• Nenhum resultado encontrado

O PROGRAMA DE LOCAÇÃO SOCIAL VERSUS A LÓGICA PROPRIETÁRIA

No documento Autor Felipe Anitelli (páginas 22-57)

Alguns edifícios reabilitados e convertidos em moradia popular no centro de São Paulo foram incluídos na Locação Social da prefeitura. Em um programa habitacional, construir ou reabilitar edificações é tão relevante quanto instituir formas para facilitar o acesso ao bem imóvel. O diagnóstico indica que parte dos possíveis beneficiários não tem con-dições econômicas de arcar com os custos de financiamento para a com-pra, mesmo que as mensalidades sejam subsidiadas por aportes estatais. Por isso, no texto que segue, antes de descrever aspectos arquitetônicos e construtivos, alternativas de acesso à moradia serão investigadas, em especial, a locação social.

A locação social nunca foi prioridade entre na administração pú-blica brasileira. O acesso à moradia quase sempre ocorreu através do acesso à propriedade, da compra do imóvel, do financiamento da “casa própria” no linguajar popular. Essa talvez seja uma dificuldade inicial, imposta pelas próprias políticas do gênero, ao excluírem a locação de seus principais objetivos. Nascimento (2016) menciona o MCMV, cuja hegemonia interferiu na provisão imobiliária voltada para baixa renda e limitou outros caminhos e alternativas. Por um lado, esse bem é adquiri-do através da compra adquiri-do imóvel. Por outro laadquiri-do, o desenvolvimento das históricas relações político-econômicas brasileiras aponta para enormes contradições no acesso à propriedade (FERREIRA, 2005). Por isso, a ter-ra urbana quase sempre foi inacessível aos estter-ratos populacionais com menos recursos, ou seja, os pobres tiveram dificuldades intransponíveis de acesso à moradia, ao menos acesso à moradia provisionada pelo mer-cado imobiliário formal ou pelas políticas públicas habitacionais. Isso contribui para explicar as dezenas de milhões de famílias que constroem, de forma precária, elas próprias, suas moradias, em favelas, por exemplo.

Esse predomínio da compra da moradia influencia a opinião de boa parte dos envolvidos, mesmo entre militantes de movimentos so-ciais9, favoráveis ao acesso à moradia através do acesso à propriedade. A precariedade material é abrangente, as condições sanitárias são terríveis, existe um ônus excessivo de aluguel, o que inclui abusos e violência, qua-dro somado a dificuldade de empregos formais e estáveis, que geram ins-tabilidade de renda mensal e falta de recursos financeiros para as contas básicas, entre muitas outras mazelas, que explicam a resistência de parte das famílias pobres e miseráveis à locação social. Não é simples explicar a uma família oriunda da miséria material que, após ser beneficiada pela política pública, continuará pagando aluguel para o Estado.

Por isso, mencionar a locação social é especular sobre algo que quase não existe no Brasil e que encontra resistência para sua implemen-tação. Muitos aspectos da habitação social paulistana já foram estudados, como panoramas históricos, provisão pública e privada, aspectos arqui-tetônicos dos empreendimentos, dinâmicas territoriais, atuação profis-sional de arquitetos, canteiro de obras, participação popular e ativismo político, legislações edilícias e urbanísticas, políticas públicas, crédito imobiliário, renda fundiária, entre tantos outros. Porém, a locação so-cial, talvez por não ser contemplada em boa parte da história da cidade, não tem estudos aprofundados na mesma proporção, como o de D’Ota-viano (2014). As reflexões que se seguem, portanto, estão circunscritas na singular experiência ocorrida na prefeitura de São Paulo a partir dos anos 2000, com vinculação entre a promoção de habitações de interesse social no âmbito da Secretaria de Habitação (SEHAB) e a estruturação de um programa de locação social para a destinação das unidades. Trata-se de um esforço para sistematizar estudos acadêmicos realizados sobre a questão e reconstituir essa recente história.

9 O autor entrevistou uma liderança da Frente de Luta por Moradia, movimento social que reivindica moradia adequada e que ocupa, atualmente, diversos edifícios ociosos e deteriorados. A entrevista ocorreu no dia 9 de dezembro de 2016, na sede do FLM. Seu nome não será divulgado.

A locação social estudada, implementada pela prefeitura de São Paulo, não tem a pretensão de substituir a provisão habitacional cujo objetivo seja a aquisição das unidades através de financiamento. Trata-se de um programa que abrange perfis socioeconômicos específicos, aten-dendo, por exemplo, pessoas que não se enquadram nas exigências do crédito imobiliário e não conseguem financiar a compra de sua moradia, moradores de rua ou de cortiços, além de idosos com mais de 60 anos de idade (COLVERO, 2010; MALERONKA, 2005). A renda máxima entre os beneficiados é de 3 salários mínimos (SM) e o valor do aluguel nunca é superior a 10% da renda mensal. Ele é direcionado para famílias que têm maior vulnerabilidade social, menos opções de geração de renda, pou-ca ou nenhuma estabilidade de emprego e, portanto, menos condições financeiras de obter uma moradia adequada entre as unidades públicas ou privadas disponibilizadas. Públicos diferentes podem acessar mora-dia adequada de outras formas, podem, inclusive, comprar financiado. Ressalta-se que a política de crédito imobiliário para comprar moradia, por exemplo, é um instrumento potente de acesso ao bem imóvel. Por-tanto, são políticas complementares. Cabe ao Poder Público distinguir particularidades das famílias e enquadrá-las em diferentes programas. É necessário reconhecer a diversidade social e econômica da população de renda baixa e média e instituir políticas adequadas para cada grupo.

O déficit habitacional indica que a política pública deveria ter como foco famílias com rendimentos menores que 3 SM, já que, no caso da região metropolitana de São Paulo (RMSP), 80,2% do déficit se con-centra nessa faixa, apenas 12,5% entre 3 e 5 SM, 6,7% entre 5 e 10 SM, 0,7% mais de 10 SM, segundo dados de 2014 (CÂMARA BRASILEI-RA DA INDÚSTRIA DA CONSTRUÇÃO, 2021). Nesse estudo, não há dados estratificados para a cidade de São Paulo, mas se a RMSP é uma referência para a situação da capital, a imensa maioria desse déficit10 10 Pessoas que moram em habitação precária, coabitação familiar, ônus excessivo de alu-guel e adensamento excessivo.

tem rendimentos equivalentes aos das famílias atendidas pelo programa Locação Social. Esses dados também insinuam que ações governamen-tais do gênero, mas também regulamentações e legislações que tratam da questão, deveriam priorizar essa faixa de renda. A locação social parece mais adequada para essas famílias. Por um lado, políticas habitacionais de aquisição de imóvel via financiamento bancário tendem a excluir pessoas mais pobres pois esses perfis não teriam renda para custear as mensali-dades por décadas e, por outro lado, a locação social tendo como foco atender, justamente, essas pessoas mais pobres, marginais aos circuitos imobiliários que emprestam capitais para comprar moradia a prestações.

Schor e Paiva (2011, p. 9), cujo estudo indica procedimentos para estimar a capacidade de pagamento das famílias em programas sociais, confirmam que políticas de aquisição da moradia através de financia-mento não são adequados para grupos domésticos com rendifinancia-mentos muito reduzidos e indicam a pertinência da locação social: “Dada a capa-cidade de pagamento dos integrantes desse segmento, programas de lo-cação social se tornam uma possibilidade promissora, pois a aquisição da propriedade do imóvel e sua manutenção tornam-se inviável para essas famílias”. Diante desse quadro, infere-se, aqui, que a provisão imobiliária pública deveria postular a moradia como um direito, manifestação de uma previdência social mais ampla, aos moldes do Estado de Bem-Estar Social de tantos países europeus, aplicado de maneira extensiva a partir do segundo pós-Guerra. Oferecer a moradia como uma mercadoria e procurar consumidores adequados, nesse contexto, não é a solução mais apropriada. Apropria-se das definições “valor de uso” e “valor de tro-ca”, colocadas Lefebvre (2001), mas também por Harvey (2016), já que, ao público da locação social, o acesso à moradia adequada se viabiliza pelo valor de uso do imóvel. Além disso, enquadrar a moradia (popular) como valor de troca, ou seja, como mercadoria passível de ser precificada e comercializada, inclusive especulada, é algo comum quando tornam-se hegemônicos ambientes político-econômicos neoliberais. A

conceitu-ação teórica desse quadro, que extrapola os limites aqui estabelecidos, poderia advir de diversas matizes (BAUMAN, 2013; SADER, GENTILI, 2010; CHOMSKY, 2002; ARANTES, VAINER, MARICATO, 2002).

A lógica proprietária pode ocasionar várias contradições. Caso o edifício esteja localizado em região com materialidades urbanas consoli-dadas, no futuro, os imóveis podem valorizar e oscilar o valor de venda de acordo com flutuações do mercado. O morador beneficiado, agora pro-prietário, pode resolver, sozinho, vender seu apartamento. Nesse caso, a municipalidade não tem controle sobre a transação comercial e as unida-des vendidas podem ser compradas por grupos sociais de renda média ou alta, fora da demanda prioritária, invalidando a política habitacional. Esse assunto ainda será abordado com mais detalhes neste livro, mas anteci-pa-se a discussão e mencionam-se dois conjuntos habitacionais recentes, construídos nas imediações da ponte estaiada, prolongamento da aveni-da Jornalista Roberto Marinho. Há habitação social nos dois lados do rio Pinheiros (CORADIN, 2014), realizações do Programa de Urbanização de Favelas da SEHAB: o Jardim Edith, projetado em 2008 por MMBB, construído em 2013, sendo 252 unidades habitacionais oferecidas; o Real Parque, projetado em 2009 por Geni Sugai e Jeferson Diniz, construído em parte 2012, sendo 1.251 unidades habitacionais oferecidas.

Existem vários bairros de elite na região: Moema, Indianópolis, Brooklin, Campo Belo, Morumbi, etc. As imediações talvez tenham a principal concentração de trabalho formal da cidade: avenida Berrini, avenida Faria Lima, marginal Pinheiros, etc. Essa base fundiária valio-síssima pode ser precificada. Por exemplo, um apartamento localizado na avenida Roque Petroni Junior, com 105 m², é vendido por R$ 1.199.00011, cerca de 11 mil reais por metro quadrado. Como comparação, o Jardim Edith, distante cerca de 1,2 quilômetro, tem apartamentos com 45m². Se 11Disponível em: https://www.vivareal.com.br/imovel/apartamento-3-quartos--brooklin-zona-sul-sao-paulo-com-garagem-105m2-venda-RS1199000-id-24826 89602/?__vt=il:a. Acesso em: 26 maio 2017.

o valor unitário pode ser transposto, essa moradia popular vale 495 mil reais, quase meio milhão. Não existe nenhum mecanismo jurídico que impeça o processo de gentrificação, a retirada da população beneficiada e a mudança do público morador, mas a locação social altera essa lógica.

Os altos valores podem seduzir famílias mais pobres. Como já mencionado, uma das proveniências da locação social são moradores de cortiço. Diversos autores têm estudado as terríveis condições dos cortiços localizados na região central de São Paulo e alternativas de moradia (GAT-TI, 2015; PEREIRA, 2012; NEUHOLD, 2009; KOWARICK, 2007). Para ilustrar a questão, contrapõem-se benefícios da locação social a diversos problemas encontrados em cortiços: contratos estáveis de aluguel versus despejo iminente e sem aviso prévio, valores subsidiados do aluguel versus cobranças mensais abusivas e acrescidas sem respaldo legal, inclusão de perfis populacionais mais pobres como beneficiários versus informalidade de renda como impeditivo para atender as exigências do mercado formal de locação (por exclusão, o que restam são moradias precárias, como os cortiços), atendimento de demandas cotidianas variadas realizado por as-sistentes sociais versus relações violentas com intermediários funcionários dos proprietários dos cortiços, uma unidade habitacional projetada para cada família versus adensamento excessivo de pessoas nos cômodos, con-dições adequadas de habitabilidade versus insalubridade, ausência de parâ-metros mínimos de ventilação, iluminação, etc. Caso a locação social seja popularizada na região central, é provável que ela interfira nos preços dos aluguéis de imóveis próximos, inclusive nos preços abusivos praticados, sem regulação, pelos proprietários de cortiços.

Figura 3: Edifício Asdrubal do Nascimento, reabilitado entre 2003 e 2009 por

Cronacon, hoje propriedade da COHAB-SP, imóvel incluído no Programa de Locação Social: são 40 apartamentos disponibilizados e alugados. Localização: rua Asdrubal do Nascimento n. 282.

Índices econômicos mostram a relevância de uma política que contemple aluguéis subsidiados. As três tabelas abaixo mostram varia-ções a partir de 2009, ano da implementação do Minha Casa Minha Vida. É conveniente lembrar que estabelecer uma provisão imobiliária e construir milhões de unidades nem sempre influem de forma positiva sobre a população mais necessitada, em especial, quando as condições macroeconômicas estão desalinhadas de suas expectativas. O Índice Ge-ral de Preços – Mercado (IGP-M)12, por exemplo, a principal referência para reajustes de aluguel, teve um reajuste de 64,7% entre 2009 e 2019. Valor acima da inflação do mesmo período, avaliada pelo Índice de Pre-ços ao Consumidor Amplo (IPCA)13: 62,5%. Essa diferença, mesmo que pequena, indica a pressão inflacionária desproporcional sobre os alugu-éis. Porém, essa desigualdade é brutal quando contraposta ao aumento real do salário mínimo: apenas 24,9%.

Figura 4: Índice IGMP-FGV, IPCA-IBGE, salário mínimo

12 Índice elaborado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

13 Índice elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE).

ÍNDICE IGMP-FGV (ADVFN, [20--?]) ANO TOTAL 2009-2019 64,7% VARIAÇÃO ANUAL janeiro / 2009 janeiro / 2010 janeiro / 2011 janeiro / 2012 janeiro / 2013 janeiro / 2014 janeiro / 2015 janeiro / 2016 janeiro / 2017 janeiro / 2018 janeiro / 2019 8,1% - 0,6% 11,5% 4,5% 7,9% 5,6% 3,9% 10,9% 6,6% - 0,4% 6,7%

IPCA-IBGE (IBGE, [20--?]) SALÁRIO MÍNIMO (G1, 2019) ANO ANO 2009-2019 2009-2019 62,5% 24,9% VARIAÇÃO ANUAL AUMENTO REAL 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 4,3% 5,9% 6,5% 5,8% 5,9% 6,4% 10,6% 6,2% 2,9% 3,7% 4,3% 5,7% 6,0% 0,3% 5,7% 2,6% 1,1% 2,4% 0,3% - 0,1% - 0,2% 1,1%

Fonte: As tabelas da figura 4 foram elaboradas pelo autor, a partir de dados extraídos em fontes variadas.

Portanto, aos muitos que não foram contemplados pelo MCMV por terem rendimentos insuficientes, além da crônica falta de moradia adequada, houve um aumento contínuo e progressivo sobre dispêndios

do aluguel. Nesse contexto, é previsível que a qualidade de vida da famí-lia tenha sido depreciada. Paralelo a isso, há limitação do Poder Público para implementar políticas sociais, há precarização das condições de tra-balho na iniciativa privada, há diminuição de direitos previdenciários do trabalhador, entre tantas medidas que descalibram a tão delicada relação capital-trabalho. Essas questões podem ser ilustradas pela Proposta de Emenda à Constituição n. 55/2016, conhecida como PEC do teto dos gastos públicos; pela Reforma Trabalhista, lei n. 13.467/2017, que alte-rou a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT); a Emenda Constitucio-nal n. 103/2019, da reforma da previdência social. Por isso, é fundamen-tal resgatar a implementação do Programa de Locação Social concebido pela prefeitura de São Paulo e valorizar políticas públicas que atendam direitos constitucionais e que ressignifiquem o acesso à moradia.

A locação social não é a única política habitacional adotada pela pre-feitura de São Paulo em que o acesso à moradia não está atrelado à aquisi-ção da propriedade. Há outras ações, mesmo que efêmeras, cujos objetivos são o assentamento temporário de famílias, enquanto a moradia definitiva não é oferecida. Na gestão 2001-2004, por exemplo, foi criada a “Moradia

Transitória”, que locava imóveis para pessoas provenientes de áreas de risco

ou insalubres, incluindo populações que viviam em cortiços ou edifícios ocupados por movimento de moradia, além de moradores de rua. Os be-neficiados poderiam alugar um imóvel pelo prazo de um ano, renovável por mais um ano, com recursos provenientes do Fundo Municipal da Habitação (FMH). O programa também incluía pessoas que aguardariam nesses imóveis alugados enquanto edifícios eram reabilitados na região central para recebê-los (MALERONKA, 2005).

O “Bolsa Aluguel” é outra modalidade de atendimento implementa-da na mesma época, vinculado a um programa chamado “Morar no Centro”. Ele consistia em um valor mensal pago pela prefeitura aos beneficiados, com duração entre seis meses e dois anos (PEREIRA, 2012). Novamen-te, tal como o “Moradia Transitória”, trata-se de um auxílio emergencial,

efetuado enquanto a moradia definitiva não era encaminhada pelo Poder Público. Está inserido em uma política habitacional mais ampla, que ten-ta minimizar, em curtíssimo prazo, carências básicas de grupos com alten-ta vulnerabilidade social, ao mesmo tempo em que planeja, projeta, cons-trói ou reforma a moradia definitiva. Um exemplo da aplicação desse ins-trumento foram os ocupantes do São Vito14, que se retiraram de forma voluntária do edifício, receberam o “Bolsa Aluguel”, mudaram por tempo determinado, durante o período em que a obra iria ser realizada e aguar-daram a prefeitura reabilitá-lo, como ela havia prometido. Porém, essa reabilitação não foi concretizada e o edifício foi demolido.

“Moradia Transitória” e “Bolsa Aluguel” são programas paliativos, que atendem pessoas cujas demandas por moradia adequada são mais ur-gentes do que a capacidade e a velocidade do Poder Público em provisio-nar unidades habitacionais de baixa renda. São pessoas provenientes de favelas cujos barracos foram derrubados por chuvas torrenciais de verão, moravam em áreas de várzea inundadas por rios e córregos em época de cheia, que perderam quase todos os bens materiais domésticos, en-tre tantas outras tragédias que acometem metrópoles latino-americanas, como o drama dos já mencionados moradores de rua. Esses programas, além de qualificar melhor demandas locais e atender públicos específicos de forma pontual, indicam que a provisão pública de habitação popu-lar tem uma dimensão social muito maior do que os restritos interesses econômicos e mercadológicos da venda financiada da moradia. Nesse contexto, resgata-se a distinção realizada por Harvey (2016) pois pouco importa a essas pessoas precificar o valor de troca do imóvel, mas sim consolidar um valor de uso.

Nos dias de hoje, a prefeitura mantém um programa chamado “Auxílio Aluguel” (SECRETARIA ESPECIAL DE COMUNICAÇÃO 14 O edifício estava localizado nas vizinhanças do mercado municipal, projetado e cons-truído por Aron Kogan e Waldomiro Zarzur, inaugurado em 1959, desocupado em 2004, demolido em 2010.

DA PREFEITURA DE SÃO PAULO, 2019) e existem casos específicos em que o beneficiário pode se enquadrar: famílias removidas por causa de obras públicas ou famílias removidas por causa de desastres ambien-tais. Em outubro de 2019, eram cerca de 27 mil famílias cadastradas na capital paulista, o que pode abranger cerca de 81 mil pessoas15, número equivalente à população de uma pequena cidade. O valor da mensalidade é 400 reais. O baixo valor pago expõe certos limites. Em muitos casos, a moradia original dessas pessoas localizava-se em regiões centrais com infraestrutura consolidada, nas proximidades de concentrações de em-pregos, inclusive informais. Nota-se a presença massiva de vendedores ambulantes em regiões com trânsito intenso de trabalhadores em deslo-camento: uma esquina movimentada ou a saída de uma estação de me-trô, por exemplo. Resgata-se, aqui, a importância do espaço público para a sobrevivência dos mais pobres.

Porém, é pouco provável que eles consigam alugar um imóvel, em condições mínimas adequadas, por esse valor disponibilizado no auxílio mensal. Por exemplo, uma pesquisa do SECOVI-SP16, publicada em fe-vereiro de 2020, aponta, para apartamentos com dois dormitórios, um preço mínimo de 23,29 reais por metro quadrado na região central e um preço mínimo de 27,54 reais por metro quadrado na zona oeste, duas regiões com intensa concentração de trabalho. Propõe-se o exemplo hi-potético de um apartamento compacto com 45m². Nessas condições, o aluguel custaria 1.048 reais no Centro e 1.235 reais na zona Oeste. Na prática, os valores são muito superiores caso sejam incluídos bairros va-lorizados, como Consolação, Santa Cecília, Pinheiros, etc.. A conclusão é que o preço do aluguel nas principais áreas com concentração de trabalho é superior ao ofertado pelos auxílios da prefeitura. Aventam-se duas al-ternativas: (1) a pessoa escolhe morar em regiões periféricas mais distan-15 Em 2013, a estimativa do IBGE era de 3 pessoas por domicílio, na média. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br. Acesso em: 29 abril 2020.

16Disponível em: https://www.secovi.com.br/downloads/pesquisas-e-indices/pml/ 2020/arquivos/locacao-2020_02_versao-1.pdf. Acesso em: 29 abril 2020.

tes, pagar aluguéis mais baratos, mas fica distante de eventuais trabalhos e aumenta gastos com deslocamento, (2) a pessoa continua morar próximo do trabalho em regiões com infraestrutura consolidada, mas em condi-ções precárias, como cortiços. Nessa segunda opção, mesmo que de forma involuntária, a prefeitura estaria incentivando a especulação imobiliária.

Caso essa faixa mensal de 27 mil famílias seja mantida com auxílio de 400 reais, em apenas uma década, a prefeitura terá gasto mais de um bilhão de reais. Em 2018, por exemplo, foram gastos R$ 118.447.050,0017.

No documento Autor Felipe Anitelli (páginas 22-57)

Documentos relacionados