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1 UM FECUNDO CONFRONTO DE PERSPECTIVAS TEÓRICO-POLÍTICAS NA

1.3 A REFORMA DO ESTADO E O EMBATE ENTRE PROJETOS POLÍTICOS AS

1.3.2 O Projeto da Vertente Democrática (ou Progressista)

Já, os princípios políticos defendidos no Projeto da Vertente Democrática estão relacionados com as reivindicações que os movimentos organizados de setores da sociedade brasileira formularam (e continuam formulando) com o objetivo de aperfeiçoarem as condições e os mecanismos que garantem a continuidade do processo da construção democrática.

O aprofundamento das conquistas democráticas também dependia da reconstrução (ou reforma) democrática do Estado, porém era preciso que as relações institucionalizadas do poder passassem por um amplo processo de reformas e de redefinições quanto aos limites de suas abrangências. Essas reformas não significavam que o Estado devesse reduzir o seu papel de interferência e de cumprimento de responsabilidades para com alguns segmentos sociais.

Este horizonte nos remete diretamente, não só para a reforma do Estado, mas também para a reforma radical da relação Estado-sociedade, o que faz surgir a necessidade do reconhecimento de um novo tipo de esfera pública, uma esfera pública não-estatal, capaz de ser um espaço de construção autônoma organizada do poder 'direto' da sociedade sobre o Estado. Tal reforma supõe emprestar uma nova dimensão para o Direito Público... (GENRO, 2002, p. 160-161).

Para os defensores desse Projeto, a construção democrática do Estado era um processo que dependia da radicalização das experiências e inovações sociais produzidas pelos espaços participativos que foram legitimados, ou pela Constituição ou pela força instituinte das práticas políticas dos diferentes segmentos populares. Estes passariam a ocupar esses espaços para reivindicarem a correspondência e a atuação do Estado nas matérias que constituiriam as pautas de reivindicações. Essas inovações pressupunham a existência de um espaço público democrático, isto é, um espaço que emergisse e se modelasse no bojo dessas experiências e que

se transformasse pelas correlações de forças que envolveriam os diferentes interesses das organizações da sociedade civil e do poder estatal. O que, para GENRO (2002, p. 182), significa "...Pensar, portanto, uma nova esfera pública não-estatal, como um espaço público de novo tipo, é uma decorrência do redimensionamento da utopia da emancipação humana e é também uma prática política e jurídica concreta, que incide ao mesmo tempo, sobre o cotidiano e a História."

Para isso, é necessária a existência de espaços públicos que favoreçam a explicitação e a consolidação das práticas comprometidas com o alargamento das arenas políticas institucionalizadas, a fim de que se possa dar visibilidade aos conflitos, fomentar outros meios de negociação/mediação dos interesses e projetos dos diferentes grupos e organizações. A intenção é que se tenha:

Uma sociedade que possibilite uma vida conscientemente orientada (...) que seus cidadãos decidam sobre o direito de receber do fundo social, construído pela comunhão de esforços de toda a coletividade, aquilo que minimamente necessitam para reproduzir as suas condições de existência. E, pressupõe também um regramento ajustado, através de sucessivas disputas democráticas, que formem uma vontade democrática hegemônica, baseada em valores, destinados a afirmar uma tendência à igualdade e à solidariedade. (GENRO, 2000, p. 16).

O que se buscava, portanto, era a socialização da política e o compartilhamento mais plural e eqüitativo do poder decisório para que pudesse haver uma forma mais efetiva de controle social sobre as ações do Estado. O que estava sendo proposto era um determinado contorno para o que se entendia como a principal finalidade do espaço público, isto é, a inserção dos diferentes segmentos da sociedade civil nos processos de discussão, deliberação e negociação com o poder estatal sobre aspectos no campo da economia, da política, da cultura, dentre outros, os quais definiriam as condições quantitativas e qualitativas da vida em sociedade.

Esse Projeto requisitava e insistia na validade da presença e da participação da diversidade de organizações da sociedade civil, pois entendia que, nesses foros, a participação tornava mais interessante as disputas políticas pelas formas de construção do consenso e da

direção política. Nos termos gramscianos, o papel das organizações representativas da sociedade civil seria o de cumprir com a função de partilhar a construção do consentimento ativo, mediante o qual se constrói coletivamente uma "concepção do mundo".

É preciso aprender que o processo da construção democrática não se concretiza sem a continuada reposição dos “momentos Tocquevillianos”39, principalmente, dos sentidos de igualdade e de justiça, em conformidade com aquele defendido por ARENDT, apud TELLES (1999, p. 62), no qual: "...A igualdade, ao contrário de tudo o que está implicado na simples existência, não nos é outorgada, mas é o resultado da organização humana, porquanto é orientada pelo princípio da justiça. Não nascemos iguais, nos tornamos iguais, como membros de um grupo, por força de nossa decisão de nos concedermos mutuamente direitos iguais."

Nessa perspectiva, a defesa da igualdade e da justiça impõem-se na agenda das lutas sociais porque ainda não se conseguiu encontrar alternativas para o dilema da constituição democrática do espaço público (ou mesmo da publicização democrática da ação estatal). Portanto, nos diferentes espaços em que os sujeitos sociais se encontram para debaterem (ou deliberarem) sobre os caminhos da construção democrática da sociedade brasileira, estes sujeitos devem arregimentar esforços para combaterem o "privatismo selvagem" que banaliza a ação predatória dos indivíduos para com seus semelhantes, comumente denominada de violência cotidiana, em que se perde a referência do Estado como mediador devido aos efeitos predatórios que resultam dessa forma de ataque à sociabilidade e à integridade dos sujeitos.

Por isso, não se pode aceitar uma democracia que seja prisioneira das teias e dos interesses das elites dominantes que pressupõe, para os segmentos mais expropriados, a oferta esporádica e residual das ações da "solidariedade social" provenientes do "mercado privado da assistência" ou da "esfera pública não-estatal", em que "...os novos programas sociais de parceria

39 Perspectiva enunciada por Francisco de Oliveira para caracterizar os momentos das lutas democráticas travadas pela sociedade brasileira, na década de 80, na mesa redonda Sociedade Civil, Esfera Pública e Gestão Participativa no Brasil, em 11/05/2001, no auditório do IFCH-UNICAMP.

têm se implantado como 'serviços sociais', ou seja, não como direitos, mas como prestação de serviço, despolitizando totalmente os programas, desvinculando-os de qualquer conteúdo político, retrocedendo à problemática da cidadania de seus termos coletivos para os antigos patamares da cidadania individual." (GOHN, 1997, p. 316).

Mas, o retraimento político do espaço público e da cidadania condenam a democracia brasileira a propalar a barbárie social (ou "processos de exclusão" in MARTINS, 1997), como alternativa possível de "civilidade". Sob as condições políticas adversas, as ações libertárias das organizações da sociedade civil vão sendo impactadas pelas "medidas integradoras" desempenhadas pelo setor público-não-estatal, "...numa perspectiva que privilegia áreas temáticas-problema e não mais os atores sociais organizados em movimentos. Desta forma, os sujeitos das ações transfiguram-se em problemáticas..." (GOHN, 1997, p. 311).

Posto isso, qual seria a relação desse Projeto com a Política de Assistência Social? A premissa de que, através de experiências participativas, inclusive, com a representação dos indivíduos, que são usuários da Política de Assistência, seria possível começar a reduzir as fronteiras das desigualdades sociais. Deste modo, as prerrogativas do Projeto Democrático têm uma relação mais estreita com as diretrizes para a área da Assistência Social que estão preconizadas na LOAS. Mediante os indicativos de tal Projeto conseguiu-se inscrever a intenção de que a deliberação sobre as matérias de interesse social fosse objeto de reflexões coletivas proporcionadas pelos espaços públicos.

E a área da Assistência Social foi incluída nesta regra, visto que se trata de prever e atuar no acolhimento daqueles que o sistema capitalista lança para as deletérias experiências das exclusões. Na versão defendida por este Projeto reconhece-se a legitimidade de a Assistência Social ter alcançado o estatuto de política social porque as causas que determinam a necessidade da ação assistencial têm relação com os princípios estruturais, políticos e econômicos do capitalismo na sociedade brasileira. Assim, na condição de ação programática e sistemática, a

Assistência pode contribuir para aperfeiçoar os mecanismos que alargam o acesso às condições de justiça social. Assim, o desenho dessa Política deve corresponder àquilo que PEREIRA (1995, p. 92ss) denomina de concepção lato sensu da assistência social, isto é : aquela que

... incorpora novas categorias analíticas e empíricas, afigurando uma política com identidade própria. (...) é genérica na atenção e específica na clientela (...), para isso precisa realizar a unidade com as demais políticas sócio-econômicas. (...) ela é a única política social que tem como alvo, ou destinatários exclusivos, os segmentos piores situados na escala de distribuição de bens e serviços sociais. Neste caso, ela não é nem deve ser, em si mesma, universal, mas coadjuvante do esforço de universalização inerente ao papel das políticas sociais setoriais...

Enfim, essa tese problematiza o processo de construção da Política de Assistência Social a partir dos parâmetros dos Projetos Conservador e Democrático, com base nos argumentos defendidos por Bresser Pereira e Tarso Genro. Embora representem perspectivas políticas distintas, eles colocaram em evidência a importância do debate sobre a temática do espaço público (ou da esfera pública não-estatal).

Para o Projeto Conservador o espaço público ou esfera pública não-estatal seria um lugar situado no interstício das relações políticas e econômicas entre o Estado e a sociedade civil e, para o Projeto Democrático, o termo espaço público ou esfera pública não-estatal não se refere à questão do tipo de propriedade dos prestadores de serviços de natureza pública. Mas, diz respeito ao espaço que emergiu fora das instituições políticas tradicionais e para os quais foram dirigidos os debates e as negociações sobre a definição de questões que compreendem a agenda pública e tratam dos interesses públicos. Por essa razão, essa esfera tornou-se ocupada pelos atores dos segmentos da sociedade civil e do poder estatal que disputam uma construção democrática do Estado feita através de diferentes mecanismos de controle social.

Esses Projetos têm posições antitéticas sobre a noção de espaço público (ou esfera pública não-estatal) e estas posições têm sido objeto de inúmeras entabulações teóricas e de

acirrados confrontos políticos nas arenas em que se processam algumas das lutas dos segmentos sociais que manifestam suas resistências ante ao velho legado da história brasileira, no qual:

...A idéia de política continua prisioneira do mundo dos profissionais da política, impossibilitando assim a valorização da política como atividade de todos, prática dedicada a responder aos desafios e aos valores socialmente instituídos – a atacar as questões que são

fundamentais por serem comuns, tendo em vista o delineamento de visões consistentes a

respeito do sentido do estarmos juntos [grifos no original] (NOGUEIRA, 1998, p. 174).

Então, para o Projeto Democrático, manter vivo o debate e o interesse pelas questões que têm repercussão na temática do espaço público compreende uma estratégia política para obstruir as práticas conservadoras e autoritárias, principalmente aquelas dos governos, cujas "recomendações" procuram tornar mais frágeis os incipientes mecanismos democráticos de construção das políticas sociais. O alvo dessas práticas são as conquistas políticas que as novas experiências associativas e participativas estão introduzindo com o objetivo de amadurecer os mecanismos democráticos na institucionalidade da sociedade brasileira.

Para não perder o controle sobre o rápido movimento de expansão democrática das experiências de construção da Política de Assistência Social, o Governo Federal produziu uma série de alterações nas legislações e criou novas regulamentações que alteravam os rumos da Assistência Social, previsto na LOAS. Durante o governo de FHC, foram incontáveis as investidas40 para que essa Política correspondesse ao direcionamento inscrito no Projeto Conservador. Portanto, desprender-se das amarras políticas colocadas por tal Projeto significa poder conceber a Política de Assistência para além de uma concepção stricto, e conquistar as condições para desenhá-la com traçados mais amplos e ousados - os da concepção lato sensu.

Nessa contracorrente, torna-se inadiável a ampliação progressista-democrática dos espaços públicos como condição para manter abertos os canais de interlocução política, de mediação dos conflitos e de estruturação de direitos sociais que ajudem na construção democrática da Política de Assistência Social.

40 A título de exemplo tem-se: Lei 9.720 (de 30/11/98) que alterou vários artigos da LOAS, Medida Provisória 1729 (de 02/12/98), dentre outros.

2 A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL: AS DISPUTAS PELA AFIRMAÇÃO DE

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