• Nenhum resultado encontrado

2.1) O PROCESSO GLOBALIZADOR E A QUESTÃO DA IDEOLOGIA

A globalização vivenciada hoje acontece ao mesmo tempo em que se presencia uma transformação paradigmática, a do advento da sociedade informacional em complementação ao modelo societário industrial. O avanço tecnológico e científico é considerado uma das características desta nova sociedade e também uma das marcas da globalização.

Tal processo que ocorre hodiernamente, contudo, não pode ser compreendido como uma entidade surgida no final do século XX e de matiz eminentemente econômico, fruto de um acontecimento histórico aleatório, despido de qualquer conteúdo ideológico. Na realidade, a globalização a que hoje se assiste não se traduz, de acordo com Beck (1998, p.170) em “nenhum mecanismo ou automatismo, mas é um projeto político” que objetiva atingir a hegemonia do poder em termos mundiais, a partir de um prisma ideológico preciso: a ortodoxia neoliberal, de acordo com HABERMAS (2003).

Segundo Milton Santos (1999, p. 18):

no âmbito político, delineiam-se formas transnacionais de poder político, por meio da ONU, da OTAN e de organizações multilaterais, assumindo os EUA papel de controle político e militar internacional. No plano das ideologias, o neoliberalismo quer ser o pensamento do fim da História, assumindo uma eterna repetição do presente como sua temporalidade estática.

A globalização contemporânea não é um fenômeno isolado e inédito na história, pois se trata apenas, como pontua ZAFFARONI (2000), de um momento ou realidade de poder, como os anteriormente já ocorridos. Vários desses momentos de poder precedentes no decorrer histórico poderiam igualmente ser entendidos como formas de globalização, que aconteceram sempre a partir do avanço tecnológico de um determinado período, o qual veio a possibilitar uma transformação de paradigma no modo de produção de uma dada sociedade. Sem adentrar no campo da história antiga, é possível assinalar, nos períodos situados a partir da Renascença, duas dessas mudanças paradigmáticas e suas projeções no campo político: a revolução mercantil e o colonialismo (séculos XV e XVI), a revolução industrial e o neocolonialismo (séculos XVIII e XIX), que se constituíram, ainda de acordo com Zaffaroni (ibidem), em duas realidades de poder planetárias do mesmo modo que a revolução tecnológica contemporânea e a globalização nos dias atuais. Todos esses momentos estiveram acompanhados de um discurso legitimador da ideologia do projeto político então apresentado: a supremacia teológica no colonialismo, o evolucionismo racista no neocolonialismo e o pensamento único na globalização contemporânea.

Como demonstrado n´A Ideologia Alemã, há uma relação entre as idéias e a realidade material dos homens, uma vez que Marx e Engels (1996, p. 36) consideram o seu pensar como reflexo de sua conduta material.

A produção de idéias, de representações, da consciência, está, de início, diretamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens, aparecem aqui como emanação direta de seu comportamento

material. O mesmo ocorre com a produção espiritual, tal como aparece na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de um povo. Os homens são os produtores de suas representações, de suas idéias etc.

E mais: Marx e Engels demonstram uma inexorável relação entre ideologia e a política da dominação ao considerar que “a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante” (1996, p. 72). Ou seja, tem-se a ideologia agindo para a permanência de uma dada ordem social. Exatamente por isso, a ideologia assume o cariz de falsa consciência, dissimulando e distorcendo uma dada realidade.

Contudo, há que se estabelecer uma relativização. O momento no qual se elaborou o conceito de ideologia como falsa consciência possui um caráter de descoberta que não pode ser minimizado, uma vez que se trata de uma análise macro-histórica. Formulações posteriores, porém, como as feitas por Lênin, por exemplo, captaram que esse reflexo da estrutura material sobre o pensamento não é mecânico, e nem Marx e Engels o pretendiam, como fica demonstrado em outras obras.

Para GRAMSCI (1995) existe a possibilidade da contra-idelogia. E mais: há ideologias que organizam os homens no campo da luta social e política e são por isso chamadas de orgânicas em contraposição à ideologia como falsa consciência, caracterizada por Marx e Engels.

Coube a Ignacio Ramonet a identificação do pensamento único, que se traduz em um processo coordenado e planificado através do qual todas as idéias que enaltecem a globalização de nossos dias são propagadas por todo o planeta mediante volumosos financiamentos concedidos pelos principais

protagonistas do processo globalizador7 a inúmeros centros de pesquisa, universidades e fundações, políticos, doutrinadores, formadores de opinião, os quais, por sua vez, perfilam-se com a “boa nova” e passam a propagá-la utilizando como repetidores os meios de comunicação de massa, que reiteram tais mensagens, como expõe Ramonet (1997, p. 59), “até a saciedade, sabendo que em nossa sociedade midiática, a repetição vale por demonstração”.

O plano político que caracteriza a globalização contemporânea – igualmente denominada por SOUSA SANTOS (1997) de globalização hegemônica – foi elaborado por seus estrategistas no início da década de 80 do século passado – durante os governos de Ronald Reagan (Estados Unidos) e Margareth Thatcher (Inglaterra) – como resposta à crise estrutural do capitalismo organizado sofrida em razão dos sucessivos “choque do petróleo” promovidos pelas altas do preço deste produto pelos países da OPEP em 1973 e 1978 – quando ocorreu a estagnação dos mercados mundiais bem como a quebra dos padrões de articulação capitalistas com o conseqüente desmoronamento do desempenho do setor econômico. Houve, enfim, uma enorme recessão nos países desenvolvidos o que levou ao colapso dos modelos de “Welfare State” construídos a partir de 1946 e à deterioração do sistema de Breton Woods.8

O capitalismo buscou sair dessa profunda crise apoiado em uma lógica que pudesse propiciar a descoberta de uma nova forma de organização

7

Como por exemplo: Banco Mundial, FMI, OCDE etc.

8 Importante ressaltar, aqui, o “laboratório neoliberal” implantado no Chile, após a tomada do poder por Pinochet, em 1973, o que ocasionou na primeira experiência neoliberal sistemática do mundo. Seguindo a cartilha neoliberal de Hayek, o governo de Pinochet caracterizou-se, entre outros pontos, por sintetizar os rituais neoliberais, como, por exemplo, abertura da economia às importações, repressão sindical, privatizações etc. Além disso, como se sabe, houve a extinção da democracia e a instalação de uma das mais cruéis ditaduras militares do pós-guerra.

da economia, que não dependesse de recursos naturais especialmente escassos – na medida em que o petróleo foi identificado como um fator capaz de levar à desorganização capitalista do pós-Segunda Guerra. A idéia, para FARIA (1997) foi buscar um sucedâneo para o próprio petróleo, e a solução encontrada foi reduzir o impacto do custo da energia e do trabalho no preço final dos bens e serviços. Para tanto foi feita a maximização de investimentos em ciência e tecnologia: novos recursos, novos materiais, novas formas de produção mais econômicas, mais leves, com menor custo.

Assim, como pontua Santos (1999, p. 17):

No âmbito econômico, verifica-se a incorporação do conhecimento científico e tecnológico à produção industrial, tal como os efeitos da energia nuclear, da revolução da microeletrônica e das novas tecnologias das comunicações.

Tal incremento no campo da ciência e tecnologia acarretou também o incremento sem precedentes dos meios de comunicação, com a criação de redes planetárias de transmissão de dados operando na velocidade da luz, possibilitando a criação de novos instrumentos, como Internet, e uma expansão inusitada dos meios de comunicação de massa – particularmente da televisão – que passaram a operar igualmente em escala mundial. Os satélites de comunicação, as fibras óticas e os cabos submarinos formaram a base que incrementou os meios de comunicação de massa em escala planetária, permitindo a comunicação imediata ao redor do mundo. Entre as malhas terrestres e as ciberespaciais, tanto as transmissões como as receptações venceram as barreiras do tempo, colocando em seu lugar uma infra-estrutura de “tempo real” do planeta. Este tempo único de 24 horas elimina a

multiplicidade dos tempos de cada ponto do planeta. Hoje, vivemos em um tempo padronizado, em que percebemos a continuação sem fim do presente.

Em que pese a consideração acima, faz-se necessário um contraponto, através do qual Harvey chama a atenção para o outro lado da questão, o tempo e o espaço como dados culturais que resistem.

O espaço e o tempo são categorias básicas da existência humana. E, no entanto, raramente discutimos o seu sentido; tendemos a tê-los por certos e lhes damos atribuições do senso comum ou auto- evidentes. Registramos a passagem do tempo em segundos, minutos, horas, dias, meses, anos, décadas, séculos e eras, como se tudo tivesse o seu lugar numa única escala temporal objetiva. Embora o tempo na física seja um conceito difícil e objeto de contendas, não costumamos deixar que isso interfira no nosso sentido comum do tempo, em torno do qual organizamos rotinas diárias. Reconhecemos, é verdade, que os nossos processos e percepções mentais podem nos pregar peças, fazer segundos parecerem anos-luz ou horas agradáveis passarem com tanta rapidez que mal damos conta. Também podemos aprender a apreciar o fato de diferentes sociedades (ou mesmo diferentes subgrupos) cultivarem sentidos de tempo bem distintos. (1994, p. 187)

Além disso,

O espaço também é tratado como um fato da natureza, “naturalizado” através da atribuição de sentidos cotidianos comuns. Sob certos aspectos, mais complexo do que o tempo -tem direção, área, forma, padrão e volume como principais atributos, bem como a distância-, o espaço é tratado tipicamente como um atributo objetivo das coisas que pode ser medido e, portanto, apreendido. Reconhecemos, é verdade, que a nossa experiência subjetiva pode nos levar a domínios de percepção, de imaginação, de ficção e de fantasia que produzem espaços e mapas mentais como miragens da coisa supostamente “real”. Também descobrimos que sociedades ou

subgrupos distintos possuem concepções de espaço diferentes. (1994, p. 188)

A partir dessas duas colocações de Harvey, pode-se constatar que tanto o espaço como o tempo podem apresentar sentidos variados, em função do conjunto social que determinam. Porém, ainda que possam vir a se conformar de formas distintas em diferentes sociedades, esses elementos devem ser considerados como constituintes essenciais dessas sociedades. Embora haja uma variação de sua conformação e da maneira como são estabelecidos os vínculos em relação a eles, espaço e tempo possuem uma característica singular: eles não são - na grande maioria das vezes - questionados; é algo estabelecido, dado, que envolve os indivíduos, encerrando-os em seu domínio, submetendo-os e tornando-os vulneráveis a seu “comando”. Tomando-se especificamente a sociedade informacional tem- se claro que o espaço e o tempo representativos dessa sociedade moldam e direcionam a vida dos indivíduos. Terminam por incorporá-los, obrigando-os a se adequarem à sua dependência. Não há neutralidade do espaço e do tempo em relação aos indivíduos, já que tanto um quanto o outro expressam algum conteúdo ideológico.

Ainda para HARVEY (1994), as concepções do tempo e do espaço são criadas necessariamente através de práticas e processos materiais que servem para a reprodução da vida social. Exatamente por isso, há a necessidade da padronização do tempo, a exigência, cada vez mais freqüente, do acompanhar a medida, não andar fora do tempo, como bem pontua Bourdieu (2003, p. 48), que prossegue:

Pertencer ao grupo significa ter no mesmo momento do dia e do ano o mesmo comportamento de todos os outros membros do grupo. Adotar ritmos desusados e itinerários próprios, significa já excluir-se do grupo. (grifos nossos)

Ou seja, na sociedade do conhecimento, os indivíduos submetem-se a um espaço e a um tempo determinados, desenvolvendo uma atividade cada vez mais específica. Dessa forma, o tempo e o espaço nos quais os indivíduos sujeitarão suas atividades são elementos primordiais de seu cotidiano. É a partir deles que os indivíduos erigirão seu presente e futuro, moldarão sua história de vida.

Esta nova lógica de ordem alcançou nível tamanho que os investimentos aplicados no âmbito da ciência e tecnologia foram – e continuam sendo – tão maciços que se verificou que a economia foi substituindo seu eixo prioritário de natureza industrial para um novo padrão: ocorre, deste modo, o deslocamento da sociedade industrial em direção à uma nova forma societária, a sociedade do conhecimento na medida em que a produção industrial passa a ser uma atividade secundária e o planejamento e a pesquisa em ciência e tecnologia, prioritário. Como fruto dessa nova lógica, já entre meados dos anos 80 e início dos 90 do século XX, há uma recuperação das taxas de crescimento da economia.

Entretanto esse deslocamento para o eixo da ciência e tecnologia exige investimentos de altíssimo custo, que foram feitos prioritariamente pelo sistema financeiro. Como este possui uma lógica de maior ganho em menor

tempo possível, a solução encontrada foi a adoção de mercados

transnacionalizados, que operassem em escala mundial, o que levou de um lado à aceleração e intensificação de uma revolução tecnológica-científica, e de

outro à busca de uma planificação total de minimização de riscos desses investimentos maciços feitos em escala global. O mercado não pode, segundo a ideologia da globalização contemporânea, sofrer quaisquer impedimentos ou fatores que venham a desestabilizá-lo.

Os principais protagonistas da globalização hegemônica, “agentes transnacionais e instituições (Banco Mundial, OMC, OCDE, empresas e organizações multinacionais)”, passaram a convergir seu discurso e ações para “fomentar a política econômica neoliberal” em todo o planeta, advogando no interesse de seus fundamentos ideológicos que – sucintamente – defendem não apenas a obediência às leis do mercado mundial, mas, “lamentavelmente, obrigam a minimizar o Estado (social) e a democracia” (Beck, 1998, p. 170).

Sobre essa questão, esclarece Vieira (1992, p. 13) que “para alguns, a sociedade industrial de massas ou a sociedade de consumo de massas é a sociedade democrática.” De acordo com o autor, julgam, portanto, que a incorporação dos indivíduos ao mercado (mesmo daqueles que vivem à margem desse mercado) é fim último da “edificação da sociedade democrática.” Para ele essa integração é importante. Contudo, o que se está considerando é a sociedade democrática, essencial para um Estado de Direito estável.

Para Vieira (1992, p. 13):

Sociedade democrática é aquela na qual ocorre real participação de todos os indivíduos nos mecanismos de controle das decisões, havendo portanto real participação deles nos rendimentos da produção. Participar dos rendimentos da produção envolve não só mecanismos de distribuição de renda, mas sobretudo níveis crescentes de coletivização das decisões, principalmente nas

diversas formas de produção. Fora disso, a participação é formal, ou até mesmo passiva ou imaginária, o que é mais desastroso.

Portanto, pode-se concluir que do ponto de vista real tem-se cada vez menos democracia no mundo, no sentido da substância democrática, que caracterizaria a participação real como componente da cidadania.