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Capítulo I. Modernidade e cidadania

3. Sociedade portuguesa e modernidade

3.1. O “quase” Estado Providência em Portugal

Nas sociedades modernas, o Estado vai centralizando cada vez mais poderes tendo em vista regular os poderes, regras e posturas sociais. Nas sociedades centrais da Europa o modelo do Estado Providência desenvolve-se após a II Guerra Mundial e incorpora não só a dimensão da regulação económica mas também a social que permite incluir áreas que até então não se incluíam na intervenção estatal tais como a saúde, educação, habitação, entre outras que passam a expressar o conteúdo de políticas sociais. Nesta regulação social encontra-se patente, em simultâneo, um novo reconhecimento do cidadão e o do papel do Estado, isto é, dos direitos do primeiro e dos deveres do segundo (Rodrigues, 2003). O Estado assume-se como garante dos riscos sociais passíveis de atingir o indivíduo e os grupos, mas também como entidade que obriga a uma adesão contributiva ao sistema, ou seja, obriga a uma responsabilização colectiva sobre os percursos individuais. Passa a ser assegurado um mecanismo de compensação e redistribuição para compensar vulnerabilidades e desigualdades e, ao mesmo tempo, garantir os direitos básicos dos indivíduos e dos grupos, não

44 numa lógica de igualdade, mas num pressuposto de equidade e justiça social (Rodrigues, 2003).

Segundo Mozzicafreddo, é possível distinguir três momentos de evolução do Estado Providência em Portugal. A fase inicial remonta aos anos de 1880/90, época de implementação das primeiras medidas sociais com carácter assistencial- residual, marcadas por uma ideologia humanitária e de progresso social num Estado predominantemente liberal. A segunda fase, do princípio do século XX até ao ano de 1945, inaugura a constituição de um Estado Social e economicamente activo, com implementação dos principais sistemas sociais de carácter universal e redistributivo e, ao mesmo tempo, de intervenção na economia de mercado, a fim de relançar a actividade industrial devido à forte desagregação das estruturas sociais e da recessão económica. Nesta fase, o Estado é protector e tem um acentuado papel de intervenção na sociedade. Num terceiro momento, entre os anos do pós-guerra e 1975/80, houve uma consolidação da estrutura do Estado Providência em que o sistema social se estrutura de maneira articulada, contínua e universal relativamente às necessidades e exigências sociais ao mesmo tempo que se assiste a uma prática de forte intervencionismo económico e político do Estado na sociedade.

“A partir dessa época até à actualidade pode-se considerar que a matriz institucional do Estado-Providência vai sofrendo alterações consistentes na realização de um sistema institucional retributivo, embora com tendências para a diversificação, no sentido de instituir, na esfera do social, esquemas complementares, pluralistas e privados (…)” (Mozzicafreddo, 1997:16)

Ou seja, regula-se a actividade macroeconómica e autonomiza-se a vida privada. Assim, o Estado de direito consolida-se pela garantia e extensão dos direitos e identidades individuais o que permite a emancipação dos indivíduos (Mozzicafreddo, 1987), facto que contribui para alguma alteração na estratificação social das sociedades: há redistribuição do rendimento nacional, com base nos

45 sistemas de segurança, assistência e acção social, bem como estímulos à mobilidade social, assentes sobretudo nos processos de formação escolar e profissional e nos mecanismos de correcção das disfuncionalidades do mercado (Mozzicafreddo, 1997).

A implementação do Estado Providência em Portugal é tardio, contemporâneo dos direitos sociais dos cidadãos reconhecidos pela Constituição em 1976 e protegidos pela lei. No entanto, constata-se uma discrepância entre o que está legal e formalmente instituído e o que é efectivamente praticado, contradições e características que se transpuseram para o modelo de Estado Providência adoptado. Quando o modelo é implementado em Portugal, já em outros países ele começava a dar sinal da sua fragilidade, motivo pelo qual Boaventura de Sousa Santos defende que o Estado português não é um verdadeiro Estado Providência, em sentido técnico, nem devido ao nível de bem-estar produzido, nem pelos processos políticos a que eles conduzem:

“O Estado português é ainda um quase-Estado-Providência, que se consolidou num período de crise política e económica do modelo em que se inspirou” (Santos e Ferreira, 2002: 191).

São quatro os elementos que estão na base do desenvolvimento do modelo de Estado Providência. Primeiro, um pacto social entre capital e trabalho sob a égide do Estado; segundo, uma relação sustentada entre a promoção da acumulação capitalista e do crescimento económico e a salvaguarda da legitimação; terceiro, um elevado nível de despesas de consumo social; e, quarto, uma burocracia estatal internalizou que os direitos sociais como direitos dos cidadãos, em vez de benevolência estatal. À luz destes atributos, o Estado português não é um Estado Providência no sentido pleno do termo (Santos, 1990; Santos e Ferreira, 2002). As condições que presidiram ao desenvolvimento dos Estados Providência na Europa foram as seguintes: regulação estatal (direito estatal); regulação contratual (contrato) e valores partilhados (regulação cultural).

46 Em Portugal, antes de 1974, este processo foi bloqueado pela regulação estatal, típica de um regime autoritário que pretendia tutelar todas as formas de regulação social. Foram necessários anos para que fossem criadas as condições para a existência de um pacto social em Portugal: 1) A Constituição Política de 1976; 2) O Conselho Permanente de Concertação Social 3) A Revisão Constitucional de 1982 que permitiu a reversibilidade das nacionalizações abrindo a possibilidade capitais privados, estrangeiros e mistos. 4) A integração de Portugal na Comunidade Económica Europeia em 1986. A construção do pacto social foi, portanto, muito lenta e acabou por se concretizar no período em que a Europa vivia em plena crise do Estado Providência (Santos e Ferreira, 2002).

A reforma da segurança social permitiu o alargamento da protecção social através da implementação do Rendimento Mínimo Garantido e também pela promoção do emprego e da inserção, no sentido de desenvolver medidas activas de emprego1. A essas medidas juntam-se outras, tal como o mercado social de emprego, lançado através do Plano Nacional de Emprego com o objectivo de integrar desempregados em actividades dirigidas a necessidades não satisfeitas pelo normal funcionamento do mercado como, por exemplo, o apoio às famílias e às escolas e a valorização do património natural, urbanístico e cultural (Santos e Ferreira, 2002). Com o novo sistema de solidariedade e segurança social:

“Surgem novos princípios que dão conteúdo a um sistema diferente, como sejam, o da garantia de direitos adquiridos e em formação, o da informação, o da eficácia, o do primado da responsabilidade pública, o da solidariedade, que se traduz na responsabilidade colectiva dos cidadãos, o princípio da diferenciação positiva, que introduz a ênfase na selectividade a favor de grupos mais vulneráveis, o princípio de inserção social, relativo à acção do sistema na eliminação das causas de marginalização e exclusão social, o princípio de

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A activação consiste na aplicação de um programa de inserção associado à atribuição de uma prestação que assume uma natureza contratual entre o Estado e o beneficiário.

47 complementaridade, relativo à articulação das várias formas de protecção social, públicas, cooperativas e sociais” (Santos e Ferreira, 2002).

A prosperidade e crescimento económico nem sempre se fazem acompanhar de uma redução das desigualdades sociais. Aliás, a população dependente de apoio social tem vindo a aumentar de forma contínua. Estes desfasamentos podem indicar a inoperância dos mecanismos de protecção, que se pode verificar por dois motivos: ou porque os benefícios concedidos são insuficientes ou porque criam dependência. Por outro lado, também estão na origem de problemas de justiça relativa, dado que muitas pessoas, após muitos anos de trabalho, recebem pensões tão ou mais baixas do que certos apoios concedidos a «marginais» ou a destituídos (Barreto e Pontes, 2007).

O Estado de bem-estar social foi assumindo cada vez mais responsabilidades correspondentes aos direitos de cidadania que consagra (Mozzicafreddo, 1997). Com a cidadania social, o Estado assume o ónus de oferecer a todos os que o integram um nível mínimo de condições de vida. Daí as políticas de escolaridade mínima obrigatória, de saúde pública, de salário mínimo e de um rendimento mínimo, a par da panóplia crescente de políticas sociais que o Estado adoptou.

O desenvolvimento da sociedade portuguesa coloca novos desafios ao Estado Providência pois, em paralelo com a implementação do Estado democrático e a igualdade formal de direitos, a sociedade portuguesa foi-se abrindo, passando da emigração e actualmente também pela imigração, pelos meios de comunicação de massa, pela integração europeia e pela globalização de mercados, aumentando as expectativas quer em termos de consumo e promoção económica, quer em termos de mobilidade social, protecção e segurança, deixando o Estado de ser completamente autónomo para estar dependente da União Europeia e das flutuações dos mercados económicos e monetários internacionais.

48 Os problemas colocados ao Estado Providência não constituem uma situação específica da sociedade portuguesa. Resultaram antes de uma conjugação de elementos que em outros países se começaram a evidenciar mais cedo. Na perspectiva de Giddens (1999), o Estado Providência constitui mais uma combinação de riscos do que de recursos, na medida em que o modelo não foi concebido para abranger novos tipos de risco, nomeadamente, os que são consequência da inovação tecnológica, as situações de exclusão social ou a crescente longevidade. A crise do Estado Providência manifesta-se de múltiplas formas e é acompanhada por uma redução dos serviços sociais, pelo aumento da pressão fiscal, por uma maior flexibilidade e pelas tentativas de se libertar de funções que antes tinha assumido, ou seja, verifica-se desmantelamento de direitos sociais que haviam sido conquistados.

“O trágico para nós portugueses é assistirmos a uma crise de um Estado- Providência que nunca foi providência, mas deu esperanças de o ser” (Fernandes, 1993: 23)

Ou seja, o modelo de Estado cresceu sem solidez e capitalização e, como escasseiam contribuições para a segurança social e existem muitos dependentes, o Estado deixa de ser capaz de assistir adequadamente todas as áreas da sua competência (Barreto, 1995). Com dificuldades crescentes de capitalização, o Estado tenta deixar de actuar directamente em vários sectores da sociedade, conservando, no entanto, a tutela de Estado social que lhe permite intervir através de diversos mecanismos de regulação social, no domínio das relações capital- trabalho e nas áreas da educação, da saúde e da segurança social (Fernandes, 1993). Delega-se na sociedade civil a resolução de problemas sociais que formalmente são competências do Estado, situação que, em Portugal, tem enraizamento no tecido social (a forte autonomia do espaço doméstico português), o que permite falar de uma “sociedade-providência”, feita de redes de entreajuda

49 social, familiares e de vizinhança o que tem ajudado a disfarçar a fraqueza do Estado Providência (Santos, 2002a; Santos, 2006).

Em Portugal a pobreza estrutural durante muito tempo foi sendo disfarçada pela solidariedade social e pela componente de ruralidade que permitia, em muitos casos, a conciliação entre uma actividade industrial e o desenvolvimento de uma pequena agricultura de subsistência. Com o desenvolvimento industrial e com transformações da actividade económica, verifica-se a perda de alguns desses laços sociais e também de subsistência. Paralelamente, com o declínio da produção industrial e crise económica mundial, têm surgido novas situações de pobreza, sobretudo relacionadas com o crescimento de situações de desemprego e incapacidade de criação de novas ofertas profissionais para uma faixa populacional com baixas qualificações escolares e de formação profissional.

Apesar da pobreza estrutural e de novas situações de exclusão social estarem a ser combatidas com diversas políticas sociais, Portugal continua a ser um dos países mais pobres e onde existe maior risco de pobreza na União Europeia, informação recentemente confirmada por Relatório da Comissão Europeia (Comissão Europeia, 2009). Entre os grupos sociais mais vulneráveis a situações de exclusão e pobreza em Portugal encontram-se os grupos sociais de origem cigana (Almeida, 1994; Costa, 1998; Costa et al., 2008).

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Capítulo II. Indivíduo e sociedade – os processos de

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