “não”, definido como elemento de diferenciação e oposição do que é dado.

Da oração interrogativa subsequente, estamos autorizados a inferir que, para algo ser negado, impõem-se, como condições prévias, que algo seja descoberto, isto é, seja dado e que o pensamento, de antemão, intencione a partícula negativa. Assim, não é a própria negação que realiza a diferenciação e oposição daquilo que é dado, mas sim uma estrutura mais fundamental

sobre a qual se funda o próprio ato de negar: o “não”. Contudo, o “não”, por seu turno, tem a sua possibilidade de revelação condicionada por um fenômeno ainda mais originário: o desvelamento do nada, ou melhor, a nadificação do nada. Na medida em que a negação demanda a manifestação prévia de seu correlato, algo dado, ela, especificamente, pressupõe que este algo se mostre como tal, sob a determinação da “possibilidade de ser diferenciado”, numa expressão de Reis (2008, p. 135).

No tocante à demonstração da tese de que o “nada é a origem da negação e não o contrário”, por ora, basta destacar – já que este ponto será desenvolvido no último tópico de nosso capítulo – que o nada é frequentemente pensado como um modo específico da negação lógica, como um conceito derivado da partícula negativa (“não”). Não obstante, como mostramos acima, a negação lógica é incapaz de engendrar a manifestação prévia de seu correlato, algo dado, e nisto consiste seu caráter derivado ou secundário. Para haver algo dado que possa ser negado, é necessária a prévia descoberta do ente segundo um modo de ser, ao qual, afirma Heidegger, pertence o nada (cf. WM, 35). Justamente porque o fenômeno do nada se mostra constitutivo das modalidades de ser, que possibilitam a descoberta do ente, isto é, de algo dado e passível de ser negado, é que ele não pode ser derivado da negação lógica; são, ao contrário, o juízo negativo e a partícula negativa que supõem o nada.

Parece legítimo, portanto, inferir que uma investigação sobre a origem da função da negação como um tipo de juízo (S não é P), deve se conduzir pelo estabelecimento das condições ontológico-metafísicas mais básicas que permitem a descoberta de algo dado, e suscetível de ser negado. O foco de um estudo da origem da negação não seria, portanto, a negação per se, mas os fundamentos por ela exigidos para articular a diferenciação ou a oposição entre sujeito e predicado no nível lógico. Seriam estes, precisamente, os operadores conceituais e argumentativos que, para nós, autorizariam Heidegger a retirar do problema da origem da negação o corolário da dissolução da ideia de lógica no campo de uma investigação ontológico-metafísica mais originária sobre os fenômenos do ser e do nada. Desse modo, ao partir da noção de origem para formular a questão da negação, Heidegger pretende demonstrar o caráter derivado do núcleo estrutural da lógica, o juízo, em relação ao ser e ao nada.

Por conseguinte, pretendemos analisar, no tópico seguinte, como ocorre este processo de derivação, enfatizando o caráter secundário de cada um dos elementos (sujeito, predicado e cópula) do juízo negativo, em relação às estruturas ontológico-existenciais da compreensão e da interpretação, pelas quais algo dado e passível de ser negado se torna acessível de modo pré- lógico. A análise será conduzida desde a perspectiva da abordagem do juízo realizada por Heidegger no § 33 de SZ. Tal enfoque se justifica pela razão de que a tematização acerca do

“enunciado43 como modus derivado da interpretação” conduz, consoante o registro de Lazzari, “à dissolução da concepção tradicional do juízo como núcleo fundamental da lógica” (2012, p. 117). Assim, o § 33 de SZ se mostra particularmente destacado porque nele está, por um lado, presente a mesma atitude crítica em relação à lógica, ou seja, à teoria do juízo, que aquela observada em WM e, por outro, está contida uma explicitação indireta desta crítica em seus elementos básicos. Isto é bem ilustrado por Heidegger no argumento subsequente: “O que é como tal articulado na interpretação, e o que de antemão é delineado como articulável na compreensão em geral, é o sentido. Na medida em que o enunciado (“o juízo”) se funda na compreensão e exibe uma forma de execução que deriva da interpretação, ele também “tem” um sentido. Este não pode ser definido, porém, como algo que ocorre “em” um juízo junto ao ato de julgar” (SZ, 153-4).

2.4 A origem do juízo negativo a partir dos fenômenos ontológico-existenciais da