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O processo jornalístico condenatório de Zé Dirceu

CAPÍTULO V – Estudos de casos

5.1. O processo jornalístico condenatório de Zé Dirceu

12 de setembro de 2013. O Brasil parava diante dos televisores para assistir àquele que seria o primeiro, dentre muitos, dos julgamentos sediados pelo Supremo Tribunal Federal sobre recursos do “Mensalão”. A alcunha caracterizou um dos maiores esquemas de corrupção do país, um procedimento escuso que entregava dinheiro de origem ilícita a parlamentares, para que estes votassem contra ou a favor de determinados projetos. A maior parte deles envolvia a liberação de verbas para o financiamento de obras e programas que, posteriormente, resultariam na movimentação

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desta máquina criminosa, gerando dividendos que sustentariam a continuidade da ciranda de pagamentos e votações (Folha de São Paulo, 2013).

Tudo funcionaria por tempo indeterminado, não fosse pela delação do deputado federal e então presidente do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), Roberto Jefferson. Em 2005, ele procurou a imprensa e denunciou uma lista de parlamentares que, assim como ele, recebiam uma mesada da organização criminosa que, supostamente, tinha como chefe o Ministro da Casa Civil, José Dirceu de Oliveira e Silva, conhecido como Zé Dirceu.

Desde o ensino secundário, Dirceu foi figura bastante participativa do movimento estudantil e se filiou ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Em 1965, iniciou o curso de Direito na PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo. Foi vice-presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE) e depois, em 1967, presidiu a União Estadual dos Estudantes (UEE).

Em 1968, foi preso em Ibiúna, no interior de São Paulo, durante uma tentativa de realização do 30º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE). Dirceu tinha 22 anos e era presidente da UEE. Nessa época, destacava-se como uma das principais lideranças da categoria e ostentava o status de ícone daquela geração. Em setembro de 1969, foi enviado ao México, com mais 14 presos políticos, em troca da libertação do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick. Durante o exílio, trabalhou e estudou em Cuba.

Em 1975, fugiu para o Brasil e viveu clandestinamente em Cruzeiro do Oeste, no interior do Paraná, até 1979, quando fez cirurgia plástica e adotou nova identidade. Dirceu retornou a São Paulo em dezembro daquele ano, beneficiado pela Lei da Anistia, para ser um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT). Foi deputado estadual na Assembleia Legislativa daquele Estado e, posteriormente, deputado federal, sempre no mesmo partido (Cabral, 2013).

Em 2003, assim que Luiz Inácio Lula da Silva assumiu seu primeiro mandato como Presidente da República, Dirceu foi indicado para ocupar o cargo de Ministro da Casa Civil. Dois anos depois, explodia o escândalo do “Mensalão”.

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Roberto Jefferson, o denunciante do esquema, se dizia arrependido por ter movimentado em sua conta vultosas quantias oriundas destas transações ilegais. A crise na consciência seria o motivo de sua acusação, que logo resultou em apurações em todas as esferas judiciais, além da instauração de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), que julgaria os deputados envolvidos e poderia resultar em cassações de mandatos. Jefferson teria a pena amenizada, como recompensa por ter apontado os comparsas. No Brasil, esta é a chamada “delação premiada”, instituto admitido no ordenamento jurídico.

O protagonismo do PT na política e na crise do “mensalão” foi acompanhado pelo protagonismo da própria imprensa na condução, seleção e amplo destaque dado às denúncias feitas pelo então deputado federal e presidente do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Roberto Jefferson. Desde o início, jornais e revistas que estão entre os principais veículos de informação no Brasil estiveram em cena - ou, se quisermos, fizeram parte da construção da cena que definiu o âmbito e os sentidos da crise. Ela foi inaugurada pela entrevista de Jefferson à Folha de S. Paulo (...), na qual o termo “mensalão” foi utilizado por Jefferson para nomear mesadas que seriam pagas pelo governo para parlamentares. (Biroli e Mantovani, 2014, p. 206)

Na constância do processo, Dirceu viu sua intimidade revirada de todas as formas. Além das incursões oficiais, com ordens de busca e apreensão em sua residência, quebras de sigilos telefônico, fiscal e bancário, o parlamentar passou a ser perseguido pelos papparazzi. Não havia intervalo: Zé Dirceu era notícia, independente do que estivesse fazendo.

Passou, então, a levar uma vida reclusa. Praticamente uma prisão antecipada, num condomínio de Brasília. Foi lá que, em 12 de setembro de 2013, uma representante da imprensa brasileira lançou mão de um dos maiores exemplos de afronta aos regulamentos jornalísticos vigentes.

Marlene Bergamo, da Folha de São Paulo, fez amizade com o vizinho do apartamento cuja sacada ficava em frente à sala de estar de Zé Dirceu. Silêncio absoluto, pé ante pé, foi ao sexto andar do edifício. Lentes a postos, tripé, baterias extras. Dirceu estava a poucos metros de distância, distraído, olhar perdido entre um grande aparelho de televisão e a janela. Reveza-se entre contemplar o horizonte e o próprio julgamento, transmitido em rede nacional. Pela lei brasileira, o réu não precisaria estar no plenário

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naquele momento, o que o permitiu ficar em casa, naquela que julgava ser a imaculada quietude de sua privacidade.

O recurso a câmaras e microfones ocultos e a dissimulação de identidade figuram entre as práticas profissionais eticamente censuráveis. (...) O uso de métodos deste tipo justifica reflexão mais pelo facto de poder traduzir-se em práticas intrusivas da privacidade do que por representar infração à lei, eventualmente passível de exclusão de ilicitude, se legitimada pelo direito à informação. (Martins, 2014, p. 181)

Não sabia Dirceu que, enquanto circulava, de um lado para o outro, dentro de sua residência, Marlene Bergamo aproveitava de sua distração e invadia aquele ambiente particular com suas lentes. Sacou dezenas de fotografias e suprimiu preceitos capitais da profissão.

Sabendo que a mídia é portadora de valores sociais e culturais, questões de ética e conduta profissional são elementos fundamentais na formação de jornalistas e profissionais de informação e comunicação. Essas questões de ética e deontologia estão constantemente sujeitas ao exercício da prática jornalística por esses mesmos profissionais (ou mais exatamente a todas as práticas no jornalismo, na informação, na comunicação), bem como ao apelo ao significado de responsabilidade de jornalistas e editores. (Chaouche, 2012, p. 130)

Na manhã seguinte, a Folha de São Paulo, periódico paulistano fundado em 1921, estampava Zé Dirceu atordoado com o resultado do julgamento, que terminou em 5 a 5, o que ainda não decretava sua sentença. A sessão decidiria sobre a aceitação ou não de embargos infringentes (um recurso que permite que réus que tenham, ao menos, quatro votos favoráveis em apreciação anterior, recebam reavaliação do caso). Marlene Bergamo tratou de fotografar, também, a fachada do apartamento do vizinho, que havia sido tão gentil em lhe conceder espaço para sua intervenção jornalística ilegal. A varanda, em frente ao imóvel de Dirceu, havia se convertido num painel de manifestação, com diversos cartazes: “Fora, Dirceu!”; “Lugar de bandido é na cadeia”; “Bandido bom é bandido morto”; “Dirceu, ladrão, seu lugar é na prisão”, eram alguns dos dizeres expostos ali.

A imagem técnica está intrinsecamente envolvida no plano estético e ideológico, sendo assim necessário estudá-la como representação da realidade. Ou melhor, como produto constitutivo das novas realidades a que a imprensa se propõe. (...) Essas imagens tornar-se-ão objeto de estudo

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das ciências da significação. Assim, a imagem assume a condição de texto na imprensa, o discurso fotográfico juntamente com o texto verbal vem compor uma nova imagem. Dessa forma, a imagem passa a ser um texto e o texto se torna imagem, com isso o sentido do texto final se constrói no espaço discursivo dos interlocutores. (Teixeira, 2003, pp. 38-39)

Outro aspecto importante nesta análise está no relacionamento com a fonte. Ao se utilizar da residência do informante e, ainda, promover a difusão das mensagens afrontosas a Dirceu expostas na sacada daquele vizinho, a jornalista da Folha descumpriu a recomendação clássica de manter certo distanciamento do informante durante a apuração. A matéria publicada, produto final do acordo entre a jornalista e o morador daquele apartamento, deixou transparecer a proximidade e, mais do que isso, até certa amizade entre ambos. Este vínculo corroborou para o contexto da reportagem já que é inegável que o vizinho de Dirceu concedeu não apenas informações, mas acesso ao imóvel e incentivo pessoal para que a invasão da privacidade do político fosse levada a efeito. O jornal deu visibilidade ao clamor da fonte, que se comportou como “vítima, cidadão reivindicador” (Charaudeu, 2009, p. 194), o que certamente abalou a questão da imparcialidade.