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O processo de transmissão linguística irregular no Brasil

Capítulo 2 – Aspectos sociolinguísticos do português do Brasil: passado

2.3 A formação do português do Brasil

2.3.3 O processo de transmissão linguística irregular no Brasil

Como destacamos no capítulo 1, o processo de aquisição de L2 envolve vários fatores que interferem no seu resultado final. Diferentemente do processo de aquisição de uma língua materna, o estágio final da L2 quase nunca converge totalmente com a língua-alvo (Gonçalves, 2010; Flores & Barbosa, 2014). Como salientamos, uma mudança linguística durante o processo de aquisição de L2 pode ser ainda mais acelerada e significativa se estiver inserida em um contexto de contato de línguas mais radical (Thomason, 1997). Alguns dos dados sócio-históricos destacados nas seções anteriores revelam o grande papel dos africanos no desenvolvimento da identidade brasileira, que inclui a sua língua. Dessa maneira, o PB vernáculo resulta de um contexto de contato linguístico com uma preponderância quantitativa de falantes de L2, que adquiriram a língua de forma imperfeita. Essa caracterização do PB é resumida por Mattos e Silva (2004: 107):

A língua portuguesa, na sua variante brasileira, predominantemente nas variantes populares e vernáculas, mas não apenas nelas, deve as suas características inovadoras, em geral simplificadoras, em relação ao português europeu, tanto no plano sintático como fônico, à forma como foi aprendida pela massa populacional predominante ao longo do período colonial: como segunda língua; com modelos defectivos da língua-alvo, a do colonizador, mas não tão defectivos que propiciassem a formação de um crioulo estável e generalizado; na oralidade; sem o controle normativo da escolarização.

Com essa definição do que levou ao PB vernáculo, a seguir detalharemos mais os processos que deram origem a essa variedade do português.

Para caracterizar o processo de aquisição do português pelos aloglotas nas terras brasileiras, Lucchesi (2008, 2009, 2012, 2013) utiliza o conceito de “transmissão

linguística irregular do tipo leve”. Esse conceito abrange a correlação do grau das mudanças induzidas pelo contato linguístico com o grau de exposição à língua-alvo. Segundo ele (2008: 164), se a ampliação

do acesso à língua-alvo ocorre antes que os processos de gramaticalização e de transferência do substrato se consolidem na variedade linguística que se forma na situação de contato, o processo de crioulização é sustado e, ao invés de uma língua crioula, forma-se uma variedade popular da língua dominante, o que nós temos chamado de processo de transmissão linguística irregular de tipo leve. Essa variedade mantém basicamente todo o arcabouço estrutural da língua dominante. Os processos de gramaticalização são muito raros, quando não ausentes, e a característica mais proeminente dessas variedades é um quadro de ampla e profunda variação no uso dos elementos gramaticais sem valor referencial, como as regras de concordância verbal e a flexão de caso dos pronomes pessoais.

Através desse conceito de “transmissão linguística irregular”, Lucchesi (2013), diferenciando a formação de uma variedade popular de uma língua de superstrato de uma situação de crioulização, realça a importância de algumas noções chave, tais como erosão gramatical, eliminação e variação. Para o autor (2013: 212), a erosão

gramatical está presente tanto na crioulização, concebida como uma situação de

“transmissão linguística irregular do tipo radical”, quanto na situação da “transmissão irregular do tipo leve”, variando somente o grau. Uma das diferenças cruciais estaria no fato de que na formação de línguas crioulas ocorre a eliminação de elementos gramaticais sem valor informacional ou sem saliência fonética, enquanto que no caso da “transmissão irregular do tipo leve” há uma grande variação no uso desses elementos gramaticais, sem ocorrer uma eliminação total. Segundo Lucchesi (2013), além de esse conceito interpretar de uma forma mais apropriada a formação das variedades populares da língua portuguesa no Brasil, pode também dar conta dos casos intermédios dentro do amplo e complexo contexto de contato linguístico de uma forma abrangente. Ou seja, esse conceito “pode dar conta de um amplo espectro de contextos sociolinguísticos presentes na história do inglês, espanhol e do português na América, para além das situações típicas de crioulização, que se concentraram na

região do Caribe e seu entorno” (Lucchesi, 2013: 212). Esse conceito seria

corresponde ao que Holm (2009: 93) designou como reestruturação parcial.

Inseridos em contexto de contato de línguas, os aloglotas, sobretudo os africanos, ao adquirirem o português de forma imperfeita em uma situação de “transmissão irregular do tipo leve” fizeram uso dos processos inerentes a uma aquisição de segunda língua. Muito provavelmente, elementos desnecessários para

podem ter sido simplificadas ou ter sido usadas de uma maneira bastante variada. O processo de transfer, como indicamos no capítulo 1, é utilizado para suprir algumas falhas na comunicação (Siegel, 2008). Certamente, os africanos no Brasil transferiam, não só o léxico, mas muitas das propriedades gramaticais das suas línguas maternas, para tentar compensar as falhas nas variedades do português que falavam, adquiridas de forma não ideal. Como a maioria dos africanos era de origem banta, é plausível concluir que algumas das propriedades dessas línguas africanas foram transferidas para as variedades do português faladas pelos africanos no território brasileiro. Em suma, os africanos levados ao Brasil, como aprendizes e falantes de L2, em um contexto multilingue e através de uma aquisição irregular, não teriam como não modificar a língua portuguesa nas suas “vozes”.

Então, eram essas variedades do português, adquiridas pelas primeiras gerações de africanos no território brasileiro através de um modelo imperfeito, de uma “transmissão linguística irregular”, que os afrodescendentes nascidos em terras brasileiras estavam mais expostos. Dessa forma, as crianças das gerações seguintes, na criação das suas gramáticas internalizadas, passaram a regular a variação, eliminando, recompondo e reanalisando os elementos estruturais da língua. E foi essa variedade do português reestruturada parcialmente, falada pelas gerações seguintes na amplitude do território brasileiro, a antecedente direta do português vernáculo brasileiro contemporâneo (Mattos e Silva, 2004; Lucchesi, 2008, 2009; Lucchesi & Ribeiro, 2009; Carvalho & Lucchesi, 2016). A contribuição dos africanos para a formação do português do Brasil pode ser sumarizada através das seguintes palavras de Darcy Ribeiro (1995: 220 apud Mattos e Silva, 2004: 83):

a primeira tarefa cultural do negro brasileiro foi a de aprender a falar o português que ouvia aos berros do capataz. Teve de fazê-lo para comunicar- se com seus companheiros de desterro, oriundos de diferentes povos. Fazendo-o, se reumanizou... conseguindo dominar a nova língua, não só a fez, emprestando singularidade ao português do Brasil, mas também possibilitou sua difusão por todo o território.

Esse processo de formação do português vernáculo brasileiro pode ser ilustrado através do esquema abaixo. Esse esquema, adaptado de Roberts (2007: 390) e retirado de Lucchesi & Ribeiro (2009: 145), esboça o processo de aquisição imperfeita em uma situação de contato linguístico. Entre A e B, podemos ver a relação entre os colonos e os africanos. Nessa relação, os colonos fornecem o input (CorpusN) para a aquisição do português como L2 pelas primeiras gerações de africanos no território

brasileiro. Entre B e C, o input (CorpusD) composto pelas variedades do português adquiridas como segunda língua pelas primeiras gerações (B) é transmitido para a segunda geração (C). Como ressaltamos anteriormente, os dados sócio-históricos revelam que no Brasil houve muito mais condições para se promover o processo de reestruturação do português, mesmo que parcial, do que nos contextos de formação de línguas de contato prototípicas. Assim sendo, ao longo das gerações seguintes, entre C e D, essas variedades do português passaram por reestruturações até originarem o português vernáculo brasileiro, que no esquema é o CorpusPP (português popular) (Lucchesi & Ribeiro, 2009: 145-146).

Finalmente, entendemos também que o conceito “transmissão linguística irregular” que caracterizou a formação do português do Brasil implica uma exposição de longa duração a um input degradado devido ao muito reduzido acesso à escolarização para a grande maioria da população no território brasileiro. O fato de o número dos colonizadores portugueses nunca ter ficado abaixo da faixa dos 30% (ver seção 2.2), juntamente com outros fatores sócio-históricos do Brasil, foi decisivo, como salientamos anteriormente, para inibir um processo de crioulização generalizado no Brasil. Por outro lado, a quantidade do input não teve necessariamente paralelo na qualidade. A confirmação de uma exposição duradoura a uma língua externa imperfeita por várias gerações é encontrada nos dados da escolarização dessa população. De acordo com Mattos e Silva (2004: 40), “o português brasileiro que se constitui no período colonial e no primeiro século de Independência tinha de ser, na sua maciça maioria, adquirido naturalmente, assistematicamente, sem interferência do ensino escolar, como língua transmitida apenas na oralidade generalizada”. Um

analfabetos (Mattos e Silva, 2004: 132). Ainda com base em informações estatísticas sobre alfabetização, os dados referentes à escolarização de Houaiss (1985: 137 apud Mattos e Silva, 2004: 39) demonstram que no Brasil havia apenas 0,5% de letrados até o século XVIII e 20 a 30% em 1920. Isso parece ser o reflexo da política colonial portuguesa, que manteve a colônia no isolamento para melhor exercer seu controle, sem imprensa e escolas superiores, enquanto as colônias espanholas já tinham universidades e imprensa desde o século XVI (Lucchesi, 2012: 49). Com isso, vemos que um input degradado permaneceu de forma duradoura no Brasil colônia, sendo esse input a experiência detonadora para as gramaticas internas das novas gerações nascidas no Brasil.

Assim, nesta seção, abordamos os principais aspectos envolvidos na formação do português vernáculo do Brasil através de uma transmissão irregular. Embora os pontos que foram discutidos aqui evidenciem a grande importância dos africanos na constituição da identidade brasileira, incluindo a língua, esse fato não deixa de ser contestado.