• Nenhum resultado encontrado

3.2 Os procedimentos convencionais de monitoramento

3.2.1 O procedimento convencional não-contencioso

O procedimento convencional não-contencioso, instaurado pelo mecanismo dos relatórios,

éo mais antigo dentre os adotados no âmbito da ONU. Possui um caráter conciliatório, buscando proteger os direitos humanos não através de medidas coercitivas, mas por meio da promoção da

95 PIOVESAN, Flávia. Op. cit. p. 157.

96 RAMOS, André de Carvalho. Processo internacional de direitos humanos – análise dos sistemas de apuração das

violações de direitos humanos e a implementação das decisões no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 119-148.

97 RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 122.

atividade cooperativa dos Estados. Ora, se um Estado, soberanamente, aderiu a um tratado que lhe impõe obrigações internacionais em matéria de direitos humanos, é não só seu dever observar tais obrigações, mas também seu interesse prestigiar um sistema ao qual estão submetidos também outros Estados, segundo uma lógica de cooperação internacional. O procedimento convencional não-contencioso funciona, portanto, mormente como um apelo ao bom senso dos Estados, uma vez que suas decisões, que têm caráter de mera recomendação, são destituídas de caráter vinculante98.

Os relatórios são informes, a serem examinados pelo Comitê estabelecido pelo tratado que os prevê, nos quais os Estados-partes devem informar as medidas legislativas, judiciais e administrativas adotadas no plano interno com vistas a proteger os direitos humanos consagrados por aquele tratado. Pelo caráter não-contencioso do procedimento que deflagra, a sistemática dos relatórios é o mais difundido mecanismo de monitoramento previsto pelos tratados internacionais de direitos humanos, figurando em muitos instrumentos normativos como o único mecanismo cuja adoção independe da necessidade de aceitação expressa por parte do Estado99.

A periodicidade com que os relatórios devem ser elaborados varia conforme o tratado. Mas pode-se dizer que o primeiro deles, via de regra, deve ser submetido até um ano após a ratificação do instrumento – e depois disso, além do intervalo estabelecido por cada tratado, sempre que o respectivo Comitê solicitar. Assim, por exemplo, pela Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, o primeiro relatório deve ser entregue até um ano após a ratificação; o segundo relatório, a contar da entrega do primeiro, no prazo de quatro anos; e, a partir daí, a intervalos de dois anos, além de sempre que o Comitê solicitar.

Chegando ao respectivo Comitê, os relatórios são examinados pelo conjunto de especialistas independentes que atuam nesse órgão, afigurando-se não apenas possível, mas mesmo desejável, o estabelecimento de um diálogo entre esses especialistas e o Estado sob escrutínio, visto que o princípio a orientar o sistema de relatórios é o da cooperação

98 Idem. Processo internacional de direitos humanos – análise dos sistemas de apuração das violações de direitos humanos e a implementação das decisões no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 121.

99 O único instrumento normativo do sistema global de proteção dos direitos humanos a estabelecer como de adesão obrigatória outro mecanismo, que não a sistemática de relatórios, é a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, que prevê as comunicações interestatais no seu art. 11 e seguintes.

internacional.100 Nesse mesmo diapasão, são possíveis as intervenções, durante o processo de

análise dos relatórios, de outras fontes de informação, as quais fornecem um aporte extra de credibilidade aos informes estatais.

Após esse processo de deliberação cooperativa, o Comitê elabora um parecer sobre a situação dos direitos humanos no Estado que submeteu o relatório, podendo inclusive fazer sugestões de medidas que poderiam ser adotadas com vistas a corrigir eventuais problemas. Alguns Comitês, segundo André de Carvalho Ramos, têm não apenas feito sugestões, mas também oferecido interpretações sobre o conteúdo dos tratados, o que gera protestos por parte de alguns Estados, que alegam ser da competência exclusiva dos Estados a interpretação dos tratados dos quais são signatários. Trata-se, de todo modo, de um “avanço no grau de proteção internacional dos direitos humanos, já que [...] fortalece a responsabilização internacional do Estado”101 Esse parecer, com todas as observações finais feitas pelo Comitê, é posteriormente

remetido à Assembléia Geral da ONU – destinatária final, aliás, de informes anuais produzidos por todos os Comitê sobre as atividades por eles desempenhadas durante o ano.

São basicamente três as críticas dirigidas pela doutrina ao procedimento convencional não-contencioso.102 Critica-se, em primeiro lugar, a sua inflexibilidade para lidar com situações

urgentes de violação aos direitos humanos. Trata-se de um processo cooperativo, lento por natureza, e com baixíssima capacidade de implementar suas resoluções. Uma tentativa de suprir essa deficiência é a prática, já adotada por alguns Comitês, de promover inspeções in loco nos países em que há indícios de violações graves. O exemplo talvez mais simbólico dessa medida seja o do Comitê contra a Tortura, que tem competência inclusive para iniciar ex officio uma investigação confidencial sobre o respeito às obrigações previstas no seu respectivo tratado. Esbarra, contudo, na necessidade de autorização do Estado sob escrutínio.

Uma segunda crítica é quanto à dependência dos Comitês em relação às informações fornecidas pelos Estados. Supõe-se, não sem razão, que os relatos dos Estados podem ocultar situações potencialmente constrangedoras perante a comunidade internacional. A já mencionada possibilidade de se obterem fontes extras de informação, de modo a se depurarem os informes estatais, é uma medida que busca atenuar esse problema.

100 RAMOS, André de Carvalho. Processo internacional de direitos humanos – análise dos sistemas de apuração das violações de direitos humanos e a implementação das decisões no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 121. 101 Ibid. p. 126.

Por fim, e essa talvez seja a principal deficiência do procedimento, critica-se a sua falta de vinculatividade. O procedimento convencional não-contencioso não produz decisões que logrem suplantar o caráter de meras recomendações, apresentando força jurídica suficiente para se impor aos Estados, uma característica aliás que decorre diretamente do seu cunho conciliatório. Na falta desse caráter vinculante, o procedimento pode ser mais efetivo por meio daquilo que a doutrina chama de controle horizontal, ou seja, o controle feito pela própria comunidade internacional, sobretudo através de pressões econômicas, embargo, boicote etc.103 Há também, nesse mesmo

sentido, o power of embarassment, constrangimento moral imposto ao Estado violador por meio da publicidade internacional de sua conduta atentatória aos direitos humanos.104