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4 RELAÇÕES PARASSUBORDINADAS DE TRABALHO

4.2 A Experiência Estrangeira

4.2.3 O Relatório Supiot

A União Européia, em meados da década de 90 deste século, entendeu necessária a discussão acerca da instituição de uma política social comunitária e, com este propósito, encomendou a um grupo de peritos, sob a coordenação de Alain Supiot, um relatório, elaborado através de uma análise transdisciplinar, sobre as transformações e o futuro do trabalho, bem como suas repercussões no Direito do Trabalho. O grupo organizou-se em torno de cinco grandes temas: trabalho e poder privado; trabalho e estatuto profissional; trabalho e tempo; trabalho e organização coletiva e; trabalho e poderes públicos.225 As conclusões deste

222 PEDREIRA, Pinho. Da “Velha” Parassubordinação ao Novo Contrato de Trabalho a Projeto. Revista de Direito do Trabalho, São Paulo. n.122,p. 345, abr./jun. 2006.

223 Ibidem. p. 347-348. 224 Ibidem. p. 346.

grupo são conhecidas como “Relatório Supiot”.

A abordagem tomou como ponto de partida o modelo clássico de Direito do Trabalho do início do século passado, apoiado no fordismo, o qual possuía no plano institucional a empresa, o sindicato e o Estado como vértices, e no plano interno uma empresa voltada para a produção em massa de pouca variedade de produtos. O trabalhador possuía uma segurança passiva, um tempo de trabalho homogêneo, negociações coletivas relativamente autônomas e um estatuto que lhe era específico. Parte-se deste modelo sócio-econômico para constatar a sua crise e o desenvolvimento de outros modelos de organização do trabalho, fundados principalmente na elevação da qualificação dos trabalhadores, na pressão da concorrência decorrente da abertura dos mercados e na aceleração do progresso técnico na área de informação e telecomunicação. 226

Ao versar sobre o “trabalho e o poder privado”, o grupo remonta o critério de subordinação e a releitura que lhe vem sendo assistida atualmente, afirmando que as novas formas de gestão vêm ocasionando uma subordinação, por mais que se apresente mais rarefeita, mais forte, pois é realizada através de pressões informais, sobretudo para os mais jovens, mulheres e menos qualificados. Outro fator que se apresenta maciço é a subcontratação e o trabalho temporário, trazendo as incertezas como a do “falso independente” e a extensão da “zona cinzenta” entre trabalho dependente e independente. Há que se falar também no conceito de redes de empresa, pelo qual a empresa principal deve ter responsabilidade para com o trabalhador, seja o da empresa subcontratada, o temporário ou qualquer outra forma jurídica que assuma.

Como orientações o grupo salienta que o âmbito de aplicação do direito social deveria ser estendido a todos os trabalhadores por conta de outrem e não somente aos estritamente subordinados. Neste sentido, dentre as sugestões formuladas mencione-se a “manutenção do poder de requalificação do contrato de trabalho pelo juiz”, através da noção de feixe de indícios caracterizadores da subordinação, deve-se permitir a aplicação do Direito do Trabalho às novas formas de exercício do poder na empresa, não ficando atrelada a um único critério, como o da dependência econômica ou da integração na empresa de outrem, e a “aplicação de determinados aspectos do Direito do Trabalho a trabalhadores que não são assalariados (empregados típicos) nem empresários”, na proporção em que os parassubordinados, trabalhadores que não podem ser regidos pela relação de emprego, mas que são dependentes economicamente, não se beneficiam dos direitos sociais, enquanto

Coimbra Editora (Perspectivas laborais 1, Associação de Estudos Laborais), 2003, p. 7.

trabalhadores verdadeiramente dependentes fazem jus a tais proteções.227

Ao versar sobre o “trabalho e o estatuto profissional”, salientam que o modelo fordista de estatuto profissional, calcado na continuidade, nos critérios de profissão e unidade de estatutos, e de unicidade do empregador, está em vias de decomposição. Sugerem, portanto, uma reconfiguração do modelo de emprego no âmbito do Direito do Trabalho, bem como da noção de segurança em três planos, dos quais ressalvamos o de que “o estatuto profissional deve ser determinado, já não a partir da noção restritiva de emprego, mas da noção alargada de trabalho”, para que não se deixe à sombra do direito social as diversas formas de trabalho emergentes e localizadas na “zona grise”.228

No que concerne à “trabalho e tempo”, questão importante abordada é a da terceirização, que relativiza qualitativamente a relação com o tempo. Desta forma, a sobrecarga e a mobilização total do trabalhador podem acarretar uma diminuição formal do tempo de trabalho, contudo, sob pena de deixar-se de verificar as implicações que as novas formas de trabalho acarretam, como a fusão entre o tempo livre e o tempo de trabalho, principalmente nas novas formas de trabalho à distância, como se dá com o teletrabalho. Aliás, há também uma nova conceituação do que seria tempo disponível, impensável no modelo fordista.229Assim, o grupo aceita que existe uma fragmentação do tempo, mas nem por

isso o direito pode deixar de assegurar-lhe um mínimo de integração, aplicando uma visão abrangente entre tempo individual e tempo coletivo. Assim, não só o tempo dirigido ao trabalho, propriamente dito, deve ser preservado, mas também o tempo de vida familiar e social, como os atrelados à formação, maternidade, etc., devem ser preservados (princípio consagrado na Convenção Européia dos Direitos do Homem).230

No âmbito do “trabalho e organização coletiva”, ressalta-se que o objeto das negociações adentra o âmbito de gestão das empresas, posto que passa a tratar de temas como a flexibilização de tempo e de trabalho, e conecta a realidade dos empregados e dos desempregados, uma vez que visa à manutenção dos postos de trabalho. Além disso, as funções dos órgãos coletivos também são estendidas, lhe sendo atribuídas até mesmo funções quase legislativas. De outra sorte, presencia-se uma forte tendência para a

227 Ibidem. p. 323-324. 228 Ibidem. p. 325.

229 Os fordistas entendiam o tempo de não-trabalho como o tempo que é dedicado à família, às tarefas

domésticas, dentre outros. Contudo, o grupo entende que na medida em que somos insertos socialmente, estas atividades podem ser entendidas como verdadeiros trabalhos. Ademais, deve-se colocar a questão da

efetividade da livre disponibilidade do tempo não-profissional, pois uma quantidade relevante de

trabalhadores utiliza sua força de trabalho para a prestação de serviços, notadamente de índole civil, durante os dados lapsos temporais.

“dessindicalização”, principalmente no âmbito dos parassubordinados. Portanto, para o grupo deve ser feita uma recomposição da negociação coletiva, centrada nas redes de empresas e nas redes territoriais que reúnam empresas e outros grupos de interesse, em uma escala municipal, por exemplo. Essa reestruturação parece ser apta a fazer frente à reorganização das empresas e a possibilitar uma política de trabalho, e não só de emprego, como tipicamente o é.231

Quanto ao “Trabalho e Estado”, o grupo sustenta que está havendo uma transcendência do caráter paternalista assumido outrora pelo Estado-providência. A tendência geral nos serviços públicos é a passagem de um Estado gestor para um Estado garante. Neste diapasão, na Europa, em diferentes graus de acordo com o país, o estatuto especial do funcionário tende a transformar-se em contrato de trabalho comum. O grupo entende, portanto, que a União Européia deveria garantir os direitos sociais fundamentais, sendo útil, até mesmo, constitucionalizá-los.

Com a evolução, as mulheres passaram a fazer parte fortemente do mercado de trabalho, a estabilidade no emprego cedeu lugar aos contratos aleatórios e o sindicato foi obrigado a uma redefinição de seu papel, tamanha flexibilidade latente acarreta um sentimento constante de incerteza nos que vivem no presente século. Em vistas a tais constatações o grupo propôs duas opções: a desestruturação do Direito do Trabalho em prol de uma recontratualização da relação de trabalho, priorizando as acepções do Direito Civil, ou a opção da desconexão entre o social e o econômico através da possibilidade de flexibilização por um lado, mas por outro, da proclamação de direitos sociais ligados à inserção do indivíduo na esfera econômica. Todavia, o grupo ainda aponta para uma terceira opção que opta pela recuperação de exigências democráticas que presidiram o direito social, como a igualdade, a segurança individual e os direitos coletivos.232

O grupo chegou à conclusão de que o Direito do Trabalho possui como função histórica assegurar condições de coesão social, função que só continuará sendo exercida se este ramo jurídico acompanhar a reestruturação das formas de organização do trabalho na sociedade contemporânea, não ficando restrito às formas, hoje menos expressivas, que lhe deram origem.233

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