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6. EM BUSCA DE UMA METAPSICOLOGIA HIPERMODERNA

6.1 O desejo na contemporaneidade: Cartografia da fluidez

6.1.2 O retorno: o desmentido e a desestruturação que berra por sentido

De início é necessário que se faça uma ressalva sobre o uso da palavra ‘berra’, logo acima escrita. Berrar significa “gritar, vociferar; chamar em altos brados e com insistência, bradar, clamar, invocar; reclamar, pedir com estardalhaço (KOOGAN-HOUAISS 2004)”. O que gostaria de enfatizar aqui é o caráter ostensivo de desestruturação subjetiva que diversos seres se encontram nos dias de hoje.

A aceleração da fluidez do desejo, garantida durante os tempos hodiernos faz uma espécie de cobrança ao psiquismo. Esta não se realiza como um pedido suave, mas um berro, algo que, através de um denso estardalhaço, faz-se sentir de forma atordoante, no psiquismo. Tal atordoamento deve-se sumariamente à insustentabilidade psíquica e afetiva em que o sujeito se encontra. Com a fluidificação do desejo, as barreiras entre eu-outro também modificam-se de maneira fundamental. Ao adentrar o terreno do recalque do outro da diferença, ou seja, ao buscar a homogeneização do agir e do pensar, o indivíduo deixa de reconhecer a alteridade, condição fundamental à estruturação psíquica. É na relação com o outro que o sujeito torna-se capaz de sustentar-se enquanto ser do desamparo.

Ao aniquilar esse outro, entra-se num terreno do desmentido, ou melhor, desautorizado (FIGUEIREDO, 2001; MAIA, 2003), onde o outro, que deveria servir de anteparo ao aprendizado emocional, é apagado em sua capacidade de extrair novos sentidos da experiência sensorial. De acordo com Maia, “o desmentido rompe com o circuito introjetivo propiciador dos sentidos compartilhados. Tem-se então a ruptura de qualquer possibilidade de atribuição de sentidos; o que faz com que a vivência traumática se constitua como violência

(2003, p. 152)”. O trauma é algo estruturante ao desenvolvimento subjetivo, visto ser a fenda criada entre a incapacidade de acolher a experiência e a possibilidade de atribuição de novos sentidos à experiência, fundamentais ao crescimento emocional. No entanto, à medida que há uma enorme falha (desmentido) do mundo externo em acolher as angústias geradas por essa fenda entreaberta, instalam-se vivências de violência emocional. O trauma ganha, então, uma dimensão desubjetivante.

A contemporaneidade serviu ao corpo social como um grande estado de desmentido. A capacidade de acolher a experiência emocional é, cada vez mais, diminuída pela aniquilação dos estranhos, da diferença subjetiva inerente aos sujeitos sociais. A hipermodernidade contrói uma história de igualdades, ao passo que arrefece a angústia que possa ser gerada por vivências ante o estranho. Devemos lembrar que a angústia é algo que serve de alerta à possibilidade de vivências traumáticas. Ela haje, portanto, como promovedor de um estado emocional que se prontifica em garantir a sobrevivência psíquica do ser. Ao aniquilar a angústia, exige-se o preço da vivência traumática em sua forma mais violenta.

Dessa forma, na sociedade da hiper-velocidade mantenedora da hiper-conectividade do indivíduo em meios que lhe aliviam a angústia e propiciam momentos de “paz” artificial, assiste-se a um retorno por tal estado de alienação psíquica. O que é recalcado – outro da diferença – faz um retorno ao exigir do psiquismo dos indivíduos que se entre em um estado de vazio funcional – distinto do vazio essencial5 – capaz de acompanhar a velocidade das transformações e intensidade dos prazeres que, obrigatoriamente, deve-se conquistar. Esse estado de vazio põe o ser, cada vez mais, em ação, ou seja, os sujeitos funcionam muito bem para acompanhar a insaciabilidade das ações que o mundo lhes exige. No entanto, tais ações

5 Vazio essencial refere-se aqui àquela idéia enunciada anteriormente a respeito da condição de desamparo humano, em que o desejo sempre está em referência a um desejo de outro. O vazio essencial diferencia-se da

falta animal por inserir o homem em uma ordem desejante que não se realiza com um objeto específico, mas sim se encontra em constante estado de construção. Não há um objeto que defina a priori o que está sendo desejado, visto sempre haver um “desejo de desejo” (GARCIA-ROZA, 2002, p. 192). A alteridade aqui é colocada como prima-dona dessa condição, visto haver necessariamente a presença de um outro para o desejo presentificar-se.

não passam de um profundo vazio, uma vez que vêm impossibilitadas de adquirirem sentido emocional. De tal sorte, controem-se novas modalidades de funcionamento subjetivo, em que a ação substitui o desejo que exige, como finalidade última, o ato. A intensificação dos atos, ou melhor, as passagens ao ato, são manifestações de uma espécie de retorno daquilo que foi relegado ao limbo e exigem do sujeito mecanismos defensivos, garantidores de sobrevida psíquica.

Frente aos mínimos estados de diferença, busca-se, cada vez mais, evadir-se da experiência, agindo de maneira compulsiva. De acordo com Maia, “no agir a dor, temos um psiquismo inundado por intensidades. O agir a dor não é voluntário, nem contém qualquer intenção. O agir a dor nem sempre envolve um movimento colérico e “barulhento” (2003, p. 238 – grifos da autora)”. Tais passagens ao ato guardam, em si, a dimensão de vazio, pois o sujeito age incessantemente, mas não compõe uma história de vida. Não há o mínimo contato e formação de experiências subjetivas internalizadas, capazes de constituir conteúdo introjetado. O afluxo desenfreado de signos de percepção, oferecidos pela ordem imagética inflacionada, faz com que a intensidade mantida no psiquismo transborde ao corpo, que, em contrapartida, passa a agir desenfreadamente.

Em tal estado de vazio funcional, o sujeito é um excelente operador externo, sendo capaz de realizar atividades cotidianas de alta complexidade. No entanto, a condição empobrecida em que seu mundo interno se encontra vem reclamar, numa espécie de retorno, através dos estados de normopatia. De acordo com Ferraz,

“O que ocorre na normopatia é, na verdade, uma cisão entre a realidade interna e externa, a primeira sendo praticamente suprimida e a segunda sobre-investida de modo compensatório. O sujeito perde o contato consigo mesmo, passando a funcionar à moda de um robô (2002, p.12)”.

Ainda de acordo com o autor, “a normopatia é, assim, uma formação decorrente de processos defensivos contra o risco de sérias desorganizações, sejam psíquicas, sejam somáticas (...) (op. cit., p.35),” “a característica fundamental do normótico é, assim, sua

aversão ao elemento subjetivo, seja em si mesmo, seja no outro. Por um lado, isso faz com que sua capacidade de instrospecção seja muito pequena e, por outro, impede-o de olhar para o outro com profundidade (op. cit., p. 70)”. O que mais fica patente no funcionamento psíquico do normótico é o vazio de conteúdo subjetivo capaz de processar as experiências na arena da afetação intersubjetiva. Esse vazio diz de uma condição mínima da representação simbólica. Portanto, o normótico é a personificação do sujeito empobrecido da linguagem, ou melhor, a presença do normótico, nos dias de hoje, é o berro do retorno subjetivo, que, enquanto característica fundante do humano, não pode ser recalcado. Em outras palavras, há o retorno em direção ao vazio essencial, uma vez que este, apesar de massacrado e minado pelo estado de obsessão pela evasão da atualidade, não deixa de se fazer presente enquanto força constante que exige trabalho psíquico.