• Nenhum resultado encontrado

3. O peso da personagem feminina na diegese

3.4. O relevo – figurantes

Como figurantes, também existem na obra contística de Mia Couto múltiplas personagens femininas. Vejamos alguns exemplos: em “Nas águas do tempo”198

, embora a personagem feminina tenha direito a uma fala, ela parece-nos demasiado estereotipada na sua função de conselheira e de mãe preocupada, não tendo qualquer influência no decorrer da ação. Tal função também é assumida pelas mulheres no conto do mesmo livro “No rio, além da curva”, onde as personagens femininas são meras esposas, que seguem a tradição de obedecer aos maridos enquanto eles realizam a parte mais perigosa do ritual da caça, limitando-se a obedecer, a sua possível desobediência ditaria, no entanto, o fracasso do ritual e a morte provável do marido.

deriva do hebraico hav.váh, que significa "vivente", e teria sido dado pelo próprio Adão. O papel atribuído à mulher era de uma ajudante e complemento do homem, e a expressão "têm de tornar-se uma só carne", denota o tipo de vínculo que deveria existir entre marido e mulher. (cf. Génesis 2:18, 20-24) Eva, e mais tarde Adão, teriam comido o fruto proibido por Deus, da árvore da ciência (do "conhecimento do bem e do mal"), e após o ocorrido, de acordo com a tradição cristã toda a humanidade ficou privada da perfeição e da perspectiva de vida infindável. Surgiria para os cristãos aqui a noção de pecado herdado - tendência inata de pecar - e a necessidade de um resgate da humanidade condenada à morte. Após comerem do fruto proibido, Adão e Eva tiveram ciência de que andavam nus e, por isso, esconderam-se ao notar a presença de Deus no Jardim do Éden. Deus expulsou-os do jardim do Éden, e deu-lhes roupas de pele animal. (http://pt.wikipedia.org/wiki)

196

Idem, Estórias Abensonhadas, op. cit., p. 154. 197

Ibidem, p. 156. 198

63 No livro Vozes Anoitecidas, o conto recolhido da tradição oral moçambicana, “As baleias de Quissico”, apenas inclui uma personagem feminina como figurante, a tia Justina. No mesmo livro, as mulheres surgem como figurantes e personagens coletivas199, fazendo igualmente parte de uma tradição que, sendo encabeçada pelo homem, delas dependia para alcançar o sucesso: estamos a referir-nos ao conto “De como o velho Jossias foi salvo das águas”. Neste conto, a mulher tem uma dupla função, enquanto figurante: a voz da mulher Armanda resgata o velho Jossia s da embriaguez em que se encontrava e que estava a conduzi-lo à morte; as mulheres da aldeia preparam a aguardente de milho, “o ngovo”200

para dar de beber aos mortos e assim conseguirem a bênção da chuva.

No conto “A morte, o tempo e o velho”, incluído no livro Na Berma de Nenhuma

Estrada e outros contos, as personagens femininas surgem como recordações do velho

que quer morrer e que deseja que a morte lhe surja do mesmo modo que lhe apareceram as mulheres na sua vida, também elas figurantes. No mesmo livro, no conto “Homem no leito”, as personagens femininas surgem associadas à morte de um velho, mas desta feita na sua função de carpideiras201 e agem como parte não distinta de um grupo que

199

Personagem coletiva funciona como se agisse de acordo com uma só vontade e está associada à composição, juntamente com as personagens redondas, planas e tipo.

200

Mia Couto, Vozes Anoitecidas, op.cit., p. 122. 201

Herdeiras de uma arte milenar, míticas e respeitadas ao longo de vários séculos, uma vez que guardavam os segredos da cura e louvação dos mortos, as Carpideiras foram indispensáveis nos rituais fúnebres até aos finais do século XIX. Embora não saibamos as suas origens, temos conhecimento que, no Antigo Egipto, o enterro era um acontecimento lúgubre e pitoresco ao mesmo tempo, que quantas mais carpideiras tivessem, mais elevado era a posição social do morto. Os familiares do defunto faziam questão de oferecer um verdadeiro espetáculo por onde passava o velório. Iam gesticulando e soluçando durante todo o trajeto. Para que a dor que todos sentiam ficasse ainda mais patenteada e ninguém tivesse dúvidas a esse respeito, as carpideiras profissionais eram devidamente contratadas. De vestes desalinhadas, peito desnudo, rosto pintado com lama, cabelos despenteados, chegando mesmo a arrancá-los e a simular desmaios, não cessavam de gemer e de bater nas próprias cabeças em patético gesto de desespero. Criavam, assim, um impacto incrível perante os presentes durante todo o ritual. Possuíam um diversificado leque de textos e cânticos, nos quais suplicavam a ressurreição espiritual do morto, ao longo de todo o cortejo fúnebre. Também, na civilização romana, divulgaram oficialmente a indispensabilidade ritual das carpideiras. Estas mulheres vertiam as lágrimas em pequenos vasos tubulares de vidro. Conforme a quantidade de líquido contido no tubo, assim recebiam o pagamento da família do morto. Atualmente esta profissão já perdeu todo o seu fulgor, deixando de ser essencial, embora em Africa, Ásia e algumas regiões do Brasil ainda existe o ritual de contratarem estas mulheres para as cerimónias

64 acompanha o homem no seu leito de morte.

As mulheres no seu conjunto, como figurantes numa história, aparecem num outro livro de Mia Couto, O Fio das Missangas, mais exatamente no conto “Os machos lacrimosos”202

. Com efeito, este conto tem como protagonistas um grupo de homens que exerce todas as funções que lhe são imputadas socialmente, sob o olhar crítico das suas mulheres: bebem, contam anedotas, festejam sempre e por qualquer motivo. Por outro lado, “as mulheres, não precisam de ritual para festejar a vida. Elas são a festa da vida.(…) Para elas, aquela cumplicidade masculina era coisa de tribo.” 203

Mas um dia os humores alteraram-se, e aqueles homens passaram a chorar em vez de rir, daí a comparação com as “profissionais carpideiras dos velórios” 204

que logo foi recusada por estes amigos. Mas eles mudaram mesmo e as mulheres nem queriam crer em tamanha mudança: eles ajudavam em casa, chegavam cedo e passaram a mimar as suas mulheres com carinhos, flores e outras atenções a que elas não estavam habituadas. Rebatendo um pouco a ideia de que a personagem figurante é aquela que não intervém com nenhuma fala na história, tomemos como exemplo o conto “Maria Celulina, a esferográvida”. Com efeito, embora a moça não fale durante a ação, a verdade é que ela é o assunto, o motivo da diegese e, por isso, personagem central, até porque é ela que empresta o nome ao conto.

Relativamente ao livro Contos do Nascer da Terra, no conto “Velho com jardim nas traseiras do tempo”, as prostitutas são as confidentes do velho que mora no banco do jardim e apenas são mencionadas nesta qualidade e coletivamente:

As prostiputas, como ele chama. Conhece-as todas pelos nomes. Quando não tem clientes elas se adentram pelo jardim e sentam junto dele. Vladimiro lhes conta suas

fúnebres. Até hoje elas guardam os mistérios de rezas que servem tanto para acabar com a doença dos vivos quanto para encomendar a Deus a alma dos mortos. As carpideiras eram “choradeiras

profissionais”, que lacrimejavam pelo defunto alheio. Mediante um pagamento (alimentos, roupas ou

dinheiro), estas mulheres animavam no velório com uma mágoa colaborante e incrivelmente ruidosa. Diante do cadáver, excitando as lágrimas da família com frases exaltadas e gesticulações inimitáveis e dramáticas, tinham também como função fazer: o quarto ao defunto, a guarda, a sentinela, o velório. Eram as iniciadoras do canto na missa, entoando louvores com a voz sinistra e apavorante, logo causando impressão inesquecível para a assistência. In. http://almocreve.blogs.sapo.pt/13129.html. (consultado em 05/04/2009).

202

Mia Couto, O Fio das Missangas, op.cit., pp. 109-112. 203

Ibidem, p. 109. 204

65

aldrabices e elas tomam a baboseira dele por cantos de embalar. Às vezes escuta as nocturnas menininhas gritar. Alguém lhes bate. (Couto, 2006:74).

No conto “A sentença do fogo”, a referência aos horrores da guerra inclui as violações das mulheres e o massacre de seus filhos, numa breve, mas marcante abordagem, pela aparente crueza com que o criminoso enumera os seus feitos de guerra. Também neste caso as mulheres aparecem como figurantes, espelho de uma realidade social tão infortunadamente verdadeira em Moçambique após a independência. A opção narrativa de dar o relevo de figurante às personagens femininas é particularmente simbólica neste conto, pois revela a nula importância da mulher para os senhores da guerra.

Em “O embondeiro que sonhava pássaros”205, as mulheres brancas são as figurantes, figuras maternas, protetoras dos seus meninos e protegidas dos seus maridos, são as esposas tal como se esperava delas que fossem. Deste assunto trataremos mais adiante, quando analisarmos a figura feminina no casamento e na família. Ainda no mesmo livro, o conto “Sidney Poitier na barbearia de Firipe Beruberu” tem como figurante a vendedeira Rosinha que faz sonhar o barbeiro, pois foi abandonado pela sua mulher que fugiu com um amante.