• Nenhum resultado encontrado

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS SOBREVIVÊNCIA, GÊNESE, TRABALHO ”AMOR E DOR”!

3.4 O rio como cartão-postal: a destruição como atração

Não é por acaso que, em 1991 o mesmo rio, famoso pelas enchentes que permearam os séculos XVIII e XIX, foi o cenário de uma manifestação simbólica. No Dia Mundial do Meio Ambiente, um banho no rio simbolizou, por um lado, o suposto fim do garimpo nas águas, marcando (conforme artigo do jornal O Popular), um outro momento e, por outro, representou a manutenção de um sistema de esgoto que punha em risco a saúde das águas.

O significado desta ação esteve, ainda que não retratada na narrativa escrita, ligada à necessidade de manutenção de uma referência cultural cuja destruição poderia

35

Jornal O Popular, 17 de janeiro de 1991, Velhos casos da História de Goiás: Desastres ecológicos nos tempos do ouro.” Autor: Paulo Bertran. Arquivo O Popular, Pasta Cidade de Goiás, pesquisa de julho de 2005.

comprometer a “imagem de cidade histórica”. Existe aí uma tensão entre a importância patrimonial do rio e o perigo deste para a cidade histórica. Era, de fato, uma questão de sobrevivência, pois, carregado de experiências vividas e sentido como referência cultural, a preservação do rio havia se tornado fundamental no processo de construção da história e da identidade da cidade, ao mesmo tempo em que ele deveria ser “disciplinado”, saneado. Controlar o rio e as enchentes atualmente, tornou-se uma necessidade também do turismo. Visto desta forma, o rio é, ora um problema, em função das enchentes, ora mecanismo de sobrevivência, como referência cultural (e de turismo, como se verá a seguir). Isso torna “as chuvas” uma das questões que compõem a gama de preocupações em torno do rio como referência para moradores e turistas.

As águas do Rio Vermelho, livres do garimpo de ouro, mas poluídas pelo esgoto da Cidade, foram palco de um banho insólito e de protesto ontem, no encerramento das comemorações do Dia Mundial do Meio Ambiente. Surpreendendo as cerca de quatro mil pessoas que participaram das festividades, o secretário de Cultura local, Héber da Rocha Rezende Júnior, imitado depois por quatro estudantes, tirou os sapatos e mergulhoude roupa nas águas contaminadas, retirando de lá amostras de seu lixo. O ato simbolizou a revolta da população de Goiás por assistir a destruição do tradicional Rio Vermelho, que traçou a história da Cidade.36

Apontando experiências vividas em torno do rio, o jornal O Popular exaltou a iniciativa de criação da “Associação de Luta pelo Saneamento”. É interessante lembrar que um dos aspectos destacados por Pedro Ludovico para promover a transferência da capital para uma cidade planejada foi que Goiás não possuía a infra-estrutura ideal para ser uma capital que se desejava moderna. Neste caso, arrisco dizer que a discussão não estava ligada somente à Cidade de Goiás, mas também a Goiânia.

36

Jornal O Popular, 06 de junho de 1991, “Protesto contra a poluição do Rio Vermelho.” Arquivo O Popular, Pasta Cidade de Goiás, pesquisa de julho de 2005.

De fato a questão do lixo na cidade é bastante problemática, sendo apresentada inclusive na narrativa oral de moradores do entorno pobre da cidade. Por isso é significativa a breve narrativa do artigo:

O município está às voltas com graves problemas de contaminação de águas, necessitando do saneamento de seus cursos hídricos o mais rapidamente possível. Foi para buscar a solução desses e de outros problemas sérios, que acaba de ser constituída a Organização de Resgate Ambiental Vilaboense, presidida pela professora Valdecy Alencastro Veiga e tendo como presidente de honra o promotor Sulivan Silvestre Oliveira, coordenador estadual do Meio Ambiente do Ministério Público.37

Viajando no tempo, ouvindo histórias, lendo artigos de jornais e manuscritos de época, lendo cartazes, folders turísticos, nomes de hotéis e bares, vejo o Rio Vermelho como uma referência cultural marcada por ambigüidades e contradições. Carregado de múltiplas experiências vividas de diferentes formas, o rio faz parte das histórias da Cidade de Goiás, porque é parte das várias memórias que envolvem as pessoas que ali vivem ou que visitam a cidade, tornando-se forte inspiração para artigos de jornais, reportagens televisionadas e discussões patrimoniais preservacionistas.

Como finalização deste capítulo, e lembrando a importância do rio para a vida em todos os sentidos, insiro a imagem de um cartão-postal elaborado pouco após a última enchente ocorrida em 2001, O inusitado é que, o fator da natureza que pode passar como um desastre – que foi a enchente ocorrida – é também, conforme apontei anteriormente, um símbolo de resgate, de limpeza, de vida, enfim. Tanto o é, que a cidade de Goiás elaborou um cartão-postal contendo fotos do “desastre”, e o vendeu nas lojas junto aos cartões tradicionais, apontando e mostrando a cidade de Goiás e a “cheia” do Rio, como um dos eventos “turísticos” que costumam ocorrer na cidade anualmente. A diferença é

37

Jornal O Popular, 11 janeiro 1992, “Associação luta pelo saneamento”, Goiânia/GO Arquivo O Popular, Pasta Cidade de Goiás, pesquisa de julho 2005.

que a enchente não é anual, pois como os relatos apontam, ocorre aproximadamente uma vez a cada decênio.

Fig. 15: Cartão-Postal com a fotografia da enchente de 2001 (Frente)

Este é vendido nas lojas da cidade, juntamente com outros cartões- postais com imagens e paisagens da cidade. Fotografia tirada por um morador local.

Fig. 16: Verso do mesmo Cartão-Postal. Fotografias de um morador local, no dia da enchente de 2001.

Vendidos juntamente com os demais cartões-postais, encontrei outros três que também fazem alusão à enchente. Estes são parte da “Série Enchente” produzida em 2001, e são representações do desastre, porém na forma de pintura – óleo sobre tela, conforme pode-se visualizar na figura 17.

Sendo assim, o rio aqui descrito e iconizado, vem ao encontro da dicotomia aludida ao potencial que é a cidade de Goiás, e ao que esta tese vem elucidando: passado e presente, poder e perda, mas sempre recheados de imaginário e de reforço a que a cidade tenha reconhecido seu valor histórico patrimonial - ainda que este valor destoe do que a própria população residente sinta como referência da dinâmica local, pois, ela mesma, a população local, re-significa a memória hegemonicamente construída, entretecendo-se a ela e ao mesmo tempo burlando-a.