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A Democracia dos Sentidos Políticos 3.1 A formulação discursiva do ideário democrático.

3.2. O Processo Simbólico e o Habitus Político Contemporâneo.

A possibilidade de participação, representação e diferenciação garante aos atores sociais uma condição à mobilização social democrática. Porém, tal ação não se revela apenas como recurso instrumental de busca de fins objetivos, mas também como sentido discursivo de reconhecimento dos agentes sociais, uma vez que a liberdade da ação política está subjacente ao reconhecimento dos atores na esfera pública.

A esfera pública é apresentada como um mercado de opinião de bens simbólicos no qual os diferentes atores se encontram em permanente interação e relacionamento público e político. Tais atores procuram participar do processo de geração da opinião pública e influenciar por essa via as tomadas de decisões, como um dispositivo de pressão ao sistema político que funciona sobre bases políticas de interação social19.

Dentro do campo simbólico da política, podemos reconhecer duas formas de participação: a normativa, referente ao sistema político através do qual se institucionaliza a democracia; e a dos atores de articulações identitárias, como os movimentos sociais e ecológicos, os sindicatos, ONGs, o associativismo civil, dentre outras matrizes discursivas de formações identitárias que se configuram como atores de ação indireta deste sistema, representantes de formas simbólicas de articulação e ação políticas.

Demonstrando com isso formas de produção de conhecimento da política que têm como referência um mesmo capital simbólico de produção de sentido da política, um normativo funcional do mundo sistêmico que entendemos

19 Sobre tal temática há uma ampla literatura que nos disponibiliza informações sobre a potencialidade política e o

vigor com que a sociedade civil ativa vem atuando no processo de mudança da cultura política da sociedade contemporânea, tais como: Costa (1994) “Esfera Pública, redescoberta da sociedade civil e movimentos sociais no

Brasil: uma abordagem tentativa” in. Novos Estudos. SP: Cebrap; Costa (2003) “As Cores de Ercília” , BH:

UFMG; Lavalle, Adrián. (2001) “O Vigoroso modelo da Sociedade Civil Miúda”. Mimeo; Schiochet, Valmor (2000) “Sociedade Civil: O Social, o Político e suas Mediações”. Tese de Doutorado. UNB: Brasília; Melucci, A.; Avritzer, L. (2000) “Complext Cultural, Pluralism and Democracy: colletive action in the public espace”. in

Social Science Information, Columbia University: New York; e, por fim, Vieira, L. (2001) “Os Argonautas da Cidadania: a sociedade civil na globalização”. São Paulo: Record.

(...) como um conjunto de conceitos estruturados por questões como ética, valores, ideologias que orientam condutas, doutrinas e estratégias de ações. Ele é composto de conceitos políticos ou de propostas de ação política, definidos em seu campo simbólico (...) Ao utilizarmos a expressão “Pensamento Político-Normativo” nos referimos a políticas desenvolvidas por um grupo ou grupos, constituído(s) como discurso ideológico objetivo de convencimento, ou seja, uma política partidário-associativa. Fazemos referência a grupos ideologicamente associativos (Partidos Políticos e ONGs.) que se constituem como grupos identitários e coesos caracterizados por uma unificação discursiva. É um campo homogêneo (de saber e de fazer) definido por um discurso unificador e coesivo. (Silva, 1997, p.72)

e outro comum pragmático funcional do mundo da vida, que está circunscrito ao dia a dia vivido pelos atores fora dos espaços sistêmicos e normativos como os movimentos sociais, os espaços de articulações comunitárias, as mobilizações da sociedade civil, etc.

Este espaço simbólico do mundo vivido é constituído por um ambiente de conhecimento comum que se forma pelas representações sociais que têm assim uma vinculação ideológica do ponto de vista político. No que toca, por exemplo, à representação social da democracia vemos que o saber popular dos atores sociais, a partir de suas formações identitárias e o contexto de formação discursiva dos valores políticos, produzem um tipo de conhecimento ancorado em valores simbólicos fortalecidos pela legitimidade social no contexto da esfera pública20.

As questões do mundo sistêmico e do mundo vivido demonstra que o caráter ideológico da política normativamente constituída ou vivenciada pelo senso comum no mundo da vida é produzido em ambos sentidos discursivos e voltado à questão democrática como prática político-participativa.

No que toca ao mundo da vida, diríamos que este se constitui na sociedade como um fenômeno eminentemente vivo de processos sociais e ressignificações de valores, os

20Teoria das Representações Sociais, no que tange à sociologia, indica-nos os recursos operacionais do método de

investigação da epistemologia do processo. Este é um recurso instrumental de investigação que prioriza, sobremaneira, o contexto social e os aspectos relacionados aos indivíduos no universo de análise, ou seja, que busca a identificação do aspecto interativo no qual são construídas relações sociais a partir das condições práticas e simbólicas. Desse modo, esse modelo de análise focaliza quatro pontos fundamentais do processo de formação das representações sociais: 1) o lugar social de produção do conhecimento; 2) o “modus” epistemológico de produção do mesmo; 3) o conhecimento como produto e 4) o sujeito como produtor. Essas definições conceituais são importantes para nossa análise pelo fato de nos possibilitar a investigação das representações sociais a partir da relação entre os atores e as estruturas que envolvem os processos de produção das mesmas. É fato que as representações nos revelam um panorama bastante amplo sobre a temática sugerida, “democracia e participação identitária”, por isso buscaremos seus elementos para identificarmos distintas formações discursivas. Edson Alves de Souza Filho (1993) afirma que a utilização de elementos da Análise de Discurso nas representações sociais é pertinente na medida em que estas são ambientadas nas formações discursivas. Para tanto, ele assevera que uma das tarefas seria examinar as representações como um sistema e delimitar o “corpus discursivo” sobre o qual se estruturam as representações.

quais são provedores de formas diferenciadas de produção simbólicas, de cultura e de conhecimentos sociais através das formas de sociabilidades nas formações identitárias. Ao fazermos tal afirmação, queremos argumentar que na dimensão da vida cotidiana consegue-se criar e desenvolver práticas inovadas, mecanismos táticos e, por que não dizer, estratégias de ações sociais que servem para a manutenção e para a mudança da cultura e do processo político do dia-a-dia na vida social que, por sua vez, se mostra plural e heterogênea sobre as bases do espaço social vivido a partir de um contexto simbólico e comunicativo da política.

O espaço vazio que há entre a esfera social e o sistema político tem sido preenchido por uma ampla e significativa mobilização de sentidos simbólicos em termos de interesses políticos. Os processos sociais vêm ocupando este espaço através das ressonâncias simbólicas, que têm sido fruto de novos significados dados aos modelos de mobilizações já conhecidos no cenário social, e que têm adquirido novas formações identitárias, obra das mobilizações de articulação da sociedade civil política. Nesse sentido, os movimentos sociais e seus novos processos de articulações, locais e globais, têm contribuído em muito para a mudança dos valores da democracia através dos seus exercícios políticos na esfera pública democrática contemporânea.

A discussão sobre o ressurgimento dos atores sociais como forma de participação democrática, tem procurado relacionar a questão do sistema político e a participação política na vida cotidiana dos atores sociais, centrando o enfoque sobre o caráter das formações identitárias como modelos de visibilidade da reestruturação da participação social e política da sociedade. Tal matriz argumentativa é fruto da ressignificação teórica sobre as formas de mobilização dos atores sociais que têm evoluído sistematicamente ante os dispositivos comunicativos da sociedade complexa. A descentralização das formas de interações identitárias proporcionada por mecanismos comunicativos deu novos significados simbólicos a velhos conteúdos identitários, e novas identidades a velhos significados. O espaço público multi-identitário evoluiu no sentido de incorporar novos valores em relação aos significados das lutas sociais e com isso garantir a emancipação política no contexto da esfera pública.

As matrizes identitárias que eram responsáveis politicamente pelas formas de organização social dos velhos movimentos ganharam força política na esfera pública

multi-identitária. É positivo destacar o papel simbólico do histórico de luta dos movimentos sociais na década de setenta e oitenta do século XX, que possibilitou a efervescência política do mundo da vida e conseqüentemente dos atores sociais nele presentes.

No enfoque da discussão sobre essa temática no Brasil, Vera da Silva Telles apresenta o ressurgimento desses atores como responsáveis pela reorganização da sociedade civil. Tais atores desenvolveram práticas políticas de questionamentos, reivindicações, articulações, mobilizações, etc. fazendo com que a sociedade civil se manifestasse num momento em que parecia estar presa por uma “normatividade tecnocrata e repressora que despolitizava e privatizava a vida social” (1987, p. 55). Na reflexão desenvolvida por Telles vemos o papel político da sociedade civil no contexto da produção da cultura política e é a partir dessa forma de análise que se pode verificar a tendência de reestruturação da sociedade civil política como um contexto de interação social de formas de mobilidade e sociabilidade nas articulações populares do tecido social. Como ela própria afirma, “os registros de uma sociedade civil em formação estão presentes na articulação entre movimentos sociais e práticas associativas, direitos e espaços públicos democráticos” (Telles apud Schiochet, 2000, p. 27).

Esta ação da sociedade civil influenciou sobremaneira a reabertura do processo democrático, sendo abordada num dos principais livros, segundo a crítica, sobre o papel desempenhado pelos movimentos sociais na consolidação da reestruturação democrática no Brasil, sob o título de: Uma Revolução no Cotidiano: os novos movimentos sociais na América Latina, organizado por Scherer-Warren e Krischke (1987), que destaca também o papel da formação da democracia de base e o papel das identidades na transição política, fundamentando o processo de produção do conhecimento da política através da cultura do comportamento político dos atores sociais na esfera pública da sociedade civil ativa.

A partir de reflexões como estas é possível visibilizar a relação entre o mundo da vida e o mundo sistêmico, destacando a relação necessária entre estes para o entendimento do sentido de “democracia” constituído como processo de relação entre a sociedade civil política e o sistema político normativo.

A questão principal desse contexto reflexivo é como entender a noção contemporânea sobre a sociedade civil e qual a relevância política desse conceito perante a complexidade social, o processo de descentralização política e a fragmentação dos interesses identitários na sociedade globalizada e glocalizada em que as matrizes discursivas são fragmentadas e conectadas em redes reestruturando novos significados simbólicos e novas formações discursivas.

Nesse contexto, a abordagem do campo simbólico da política é fundamental para tal propósito, assim como seu caráter de representação e formação discursiva como base da produção de sentido da democracia. Podemos dizer que tal processo tende a reformular as condições do habitus democrático (como disponibilidade de conhecimento político-participativo produzido e compartilhado nas formações identitárias) que se constitui no campo simbólico da política.

Compreendemos este campo simbólico da política como um lugar social de ações identitárias e formulações discursivas. Este se funda a partir de uma lógica de relações de interesses que lhe são pertinentes e que se apresenta sob a forma de regras, valores, costumes e tipologias lingüísticas, configurando uma estética própria e uma autonomia relativa em relação a outros campos.

No que toca a noção de “campo” Bourdieu afirma que “A teoria da economia dos campos permite descrever e definir a forma específica de que se revestem, em cada campo, os mecanismos e os conceitos mais gerais (....)”. Sendo assim, para ele “Compreender a gênese social de um campo, é apreender aquilo que faz a necessidade específica da crença que o sustenta, do jogo de linguagem que ele joga, das coisas materiais e simbólicas em jogo que nele se geram, é explicar, tornar necessário, subtrair ao absurdo do arbitrário e do não-motivado os atos dos produtores e das obras por eles produzidas (...).” (1989, p. 69). O campo social é um espaço microcósmico que desenvolve suas normas e que se define na composição do macrocosmo global na relação com os outros campos.

No contexto de composição dos campos há uma clara relação de poder e conflito estabelecido no processo de interação entre seus atores, que são agentes de representação simbólica do poder do campo. Esse processo é responsável pela definição da noção do campo como um “campo de forças” de estratégias e táticas argumentativas. Segundo

Bourdieu,

Um campo é um espaço social estruturado, um campo de forças,(...) há relações constantes e permanentes, de desigualdades que se exercem no interior deste espaço – que é também um campo de lutas para a conservar ou transformar este campo de forças. Cada um no interior deste universo empenha em sua concorrência com os outros a força (relativa) que detém e que define sua posição no campo e, em conseqüência , suas estratégias. (1997,p.57)

Desse modo, podemos argumentar que a composição do campo social da política se dá a partir da estruturação simbólica que nele se faz constituir tendo como base correlações de forças nesta estruturação simbólica. As ações sociais e políticas deste campo se efetivam a partir da intermediação de seus atores e interlocutores identitários, representantes de significados simbólicos e argumentativos. Como afirma Bourdieu, “O poder simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnosiológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social)” (1989, p. 09) que possibilita diferentes estratégias dos atores nos espaços sociais. Segundo essa lógica, “É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os ‘sistemas simbólicos’ cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação (...)” (1989, p. 11).

Uma das características constitutivas do campo político é o jogo complexo de interesses nele instituído. Sendo assim, o campo político não é um império caracterizado por um poder central e centralizador de um representante, mas um lugar social de confrontos, conflitos, negociações, articulações, jogo de poder e ambiente de comunicabilidade de interesses identitários. No campo da política os efeitos das necessidades externas (materiais e simbólicas) se fazem sentir pelo intermédio da relação que os representantes estabelecem com os representados e pela articulação de interesses das formações identitárias da política.

Embora a discussão sobre o campo simbólico da política tenha um caráter estrutural, extraímos dela especificamente a noção de sistema simbólico, pois permite- nos enfocar as mudanças de sentido do significado da política perante as reestruturações e mudanças sociais ocorridas na sociedade contemporânea, através das quais, por exemplo, as variáveis “identidade”, “política” e “identidade-política” ganham um sentido

analítico relevante no que se refere à ressignificação dos valores simbólicos da democracia a partir das formações identitárias e, conseqüentemente, do habitus da cultura política contemporânea.

Deste modo, as formações identitárias ganham uma ressignificação simbólica nos contextos de suas ações democráticas produzindo com isso um sentido discursivo diferenciado em relação aos valores da democracia.

Esse processo simbólico-instituinte redimensiona a noção de campo político ante o contexto de fragmentação dos interesses identitários, que se caracteriza como um processo que questiona o caráter de representação do poder pelo aspecto de delegação do mesmo e contextualiza a política a partir da fragmentação dos interesses identitários dentro dos sistemas sociais que, por sua vez, se tornam mais complexos. A cada momento esses são processos que reestruturam o campo político e o significado de poder simbólico da política atual. A “fragmentação social” e a “diversidade identitária” cria um novo sentido para o reconhecimento da política nos sistemas sociais complexos contemporâneos, o que tem possibilitado a reestruturação do sentido discursivo do conceito de poder político.

As formações político-identitárias na sociedade civil significam um processo de fortalecimento da mesma e, ao mesmo tempo, uma forma de interação política dos atores sociais com o sistema político. Por conseguinte, a autonomia relativa do poder político dentro desse sistema tende a diminuir, na medida em que as mobilizações identitárias dos atores se constituem num processo indireto de fiscalização e controle das representações políticas através de mobilizações dialógicas como pode ser visto no exercício dos Fóruns Sociais Mundiais constituídos como esferas públicas multi-identitárias da sociedade global. Em tese essa é a tendência presente nos sistemas sociais contemporâneos.

Nesse sentido, o sistema simbólico da política adquire uma dinâmica mais procedimental no contexto contemporâneo. O que pretendemos afirmar é que na medida em que as formações identitárias reconhecem a política como um instrumento de poder mínimo para garantia de determinadas conquistas sociais isso reflete a manutenção simbólica do direito a diferença.

Desenvolvemos esse argumento com base nas formações discursivas e representações sociais da democracia presentes nas formações identitárias da sociedade contemporânea.

O campo simbólico da política tem uma relevante contribuição analítica no que se refere ao cenário das relações identitárias, tanto no que diz respeito ao caráter interativo, pertinente ao sistema político normativo, como ao aspecto cotidiano do significado da política no próprio mundo da vida. Vejamos essa questão com base na institucionalização simbólica do habitus político.

O contexto de habitus, na visão da sociologia simbólica é fundamentado com base na ação dos indivíduos em relação às estruturas constituídas, mantenedoras de uma relação dialética entre valores práticos e simbólicos. Essa relação é também mantenedora de espaços sociais, nos quais as interações identitárias e o sistema das práticas das ações sociais passam a fazer parte de uma dimensão de poder simbólico da política.

Nesse sentido, o habitus pode ser dimensionado como: “estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, com o princípio gerador e estruturador das práticas e das representações que podem ser objetivamente “reguladas” e regulares sem ser o produto de obediência às regras, objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação organizadora de um regente.” (Bourdieu, 1994, p. 61). Com isso temos, uma relação simbolicamente instituída entre estrutura, indivíduo e valores mutáveis constituídos em termos dos interesses em jogo na questão do habitus. Diríamos, em outras palavras, que essa relação estruturadora de habitus é composta numa relação de campo de forças de formação política.

Do ponto de vista estrutural da política, o caráter normativo nele configurado se afirma no ambiente do campo político instituído e se faz apresentar pelos canais legais institucionais presentes no campo social mais geral, que são as instituições políticas presentes na sociedade civil organizada e ativamente política.

Esse contexto dá um sentido de descentralidade com relação à participação identitária na esfera pública política através da sociedade civil, o que leva a aproximar o mundo da vida ao subsistema da política sendo, ambos, campos de interesses simbólicos

numa rede de relações identitárias. E, nesse sentido, é completamente plausível a compreensão sociológica da demanda por reconhecimentos e afirmações identitárias, o que nos fortalece a argumentação de que há uma ressignificação de sentido político presente nas formações identitárias e isso tem dado força propulsiva à esfera pública