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O prudente e o habilidoso

No documento Prudência e Virtude Moral em Aristóteles. (páginas 104-107)

Capítulo III: Prudência e Virtude Moral

III. 2 O prudente e o habilidoso

Quando estávamos a elucidar as considerações acerca da prudência no capítulo precedente, estipulou-se que a característica de tal virtude intelectual consiste na excelência para encontrar os meios mais adequados para realizar um ato moral. Fora, ainda, observado que não é possível elaborar uma espécie de manual de conduta moral com relação ao modo com que os atos devem ser realizados a fim de se conseguir agir virtuosamente por causa da indeterminabilidade do âmbito prático humano. Em outras palavras, não há nada de necessário acerca das ações realizadas pelos indivíduos justamente porque há uma enorme variedade de possíveis ações distintas diante de determinada circunstância – enquanto um indivíduo A age de maneira x diante da circunstância C, um indivíduo B pode agir de acordo com y frente à mesma circunstância C.

Pelo fato de a prudência ser identificada como uma capacidade de encontrar os meios mais adequados para alcançar determinado fim, poder-se-ia indagar se o prudente seria idêntico ao indivíduo habilidoso. Mas não é isso que Aristóteles desenvolve ao longo do capítulo 12 do Livro VI, no qual é identificado que há, sim, uma importante característica que os distingue. De modo geral, considerando que o prudente detém a capacidade de bem deliberar sobre os meios, é possível anunciar – no entanto, reitera-se, somente de modo um tanto quanto insatisfatório – que a prudência caracteriza-se como uma espécie de habilidade específica. Logo, porém, o que faz com que seja possível distinguir o prudente do habilidoso?

Considere a situação hipotética de auxiliar uma idosa a atravessar uma rua movimentada. Enquanto o plenamente virtuoso auxiliaria a idosa por ter a “visão” de que tal atitude é a correta a ser tomada, o habilidoso poderia auxiliá-la não em função da ação mesma, mas sim com o pensamento de que, ao chegar do outro lado da rua, a idosa provavelmente lhe presentearia com uma quantia em dinheiro ou, ainda, que tal ato resultaria em um maior prestígio de sua pessoa por parte daqueles que testemunharam a ação. Tudo isso implica a observação de que a ação

105 realizada pelo plenamente virtuoso e pelo indivíduo identificado como simplesmente habilidoso é a mesma; no entanto, o que torna possível distingui-los é o motivo pelo qual cada um decidiu auxiliar a idosa.

O indivíduo habilidoso simplesmente possui a capacidade de determinar o

que é preciso fazer para realizar o objetivo – nesse caso, auxiliar a idosa. Já o

indivíduo prudente também é dotado da capacidade de determinar os meios em função do fim estipulado, mas a diferença entre ambos é que o prudente faz o que é preciso fazer em função do fim. Em outras palavras, é possível afirmar que o prudente encontrou os melhores meios para realizar a ação justamente porque tal ação era a ação identificada como a ação moralmente virtuosa a ser realizada. Se nos detivermos unicamente à análise da ação em si, é possível anunciar que os dois

indivíduos – tanto o habilidoso como o prudente – realizaram a ação correta.

Todavia, isso não é tudo quando se está abordando o âmbito da moral.

A fim de melhor compreender o que está envolvido nessa questão, considere o caso da justiça (dikaiosunê), o qual é elaborado pelo próprio Aristóteles: nem todos os indivíduos que realizam atos justos são, em função disso apenas, necessariamente justos. O que dificulta esse caso da justiça é que não se tem garantia alguma se o indivíduo agiu em função da ação em si ou se havia algum interesse subjacente. Nas palavras aristotélicas, é possível agir de modo justo sem

ser efetivamente justo, pois é possível praticar “atos prescritos pela lei

involuntariamente, por ignorância ou por alguma outra razão, mas não no interesse

dos próprios atos”201

. No entanto, ainda que tais indivíduos realizem o que devem, assim como todas as coisas que o homem bom deve fazer, eles não podem ser identificados como detentores da virtude da justiça.

O modo com que o argumento para diferenciar de vez o prudente do habilidoso se encerra é, em si mesmo, esclarecedor. Aristóteles destaca que não basta simplesmente realizar as ações virtuosas para imputar virtude moral aos indivíduos. Torna-se determinante realizar tais ações em função da escolha – isto é,

a ação é realizada porque o indivíduo a escolheu para ser realizada – e em função

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das ações mesmas – o que significa que não deve haver algum outro interesse

subjacente à escolha a não ser a própria ação202.

Assim sendo, a diferença consiste no fato de que a capacidade do habilidoso limita-se unicamente à determinação dos meios mais eficazes para alcançar um fim específico qualquer. É possível que tal fim alcançado seja bom ou mal. O habilidoso não possui uma “visão moral” sobre o fim estipulado, ele apenas é capaz de encontrar os meios que melhor engendram determinado fim, independentemente se este for considerado moralmente bom ou não. Se eventualmente ocorrer que tal fim

alcançado pelo habilidoso for bom, então sua ação – e consequentemente a sua

habilidade – será louvada; caso contrário, se o fim for mal, tal ação será censurada e

“a habilidade será simples astúcia”203

.

Mais adiante, Aristóteles volta a mencionar a distinção entre a prudência e a habilidade ao anunciar que elas “estão próximas uma da outra no que diz respeito

ao modo de raciocinar, mas distinguem-se quanto ao seu propósito”204

. Diferentemente do habilidoso, o prudente sempre tem em mira o fim que é bom, o que é proveniente da relação intrínseca que há entre a prudência e a virtude moral, pois é esta última que assegura a correção moral dos fins. A partir disso, pode-se

apregoar que “não é possível possuir prudência quem não seja bom”205, porque é

justamente a virtude moral que determina um fim como moralmente bom ou não. A prudência sem virtude moral não pode ser identificada como tal, precisamente porque ela se caracteriza pelo bem deliberar sobre os meios moralmente corretos. Prudência carente de virtude moral não é nada mais do que simples habilidade.

202 Cf. EN VI 12 1144a 20-21. 203 EN VI 12 1144a 25. 204

Precisamente em EN VII 1152a 11-14. Aubenque (2008, p. 101) complementa afirmando que a “habilidade é a capacidade para facilmente realizar fins, isto é, dado um fim, combinar os meios mais eficazes de atingi-lo. Mas a habilidade enquanto tal é indiferente à qualidade do fim: ‘se o objetivo é nobre, é uma capacidade digna de louvor, mas se é perverso, ela é apenas astúcia’. A habilidade assemelha-se a esse ‘olho da alma’, do qual falava Platão e que, segundo Aristóteles, só vê o bem quando a virtude moral o faz voltar-se para o lado bom. A prudência é, pois, a habilidade do virtuoso”.

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