• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1 O CONTO DO REPÓRTER

1.3 Sobre a reportagem

1.3.1 O realismo e as práticas jornalísticas, um paralelo possível

Se o uso do termo realismo tem uma longa história no campo artístico, está também ligado a questões filosóficas de fundo, voltadas para os próprios conceitos de “real”, e de “realidade”, que se transformaram ao longo dos séculos, impossíveis de explorar aqui. [...] [O] realismo surgiu como uma palavra totalmente nova, apenas no século XIX; em francês, por volta de 1830, e em inglês, no vocabulário crítico, em 1856, sendo que, a partir de então, desenvolveu-se, em termos gerais, como um termo que descreve um

método e uma postura em arte e literatura: primeiro uma excepcional acuidade na representação e depois um compromisso de descrever eventos reais mostrando-os como existem de fato, sendo que aqui, em muitos casos, inclui-se uma intenção política (PELLEGRINI, 2007, p. 139).

Apesar de sua aparente obviedade, conforme alerta Tânia Pellegrini, é missão de grande dificuldade definir e apreender o que é realismo. Isso porque o “o termo tem sido largamente usado para definir qualquer tipo de representação artística que se disponha a ‘reproduzir’ aspectos do mundo referencial, com matizes e gradações que vão desde a suave e inofensiva delicadeza até a crueldade mais atroz” (PELLEGRINI, 2007, p. 139). Na contramão dos românticos, escritores realistas buscavam pautar seus textos na observação e representação da vida real em detrimento do subjetivo. Isso aconteceu em um movimento pendular que acompanhou as grandes transformações que marcaram as sociedades europeias – como a Revolução Industrial e a Revolução Francesa –, que propiciaram não só um novo e

crescente poder da burguesia, mas também o desenvolvimento dos movimentos da classe operária, o surgimento do pensamento socialista e o olhar acentuado às questões ligadas a identidade pessoal (PELLEGRINI, 2007, p. 144).

E se dissemos que a intenção realista é pautada na observação e na representação da vida real, assumimos que nessa discussão se faz necessária a inclusão de termos que há muito permeiam a teoria literária: referimo-nos a “representação” e a “verossimilhança”. É preciso ressaltar a substituição do termo “verdade”, que em alguns momentos adotamos, pelo correto entendimento do que seja “verossimilhança”, termo que também já mencionamos. “Esta [verossimilhança] acentua o fato de que existe um princípio organizador e regras de composição para a arte e que o ato de representar depende delas, do seu caráter de construção” (PELLEGRINI, 2007, p. 141). É nesse sentido que pudemos dizer que “Um dia no cais”, dentro de sua própria estrutura textual e por escolha do próprio autor e ponto de vista de seu narrador, constrói uma verossimilhança que o aproxima de uma realidade vivida fora dos livros, coisa que se assemelha ao que se procura na reportagem, que intenciona explicar e desvendar determinado fato – é daí que vai surgir a impressão jornalística presente no texto, porque a verossimilhança, neste caso, aproxima-se do que chamamos de busca da verdade existente no jornalismo.

Foi na prosa, especialmente no romance, que o realismo se instaurou como modalidade de destaque. Isso porque escritores encontravam a possibilidade de retratar e explicar, mediante a exposição de suas condições, o estatuto social de determinado grupo, sem as consideradas intervenções subjetivas de outrora.

Pellegrini entende e explica o realismo por meio de duas diferentes concepções: um “método” e uma “postura”. O método diz respeito ao tipo de concepção textual que se fará nesse tipo de texto: o autor realista utilizará, via de regra, personagens, objetos, ações e situações descritos de maneira similar ao que se vive na “vida real” – como já alertamos ser o caso de “Um dia no cais”. E a postura, em consonância com essa representação, envolverá as ideologias daqueles que se propunham a escrever esse tipo de texto. “O realismo desde o início negou que a arte estivesse voltada apenas para si mesma ou que representar fosse apenas um ato ilusório, debruçando-se agora sobre as questões concretas da vida das pessoas comuns” (PELLEGRINI, 2007, p. 140).

Nesse sentido, intuímos que o realismo, por analogia, vai aproximar-se das práticas jornalísticas no cotidiano de suas funções – ao menos no que diz respeito à postura de autores realistas e de jornalistas compromissados com a profissão. É função de todo profissional de jornalismo retratar, para seu leitor, espectador ou ouvinte, o real e as consequências desse real

de determinado fato. Tendo uma função política, o realismo atua nessa mesma frente. Postura de quem, como o jornalista, intenciona elucidar o que acontece na vida real.

[...] o realismo busca a verdade, ou seja, um tratamento verdadeiro na composição da narrativa e a verossimilhança na construção dos fatos. Assim, o escritor realista procura fugir ao máximo dos artificialismos, tais como o uso exacerbado da emoção e uma visão demasiadamente ordenada da vida, uma vez que esta possui um ritmo extremamente irregular, como também pode se verificar no exercício da reportagem (TASSIS; GUEDES, 2012, p. 12-13).

Nessa busca da verdade é que vai se encaixar a distinção entre os conceitos de verdade e de verossimilhança. Uma vez que o texto responda ao próprio estatuto de verossimilhança, constituído no interior de suas linhas, é possível afirmar que é o compromisso de verdade que João Antônio supostamente buscava, que permite serem retratadas as duas prostitutas, os marinheiros e a dureza do lugar (com a especificidade de essa retratação ser uma escolha que empreende uma postura em relação àquele povo que intenciona defender), mesmo que factualmente nenhuma dessas personagens tenha existido, ou que, dentro de sua experiência no porto de Santos, nada do que foi descrito no texto tenha realmente acontecido. No interior da verossimilhança do “Cais”, não só era possível, como também necessário para que se constituísse o espaço, o ambiente, a tensão e outros elementos presentes no texto, que tudo aquilo que foi posto, lá estivesse.

A impressão jornalística, resultado da existência dessa mesma postura em um e em outro (realista e jornalista), faz voltar os olhos para o caminho percorrido pela imprensa brasileira28, procurando intersecções entre o jornalismo e o realismo – aquele de “método” e “postura”, entendido por Pellegrini. São essas intersecções que nos permitirão entender porque o “conto-reportagem” foi admitido como subgênero que une o discurso literário e o jornalístico, sem que houvesse, até este momento, estudo que procurasse, no texto, as características de ambos.

[...] antes da sua profissionalização integral, que só ocorreu efetivamente no Brasil a partir da sua regulamentação, em 1969, com a exigência do diploma, a atividade jornalística foi exercida por diversas camadas sociais, indistintamente, sob a única exigência de que o “jornalista” em questão tivesse uma história, pressuposta real, para contar aos outros. Nesse período, os fazeres jornalístico e literário contavam basicamente com os mesmos escritores jornalistas; tinham recorrentemente os mesmos objetivos de busca de uma identidade para o Brasil e mobilização política; sofriam juntamente

controle da metrópole sobre o seu conteúdo; e se constituíam em instrumentos de denúncia social e ideais políticos (TASSIS; GUEDES, 2012, p. 2).

Assim, o método e a postura desse estilo literário são mesmo um caminho possível para que encontremos uma saída, com um alerta:

Este sentido [ligação política nessa busca do real] é base da grande controvérsia centrada no objetivo de “mostrar as coisas como realmente são”; visto como uma postura geral (envolvendo ideologias, mentalidades, sentido histórico etc.) e um método específico (personagens, objetos, ações e situações descritos de modo real, isto é, de ‘acordo com a realidade’), é geralmente aceito como “ilusão referencial”, o que, na verdade, é o seu aspecto de convenção, de “mentira”, de “máscara”, comum a todas as linguagens e estilos artísticos, pois todos eles são convenções (PELLEGRINI, 2007, p. 139).

Convenções das quais o realismo, por ser suposta representação da “verdade”, será credor. Verdade ou verossimilhança no “Cais”?