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O relacionamento afetivo-sexual marcado pela violência conjugal

6. ANÁLISES E DISCUSSÃO

6.3. O relacionamento afetivo-sexual marcado pela violência conjugal

Nesta categoria estão agrupadas as narrativas dos homens, cujos repertórios sobre a conjugalidade se inscrevem em relações marcadas pela violência, ou

melhor, cuja violência faz parte da relação conjugal:45

Gustavo: Porque também, a mulher também não pode tá agredindo o

homem, porque vai terminar levando também, quem sabe dentro de casa o camarada perde a paciência né? A pessoa também não pode ser bom demais, porque a mulher quer fazer o que ela quer. Pra você ver, rapaz, a gente nunca teve um relacionamento é, bem não.

Paloma: Sempre foi assim Gustavo: Sempre foi.

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Essas relações marcadas pela violência também aparecem em outros estudos, como os realizados por: Gregori, 1993; Couto et al, 2006; e Muskat, 2006.

Paloma: Desde o início do namoro? Gustavo: Infelizmente.

Jeferson: (...) Porque eu, quantas vezes ela se separou de mim, via

eu bêbado aí pegava e ia pra casa da família, aí ficava nesse negocinho. Aí passava 15 dias, um mês na casa da família, ela e meus meninos, quando eu ia procurar ela, ia atrás dela. A família dela queria me espancar, me bater, chegaram até cortar meu rosto, levei ponto no rosto, botaram revólver no meu rosto, esse negócio, a gente vivia assim.

Nessa perspectiva, algumas interpretações são possíveis quando se coloca a violência como constitutiva da conjugalidade. A esse respeito, Gregori (1993) apresenta duas proposições: o uso da violência como uma forma de realocação de homens e mulheres nos lugares dos padrões hegemônicos de gênero:

No segundo momento, ela vai apanhar e o marido vai bater. Neste, ela sairá como vítima e o marido como agressor. De uma maneira muito estranha, ela dá a “última palavra” para sair de uma cena em que é parceira e iniciar outra em que será vítima. Um perverso jogo de feminilidade e masculinidade, ou melhor, de imagens que desenham papéis de mulher e de homem em relações conjugais (GREGORI, 1993, p. 180).

E a outra interpretação é a da violência que faz parte de um jogo sexual, erótico, de prazer e subversão:

Nelas, os parceiros soltam suas fantasias eróticas, buscam o prazer um do outro etc. Observação: nessas relações não ocorrem agressões. Todas as diferenças entre eles que se manifestam no cotidiano não se expressam no momento em que se dá o intercurso sexual. Assim sendo, seria exagerado afirmar que as cenas e agressões já fazem parte do jogo sexual. Contudo, há entre esses episódios uma relação, um sentido que os perpassa (GREGORI, 1993, p. 181).

Nesse sentido, a segunda proposta de interpretação apresentada por Gregori (1993) perpassa a situação de violência conjugal relatada por alguns homens denunciados por violência conjugal. Os atos violentos parecem funcionar como um movimento de ruptura que prepara os corpos para o prazer:

Paloma: E aí só teve uma discussão, e aí ...

Gustavo: Foi, foi esta discussão mesmo que até minha família

entrou, minha irmã pegou ela, e botou ela na casa de minha irmã, eu fiquei dentro de casa, aí depois ela entrou, a gente pegou e foi embora dormir, prontamente.

Paloma: Mas depois dessa discussão vocês continuaram juntos? Gustavo: Sim, normalmente, dormindo junto tudinho, eu nem sabia

A erotização da relação se dá nestes termos, a ruptura acentuada pelo confronto – o momento da agressão, da discussão, da discórdia – para outro momento no qual as diferenças convergem para a estimulação do prazer

(GREGORI, 1993).46

Para Gregori (1993), o que ambas as proposições interpretativas têm em comum é que a violência funciona como uma espécie de ato de comunicação do casal na construção da relação conjugal:

Jeferson: Não, não, é, discutir, a gente discutia, até sem beber. Só

que agressão jamais.

Paloma: Só essa vez...

Jeferson: Foi só essa vez, e faz muito tempo. Eu depois me

arrependi muito, me arrependi muito, pedi desculpas a ela, perdão, tudo eu pedi a ela. Outro dia ela reconheceu que também ela errou por uma parte, e eu errei por outra, ter batido, que eu dei uma tapas nela né? Aí pronto, só foi isso, mas era mais boca, bate boca, quê não sei o que, que eu chegava bebo, vou fazer isso, vou fazer aquilo, mas na verdade eu não ia fazer é nada, eu falava, falava, e depois ali mesmo eu dormia.

Todavia, Gregori (1993) afirma que nem toda cena violenta, inscrita na conjugalidade, é percebida pelos atores como violenta. Parece acontecer a construção de uma relação conjugal, cujos parceiros se ligam de forma simbiótica e são enlaçados por práticas violentas que se repetem cotidianamente, em que há dificuldades no reconhecimento de tais interações como violentas. Giddens (1993) aponta uma ideia interessante para se pensar nas formas como essas relações são construídas, a ideia que ele chama de relação codependente:

Um relacionamento co-dependente é aquele em que um indivíduo está ligado psicologicamente a um parceiro, cujas atividades são dirigidas por algum tipo de compulsividade. Chamarei de relacionamento fixado aquele em que, o próprio relacionamento é objeto do vício (...) Nenhum dos participantes é nitidamente um viciado, mas ambos são dependentes de um elo que é uma questão de obrigação de rotina ou é realmente destrutivo para as partes interessadas (GIDDENS, 1993, p.102).

Assim, utilizando-se a ideia da relação codependente, é possível interpretar a incompreensão desses homens quanto à denúncia das mulheres. Já que a violência

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Gregori (1993) utiliza as ideias de Bataille (1987) sobre o erotismo: BATAILLE, G. O erotismo. Porto Alegre, L&PM, 1987. Outro autor que traz da noção do erótico nas relações interpessoais é: PARKER, R. G. Corpos,

é tida como um elo que sempre fez parte da relação conjugal, a denúncia da mulher relacionada com essas práticas violentas, parece inconcebível:

Paloma: E foi quando que teve essa denúncia dela aqui?

Gustavo: Eu nem sei quando foi, rapaz, me pegou até de surpresa. Paloma: Foi?

Gustavo: Foi, me pegou de surpresa, porque faz 15 dias, a última

discussão, faz 15 dias, e nisso eu tranquilo dentro de casa, tranquilíssimo dentro de casa, ela também, tranquila, pra você vê certos tipos de mulher, né?

Jeferson: É que, a família dela, eu tenho pra mim que é a família dela

né, que deu algum incentivo. Porque eu não acredito que ela, da cabeça dela que ela fosse fazer uma coisa dessa, até agora eu tou perplexo,tou arrasado, porque eu não esperava que ela fosse fazer uma coisa dessa, porque nada disso é verdade, a coisa é totalmente diferente, aí a palavra dela contra a minha né?

Apesar de a violência ser configurada como um aspecto constituinte da conjugalidade, tal construção não é percebida como sendo do casal. Os homens posicionam as mulheres como “provocadoras” das práticas violentas. Percebemos, assim, a contradição nos seus discursos, pois, ao mesmo tempo em que ressaltam a dinâmica conjugal a partir da violência, que para eles parece fazer parte da relação, não se posicionam como agentes das práticas violentas, mas como reagentes às práticas violentas da mulher:

Armando: No bloco que nós morávamos, ela chamava altos

palavrões, eu reclamava dela, porque eu como homem não falo esses palavrões, ela, não adianta nem falar, mas ela gritava mesmo altos palavrões, batia a porta, quebrava as coisas dentro de casa, estourava quadro, derrubava as coisas, me agredia, querendo que eu a agredisse, pra perder meu direito, mas eu nunca quis perder meu direito.

Gustavo: Não... Agora uma vez eu já agredi,4725uma vez eu já agredi, isso aí eu não vou mentir não, já agredi também por causa dela, que eu fui agredido primeiro, mordido imagine uma pessoa te morder com violência, em várias partes do corpo, isso aqui meu, ficava dessa altura de mordidas, meu rosto completamente arranhado, todo desfigurado, arranhado, às vezes deixava a barba crescer pra não parecer, deixava a barba crescer, arranhado por tudo que era canto, eu me sentia atingido né? Eu partia pra agressão também, pra ela também sentir a dor, entendeu?

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Referindo-se às agressões físicas.

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Ao que parece, existe um desejo de enlaçar o outro e se autoaprisionar em um modelo que nada exige de si mesmo, pois é no outro que continuará a residir as

causas das agressões (GREGORI,1993). Contudo, quando idealizam

relacionamentos afetivos-sexuais, abrem-se possibilidades de mudanças. Surgem novos repertórios sobre a conjugalidade:

Gustavo: (...) Agora quando os dois é por igual, tem aquele respeito,

não liga pra palhaçada um do outro, assim palhaçada eu digo, não em termos de safadeza, traição, digo um leva na esportiva, aí isso vai, vai, uma maravilha, entendeu? Uma maravilha.

Jeferson: É um relacionamento, eu acho, eu não sou, eu não tenho

leitura, o que posso dizer a senhora, é assim, a pessoa tem que ter é, como é que se diz, conversar né, tem que ter uma conversa, o casal, tem que se entender o casal, não através de segundo e terceiros, entendeu? Eu acho assim, que ela deveria, nos sentar eu e ela a gente conversar, pra se entender melhor.

Para Machado (2004), tal desejo de mudança também pode ser notado no sofrimento apresentado por esses homens. Para a autora, o choro, o sofrimento são símbolos de um desejo de reinvenção de novas possibilidades de conjugalidade e afetividade:

Jeferson: Porque eu acho que ela não teria motivo pra fazer isso não,

o incentivo dela eu acho que mais foi a família, porque eu tive problemas com a família dela. (...) Mas de eu matar ela, de fazer isso, eu nunca fiz isso com ninguém, e graças a Deus, e ela sabe disso que eu sou contra, das pessoas assim, que tira a vida dos outro, eu sempre falava pra ela que eu não era de acordo a isso, eu acho que quem só deve tirar a vida da gente é Deus. Pronto, eu tou assim chocado, arrasado, porque eu não esperava isso dela não (Choro).

Paloma: Tá muito decepcionado é, Gustavo?

Gustavo: Oxe ... (começa a chorar) (Silêncio) Cidadão de bem, dentro

de uma delegacia. Coisa, que eu nem bati nela, penso só nas minhas filhas. (silêncio) O homem não deve chorar não, homem que é homem não chora não, mas infelizmente eu não aguento não.

Parece, então, que a denúncia, feita pela mulher ganha esse significado. A partir da denúncia da mulher, os homens começam a produzir outros sentidos de conjugalidade e afetividade:

Jeferson: É, a mãe dos meus filhos, gosto muito dela, é minha

companheira do dia a dia, é quer dizer eu tenho meu, meu cantinho, hoje eu tou só, porque ela fez isso né. Através também, eu acho que a ignorância minha né, não imaginava, que ela ia chegar a fazer isso comigo, porque se eu imaginasse que ela ia chegar a fazer isso comigo, eu acho que eu teria, teria pegado mais leve assim né, sei lá,

eu acho que eu, quando eu bebia, eu devo ter me alterado um pouco, aí ela deve ter ficado com medo.

Gustavo: Um amor como qualquer um homem pode ter por uma

mulher, um amor verdadeiro.

Paloma: Um amor verdadeiro...Como é assim esse amor verdadeiro? Gustavo: Um amor verdadeiro é respeitá-la, entendeu? É nunca

maltratá-la, entendeu? Nunca pensei de maltratar ela, apesar do que vem acontecendo, infelizmente tá aí. Certo?! Espero que seja resolvido numa boa, e a partir de hoje mesmo, nem pra ela mais eu olho.