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3. As memórias do Caldeirão

3.1 O que é memória?

A memória, de forma mais simples, pode ser pensada enquanto recurso psíquico que nos permite guardar informações passadas, atualizá-las e retomá-las.

Comecemos por diferenciar história e memória. Apesar de haver um ponto comum entre as duas, o passado, elas têm naturezas diferentes. “A história é um pensamento do passado e não uma rememoração” (RIOUX, 1998, p. 308 - 309). A memória tem o objetivo de remontar um tempo que passou, ela evoca o passado.

A historiografia preocupa-se com a exatidão de suas leituras do passado. Apesar do fato de ser sempre incompleta e lacunar, irá pesar sua fidelidade aos fatos, por mais que ela não consiga reproduzi-los de forma plena. À memória basta a verossimilhança. Diferente da historiografia, a retomada do passado feita pela memória é impregnada do sujeito que o evoca. Já na historiografia, quanto mais impessoal, mais acentuado seu teor científico e mais legítima sua exatidão. A

66 objetividade da memória é baseada na boa-fé do narrador, em sua idoneidade, não buscando as aspirações empíricas da historiografia.

Devemos salientar também dois aspectos que tangem à natureza da memória: sua objetivação e transmissão. A memória só existe a partir do momento que é objetivada, seja pela linguagem, através da narrativa oral ou escrita, seja pelas memórias físicas, relíquias, monumentos, inscrições. Quanto à transmissão, um dos objetivos de lembrar é comunicar algo a alguém. Só conseguimos lembrar quando nos é deixado algum rastro, algum vestígio do passado. Assim, caso não haja transmissão não haverá também meios para lembrar e com o tempo a memória será apagada.

No tocante à forma, como já citado, a memória existe a partir do momento que se torna material. Nesse aspecto percebemos a importância da narrativa que, além de dar vida à memória, a oferece “mais liberdade e possibilidades criativas” (LE GOFF, 2003, p. 426).

A memória edita os eventos que são arquivados, enfatiza determinadas nuances do passado em detrimento de outras. Ao vir à tona, o passado recebe uma aparência homogênea, ele não aparece na narrativa com as lacunas próprias de algo ausente, mas a narrativa lhe dá uma ordem coerente.

Talvez alguém indague acerca desse caráter imaginativo da memória. Sobre o movimento de preenchimento desses “buracos” deixados pelo esquecimento. De fato, um relato de memória não é uma narrativa fragmentada, aliás, ela não pode ser fragmentada sob a pena de se tornar ininteligível ao interlocutor. Acontece que a imaginação está preocupada apenas com a ficção, no máximo com uma representação coerente de algo. A lembrança, porém, possui um referencial externo ao indivíduo, a realidade, e está subordinada a ela.

[...] a recordação alimenta uma epistemologia ingênua, que tende a confundir a representação com o real-passado, isto é, com a passeidade, espécie de efeito mágico em que a palavra dá ser ao que já não é. [...] enquanto que a representação imaginária pode ter, ou não, referencialidade, o ato de recordar aceita subordinar-se ao princípio da realidade. (CATROGA, 2001, p. 47)

67 Esta representação do passado é feita pelo indivíduo situado no presente, daí o caráter dinâmico da memória. O presente do evocador da memória estará sempre em transição, pois está atrelado à história, nunca será congelado. A cada vez que uma lembrança vem à tona ela respeita o tempo e a constante tensão que compõe sua natureza.

[...] Toda recordação tende a objetivar-se numa narrativa coerente que, em retrospectiva, domestica o aleatório, o casual, os efeitos perversos do real- passado quando este foi presente, atuando como se, no caminho, não existissem buracos negros deixados pelo esquecimento. (CATROGA, 2001, p.46)

Outro elemento atrelado à memória é sua ligação com a identidade do indivíduo enquanto ser singular e enquanto componente de um grupo do qual faz parte. O interesse pela memória se manifesta como uma busca por algum lugar onde firmar raízes, por um espaço que nos diga respeito. Em meio à globalização e sua fluidez, o resgate do passado através da memória é um meio de afirmar nossa identidade individual e coletiva, e perpetuar o sentimento de pertença.

Fica evidente, então, a forte ligação entre memória e identidade. A forma como o indivíduo lê o passado e constrói a memória está relacionado à sua identidade e suas experiências sociais.

As noções de construção, seleção, registro, de significação, de criação e de consciência subjetiva fazem parte do relacionamento entre memória e identidade, revelando uma dimensão eminentemente dinâmica em que há um esforço não só de seleção, mas de reinterpretação sucessiva do passado. Isso implica que a imagem que o indivíduo tem de si é, ao mesmo tempo, produto de sua experiência social e das formas de mediação simbólica dessa experiência. (SÁ, 2008, p.51)

As memórias de um indivíduo ou de um grupo transmitem uma visão particular acerca de um dado evento. A forma de lembrar que uma sociedade adota é perpassada pelos seus valores e pela forma como encaram a memória. E nesse tocante se dá a relação da memória com a identidade. Cada pessoa ou grupo lembra de forma singular, assim teremos relatos diferentes sobre um mesmo acontecimento, o que será totalmente plausível levando em conta a natureza da memória. Dessa forma não seria uma atitude democrática eleger apenas uma versão do passado, mas sim dar a conhecer todas elas. Neste trabalho oferecemos

68 especial atenção às memórias que permaneceram anônimas na história, que foram recalcadas e silenciadas.

[...] talvez, o mais importante no contexto atual de uma sociedade democrática seja “publicizar” e não “privatizar” as memórias e identidades de todos os grupos sociais e minorias, para que cada um deles possa conhecer e respeitar as outras versões do passado, e, por meio desse processo, compreender melhor o que os divide, mas também o que os une. (GILLS, 1996, p. 20 APUD SÁ, 2008, p. 53)

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