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O processo de letramento na constituição identitária do sujeito com a escrita

Passemos, neste momento, para um viés que consideramos relevante na nossa pesquisa, pois está relacionado ao modo como o sujeito se relaciona com a escrita e, consequentemente, aos processos identitários que permeiam essa relação, a saber, o conceito de letramento. Conforme Tfouni (1995), o letramento se caracteriza como uma prática social que considera aspectos sócio-históricos envolvidos na produção e na circulação da linguagem, seja ela escrita ou oral, abrangendo, sem distinção, todos os grupos que vivem numa sociedade letrada. Nessa visão, não há dicotomia entre oralidade e escrita, já que aborda tanto discursos orais como escritos, bem como diferentes gêneros que circulam na sociedade. Seguindo essa perspectiva, Rojo (2001) aponta para relação de complementariedade entre oralidade e escrita estabelecida por meio do letramento:

Portanto, para os indivíduos que crescem dentro do padrão escolar de letramento, o processo começa nas trocas orais familiares e pré-escolares e tem continuidade ao longo de uma escolaridade, em geral, bem sucedida, até a universidade ou pós-graduação. Nesses casos, oral e escrita não se separam tão radicalmente, mas, ao contrário, mantém relações complexas, de hibrização de gêneros e de modalidades. (ROJO, 2001, p. 66)

Todavia, o que vivenciamos como aluna e depois presenciamos como professora, no contato com outros docentes por meio de relatos de suas práticas, é que essa concepção de letramento que deveria ser mantida ao longo de todo um processo de escolarização, muitas vezes é interrompida nas fases iniciais. Geralmente, quando a criança entra na escola, a complexa relação entre oralidade e escrita já sofre uma ruptura, dando lugar a práticas que restringem a alfabetização à aquisição de habilidades distantes das práticas sociais.

Importante destacar que o processo de alfabetização não deve se restringir à aquisição de habilidades de codificação e decodificação, pois dessa forma a aprendizagem fica limitada às práticas escolares, mas deve abranger práticas sociais mais amplas que envolvem a leitura e a escrita dos textos que circulam dentro e fora da escola (PACÍFICO; ROMÃO, 2007). Embora a alfabetização pertença ao âmbito individual, a aquisição da leitura/escrita precisa ultrapassar os limites da escolarização e das práticas escolares, por meio do enfoque de

aspectos sócio-históricos que centralizem mais a esfera social. Assim, a ênfase deixa de ser a língua e passa a ser o discurso e as práticas sociais que o colocam em circulação, o que pode permitir ao sujeito ocupar a posição de autor e se identificar com as suas produções textuais.

Conforme Tfouni (idem), a questão da autoria, sob o olhar do letramento, deve ser considerada tanto em discursos orais como em escritos, pois em ambos a autoria pode aparecer. Segundo essa concepção de letramento, a autoria do discurso pode ocorrer tanto em discursos escritos como em discursos orais, pois devemos considerar que podem existir traços da oralidade no discurso escrito, assim como características da escrita em discursos orais. Logo, temos que essa correlação entre as modalidades da língua contempla, entre os letrados, os sujeitos não alfabetizados e sujeitos alfabetizados com baixo grau de escolaridade. No entanto, o que observamos até aqui, demonstra que os sujeitos-professores que produziram os textos por nós analisados em outro trabalho (CARVALHO, 2008), apesar de terem alto grau de escolaridade, apresentaram dificuldade para controlar a produção textual, deixando a deriva e a dispersão dos sentidos instalarem-se.

Com base na referida pesquisa, somos levados a dizer que, apesar de os sujeitos apresentarem alto grau de escolaridade, apesar de serem sujeitos-professores, apesar de terem produzido um texto narrativo, no qual, de acordo com Pacífico (2002), seria mais fácil de o sujeito ocupar a função-autor, ao término de nossas análises nos deparamos com resultados que vão numa direção oposta a tudo que acabamos de anunciar. Como compreender, então, tais resultados?

Para nós, isso pode ser explicado se considerarmos a complexa relação de sujeito com a escrita, uma vez que não há relação direta entre grau de escolaridade e grau de letramento. As pesquisas de Tfouni (1995) apontam que sujeitos não alfabetizados ocupam a posição de autores na produção de textos orais; por outro lado, os sujeitos da nossa pesquisa eram alfabetizados, mas não ocuparam o lugar de autor na produção de texto escrito.

Aqui consideramos importante discorrer sobre a diferença existente entre o discurso narrativo e o silogismo, este último característico do discurso científico, para melhor compreendermos essa complexa relação entre sujeito e escrita. De acordo com Tfouni, temos que: “Silogismo e narrativa constituem-se em discursos diversos, produtos sócio-históricos que instalam lugares discursivos diferentes, o que determina também um tipo de relação entre sujeito e sentido que não é igual.” (TFOUNI, 1995, p.71).

Ainda com Tfouni (idem), entendemos que as narrativas aparecem como uma alternativa no discurso de sujeitos não alfabetizados frente ao raciocínio lógico-verbal presente no silogismo, característico de discursos científicos. Nesse sentido, a narrativa é privilegiada principalmente por sujeitos não alfabetizados e alfabetizados com baixo grau de letramento, instaurando um lugar discursivo alternativo ao raciocínio lógico-verbal, sendo que este seria utilizado principalmente por sujeitos alfabetizados com um grau médio ou alto de letramento.

O discurso narrativo utiliza mecanismos linguístico-discursivos que procuram transformar a experiência pessoal do sujeito em realidade, a partir da inserção da subjetividade, pois o sujeito ocupa um lugar no discurso para falar de sua história pessoal, acontecimentos significativos de sua experiência de vida, sentimentos, reflexões a partir do seu conhecimento do mundo, etc. Por outro lado, no silogismo, característico do discurso científico, o sujeito procura libertar-se da subjetividade, por meio da objetividade e descontextualização, características atribuídas à escrita e ao letramento.

Outra diferença entre o silogismo e a narrativa, que consideramos também, conforme Tfouni (1995), diz respeito à natureza dos genéricos presentes nos respectivos discursos. No silogismo, os genéricos são empregados com o intuito de ocultar outros sentidos possíveis, a fim de se criar a ilusão da objetividade e verdade completas, controlando a possibilidade de outras perspectivas a partir das quais se fala do objeto, restringindo o campo de conhecimento e interpretação. Em contrapartida, nas narrativas temos a presença de genéricos que não restringem a interpretação, pelo contrário, possibilitam a abertura para diversos olhares e sentidos outros, pois são genéricos que, na maioria das vezes, transmitem valores e crenças culturais.

Diante desses apontamentos, podemos dizer que, nas narrativas, o sujeito ocupa um lugar discursivo a partir do qual pode falar a respeito do objeto sem se preocupar em restringir a sua visão, característica típica dos silogismos, nos quais o sujeito procura apresentar uma visão fechada do objeto, devido ao caráter objetivo da sua produção. Essa mobilidade narrativa de olhares e sentidos permite ao sujeito realizar uma atividade interpretativa que viabiliza uma perspectiva mais aberta para falar do objeto, possibilitando inclusive uma abertura também à dialogia, por estruturar-se a partir de várias perspectivas.

Como o presente trabalho investiga as marcas linguísticas que indiciam a identificação do sujeito-professor com a escrita em textos dissertativo-argumentativos, caracterizados pelo

silogismo,nosso desafio, como analistas do discurso, será buscar indícios de identificação do sujeito-professor com a escrita. Para isso, partimos do princípio de que os traços de subjetividade relacionam-se com o processo identitário. Sendo assim, nossa análise consistirá, também, em observar como o sujeito trabalha a subjetividade em produções de textos dissertativo-argumentativos que têm um caráter objetivo; logo, a subjetividade, como ditam os manuais de redação, deveria ser controlada. Entretanto, a nosso ver, os traços que indiciam a relação do sujeito com a escrita, observados por meio de mecanismos linguístico- discursivos, são capazes de oferecer ao sujeito um lugar no discurso para falar de suas experiências pessoais, profissionais, acadêmicas, de suas reflexões e ocupar um lugar autoral, sem prejudicar a assunção da autoria.