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O riso de Foucault: do comentário à utilização

Non, non je ne suis pas là où vous me guettez, mais ici d'où je vous regarde en riant.

M. Foucault, L’arquéologie du savoir, 1969.

120 Seria exagerado afirmar que nuestra relación es hostil; yo vivo, yo me dejo vivir, para que Borges pueda tramar su literatura y esa literatura me justifica. Nada me cuesta confesar que ha logrado ciertas páginas válidas, pero esas páginas no me pueden salvar, quizá porque lo bueno ya no es de nadie, ni siquiera del otro, sino del lenguaje o la tradición. Por lo demás, yo estoy destinado a perderme, definitivamente, y sólo algún instante de mi podrá sobrevivir en el otro. Poco a poco voy cediéndole todo, aunque me consta su perversa costumbre de falsear y magnificar. [...] Así mi vida es una fuga y todo lo pierdo y todo es del olvido, o del otro.

J. L. Borges, Borges y yo, 1960.

Como devemos ler Foucault se levarmos a sério seus questionamentos sobre as noções de autor e de obra e acerca da prática do comentário? As considerações feitas por Foucault lançam um desafio perigoso aos seus leitores: como organizar essa massa textual produzida pelo indivíduo Foucault? É a unidade autoral “Foucault” uma categoria operacional para lidar com esses discursos? Devemos seguir as sugestões de Foucault e anular aquilo que permite delimitar a unidade e singularidade desses discursos a partir do exercício da função-autor? Ou devemos, em sentido contrário, opor Foucault a ele mesmo e inscrever seu trabalho nas categorias que ele mesmo julgou impotentes e inadequadas? Ao tentar ler Foucault, como não ouvir seu “riso metálico e fulgurante”?

Essas e outras perguntas foram colocadas por Roger Chartier, na esteira do texto intitulado O riso de Michel Foucault de Michel de Certeau (cf. CHARTIER, 2009, p. 156).

Segundo De Certeau, Foucault não se definia como autor, mas mais propriamente como leitor, sendo o riso a assinatura do filósofo diante da ironia da história, que joga com os homens, ri de suas pretensões e torna irrisório todo papel pedagógico e moralista assumido pelos “intelectuais”. Percebendo a ironia de sua própria posição, Foucault teria feito de seus escritos uma seqüência de experiências que nascem de suas curiosidades e espantos, que apenas instauram novas problemáticas e oferecem novos instrumentos de pensamento (cf. DE CERTEAU, 2002a, p. 137-41). Na mesma linha, Philippe Artières sustenta que o riso atravessa toda a obra foucaultiana, sendo a gargalhada (éclat de rire) o momento instaurador da atividade filosófica (cf. ARTIÈRES, 2012d, p. 168).

Partindo também dessas questões, gostaria de analisar a posição que Foucault assume diante de seu próprio trabalho, que tende a ser bastante irônica e paradoxal. Em relação a esse

121 tema, tratarei, na seqüência, da busca pelo anonimato defendida e pretendida por Foucault em diversas ocasiões. Por fim, gostaria de finalizar este primeiro capítulo da tese tratando do problema envolvido na publicação de Foucault e na constituição e comentário de sua “obra”.

Com relação à postura de Foucault diante de sua “obra”, é forçoso admitir que ela está longe de ser pacífica e confortável. Os diálogos fictícios que muitas vezes introduzem ou concluem seus livros ou aulas, os prefácios curtos e irônicos que escreveu, e a resistência a considerações biográficas e pessoais em suas entrevistas, mostram um Foucault inquieto e insatisfeito com a posição que lhe parece ser estabelecida pela nossa ordem do discurso. Em várias ocasiões, Foucault fez considerações sobre como gostaria de ser apropriado e empregado. Mais do que um desejo de ser interpretado dessa ou daquela maneira, ou de uma tentativa vã de ditar a lei que deveria guiar a leitura de seus textos, Foucault pretende mais propriamente problematizar sua própria posição na ordem do discurso e, em certa medida, resistir às suas coerções e fugir (ou deslizar sutilmente) dos “lugares” que lhe são reservados.

Convém mencionar, nesse sentido, algumas das várias ocasiões nas quais Foucault teceu comentários sobre como gostaria de ser lido, ressaltando sempre a impotência do autor diante do poder do leitor. Em uma entrevista publicada em 1978, Foucault deixou claro que não pretendia, e que seria mesmo impossível, tentar controlar as interpretações feitas de seus escritos. Em suas palavras:

Creio que aquele que escreve não tem o direito de exigir que os outros o compreendam como ele quis ao escrever o texto. A partir do momento que se escreve, deixamos de ser o proprietário daquilo que dissemos, salvo sob um aspecto jurídico. [...] Creio que a liberdade do leitor deve absolutamente ser respeitada. O discurso é uma realidade que pode transformar-se ao infinito. Assim, aquele que escreve não tem o direito de dar ordens quanto à utilização de seus escritos (FOUCAULT, 1978, DE2, 236, p. 619).95

Essa mesma postura aparece no prefácio escrito para a edição inglesa de As palavras e as coisas, publicada em 1970 com o título The order of things. Cito novamente Foucault:

Seria preciso, talvez, intitular esse prefácio de “manual de uso”. Não que, aos meus olhos, o leitor não seja digno de confiança – livre para fazer o que quiser do livro que ele teve a amabilidade de ler. Qual direito eu tenho de

95 Em francês: “Je pense que celui qui écrit n’a pas le droit d’exiger d’être compris comme il a voulu l’être lors de l’écriture. C’est-à-dire qu’à partir du moment où il écrit, il n’est plus le propriétaire de ce qu’il dit, sauf sous un aspect juridique. […] je pense que la liberté du lecteur doit absolument être respectée. Le discours est une réalité qui peut se transformer à l’infini. Ainsi, celui qui écrit n’a pas le droit de donner des ordres au sujet de l’utilisation de ses écrits”.

122 sugerir que se faça desse livro um uso ao invés de outro? (FOUCAULT, 1970, DE1, 72, p. 875).96

Outro exemplo eloqüente dessa postura encontra-se na aula ministrada por Foucault no Collège de France em 7 de janeiro de 1976, introduzindo o curso Em defesa da sociedade.

Segundo Foucault:

[Este trabalho] são pistas de pesquisa, idéias, esquemas, apontamentos, instrumentos: faça com ele o que bem entender. No limite, isso me interessa, e isso não me diz respeito. Não me diz respeito na medida em que não me cabe estabelecer as leis quanto à utilização que vocês farão dele (FOUCAULT, IDS, p. 3-4).97

No mesmo sentido, em uma entrevista publicada em 1984 com o título Uma estética da existência, ao ser perguntado sobre qual seria o tipo ideal de leitor que gostaria de ter, Foucault responde: “Não há qualquer motivo para que se faça, além do livro, a lei do livro. A única lei, são todas as leituras possíveis. Eu não vejo nenhum grande inconveniente se um livro, sendo lido, seja lido de diferentes maneiras” (FOUCAULT, 1984, DE2, 357, p. 1553).98 Mais adiante, nessa mesma entrevista, Foucault diz que a única lei que gostaria de ver instaurada seria a proibição de se utilizar duas vezes o nome do autor, tomado-o, ao mesmo tempo, como aquele que produziu a obra e também como um indivíduo de carne-e-osso, com uma vida específica. Visa-se, assim, garantir o direito ao anonimato (cf. FOUCAULT, 1984, DE2, 357, p. 1553-4).

Essa postura de Foucault, que se manifesta em diferentes momentos, é, contudo, dúbia, pois ele, por diversas vezes, “comentou” sua própria obra e “explicou” seu percurso intelectual (com leituras, aliás, bem divergentes). Como compreender esses reiterados

“comentários sobre si mesmo”? Será que o fato de Foucault insistentemente reconstruir seu passado nas entrevistas, dando novos sentidos e funções aos seus textos, pode ser tomado como uma tentativa de se erigir como autor e de fazer de seus textos uma obra? Estariam esses comentários feitos sobre si mesmo em contradição com suas críticas às categorias de autor e obra? Seguindo nessa linha, Frédéric Gros afirma que Foucault, apesar de defender o

96 Em francês: “Il faudrait peut-être intituler cette préface ‘mode d’emploi’. Non qu’à mes yeux le lecteur ne soit pas digne de confiance – libre à lui, bien entendu, de faire ce qu’il veut du livre qu’il a eu l’amabilité de lire.

Quel droit ai-je donc de suggérer qu’on fasse de ce livre un usage plutôt qu’un autre?”.

97 No original: “[Ce travail] ce sont des pistes de recherche, des idées, des schémas, des pointillés, des instruments: faites-en ce que vous volez. À la limite, cela m’intéresse, et cela ne me regarde pas. Cela ne me regarde pas dans la mesure où je n’ai pas à poser des lois à l’utilisation que vous en faites”.

98No original: “Il n’y a pas de raison qu’on fasse non seulement le livre, mais aussi la loi du livre. La seule loi, ce sont toutes les lectures possibles. Je ne vois pas d’inconvénients majeurs si un livre, étant lu, est lu de différentes manières”.

123 abandono das noções de autor e obra, contradiz-se com grande freqüência e tranqüilidade nas entrevistas. Cito Gros: “Foucault espontaneamente, com aquela candura ingênua que ele soube tão bem reprovar nos outros, institui-se autor de sua obra, ou seja, ele descreve uma empreitada regrada, contínua, lógica” (GROS, 2003, p. 94).99

A postura ambígua de Foucault parece decorrer de uma situação bastante desconfortável, sem saída, na qual as duas possibilidades que se apresentam são igualmente repugnantes: ou ele responde cada leitura supostamente deformadora de seus livros, ditando assim a lei aos seus leitores, ou ele deixa as deformações mais grotescas terem livre curso. As ambigüidades de Foucault parecem refletir sua insatisfação diante do regime estabelecido de circulação discursiva, que o coloca sistematicamente em situações embaraçosas e insatisfatórias. Talvez esse desconforto tenha impulsionado Foucault a estudar outros regimes de escrita (como os hypomnémata do período helenístico) e a buscar um anonimato radical, indicando outras possibilidades (passadas e futuras) de o sujeito se relacionar com os discursos.

Quanto ao caráter dúbio da postura de Foucault, entendo que não devemos colocar esses comentários sobre si mesmo no mesmo nível de sua crítica ao autor. É preciso ter em mente o estatuto particular das entrevistas concedidas por Foucault. A finalidade delas não era criar a lei sobre como ler seus textos, não era dizer a verdade sobre sua obra, mas prolongar seus trabalhos de forma diferente, reproblematizar e prolongar certas análises, e dizer algo (geralmente com mais espontaneidade) que o livro não permitia que fosse dito. Trata-se, nas entrevistas, de outro tipo de relação entre sujeito e discurso. A volta sobre si operada por Foucault não deve ser vista como um culto de si mesmo como autor, mas sim como uma postura ética que envolve uma constante modificação de si através da escrita e da fala.

Apesar dessas constantes referências aos seus escritos anteriores, a postura de Foucault tende a ser muito desconfortável quando se trata de falar de si mesmo. Por exemplo, ao ser convidado para escrever o verbete ‘Foucault’ para o Dicionário dos Filósofos (Dictionnaire des Philosophes), Foucault aceita, mas sem assinar seu nome. Ele fala de si mesmo em terceira pessoa e serve-se de um pseudônimo no qual entrevemos seu próprio nome: Maurice Florence ou M. F. (cf. FOUCAULT, 1984, DE2, 345, p. 1450-5). A posição de “grande filósofo” e o fato de ter-se tornado um personagem midiático, que enchia auditórios e escrevia verdadeiros best-sellers, sempre provocou nele grande incômodo, como podemos perceber nas insistentes queixas feitas ao papel que lhe era conferido nesse “teatro”.

99 No original: “Foucault spontanément, avec cette candeur naïve qu’il avait su si bien reprocher aux autres, s’institue auteur de son œuvre, c’est-à-dire qu’il décrit une démarche réglée, continue, logique”.

124 Nesse sentido, além de ter uma postura desconfortável diante de seus escritos, Foucault também demonstrava certo incômodo diante dos auditórios repletos de ouvintes. Por exemplo, Hans Sluga relata que, quando de uma ida a Berkeley, Foucault teria parado e pensado em voltar, recuando, meio hesitante, ao ver a sala cheia (cf. SLUGA, 1986, p. 842).

Sluga interpreta esse recuo de Foucault como a expressão do receio de vir a ser assimilado àquilo que pensa o público. Como se Foucault tentasse evitar ser consumido como um herói.

De acordo com Sluga: “Nós temos a visão de um público, procurando conferir uma posição ao autor, e de Foucault, resistente a tal categorização, recusando-a em nome da liberdade. O que retiramos disso é essa recusa irônica de Foucault, que ele opõe ao papel que tentamos atribuir-lhe” (SLUGA, 1986, p. 855).100

Para além de um mero desconforto tacitamente expresso, Foucault julgou que a recusa do gesto biográfico merecia um tratamento teórico explícito, que, por vezes, chegou a ganhar a forma de uma defesa de um rigoroso anonimato. Em várias ocasiões, ele se negou a fazer considerações de ordem biográfica ou pessoal, dizendo que sua vida não tinha qualquer importância ou relevância. Foucault procurou, várias vezes, reduzir a dimensão pessoal ou autoral de seu trabalho, ressaltando, ao contrário, o contexto e o espaço dentro do qual ele emergia, de forma mais propriamente anônima. Para exemplificar essa postura, convém mencionar algumas passagens de entrevistas concedidas por Foucault em períodos bem diversos, o que indica que se trata de um posicionamento que parece tê-lo acompanhado ao longo de seu percurso intelectual.

Em 1967, ao ser dito em uma entrevista que As palavras e as coisas era um livro bem pessoal, Foucault, em sua resposta, buscou minimizar essa colocação, dizendo que o livro era uma “ficção”, inventada mais propriamente pela configuração epistemológica de nossa época que por ele mesmo. Segundo Foucault, o sujeito estaria presente no livro apenas na forma de um “se” (on) anônimo. Ao tentar explicar melhor esse anonimato, Foucault ressalta sua intenção de romper com uma herança da antiga tradição exegética que nos faz acreditar que há “algo mais” dito por detrás daquilo que está dito, que corresponderia ao “verdadeiro pensamento do autor” (la pensée véritable de l’auteur). Em suma, Foucault critica o privilégio hermenêutico conferido ao autor, oferecendo, como exemplo, a crítica literária contemporânea, que teria abandonado o “grande mito da interioridade” (le grand mythe de l’intériorité) (cf. FOUCAULT, 1967, DE1, 48, p. 619-20). Em uma entrevista posterior,

100 No original, em francês: “Nous avons la vision d’un public, cherchant à assigner une position à l’auteur, - et de Foucault, rétif à telle catégorisation, la récusant au nom de la liberté. Ce que nous en gardons, c’est ce refus moqueur de Foucault, qu’il oppose au rôle que nous avons tenu à lui attribuer”.

125 publicada em 1975 no Brasil, ao ser perguntado sobre qual o seu método de trabalho e de estudo, Foucault responde, ironicamente, dizendo que padece de um “tipo de doença” que o torna incapaz de conceder entrevistas autobiográficas e que o que importa é “aquilo que acontece, e não aquilo que alguém faz” (ce qui arrive, non pas ce que quelqu`un fait) (cf.

FOUCAULT, 1975, DE1, 160, p. 1648). Nesse sentido, em outra entrevista publicada no Brasil na mesma época, Foucault chega a fazer considerações mais pessoais, ao ser perguntado sobre por que tinha interesse no tema da relação poder/saber, mas não sem mostrar resistência e fazer uma advertência inicial, na qual disse, ironicamente: “eu vou te dar uma razão que eu mesmo não aceitaria e que não daria se se tratasse de outra pessoa. Mas, como se fala sempre mal de si mesmo, eu vou evocar razões biográficas” (FOUCAULT, 1974, DE1, 141, p. 1528).101 Por fim, outro exemplo bem posterior, retirado de uma entrevista concedida a Stephen Riggins em Toronto em 1982, consiste em um desabafo no qual Foucault diz que sua vida pessoal não tem qualquer interesse, e que não se trata de fazer disso um segredo, mas simplesmente de não tornar público aquilo que não há qualquer razão para que se faça (cf. FOUCAULT, 1983, DE2, 336, p. 1357).

Como exceção a essa postura normalmente assumida, foi publicada recentemente na França, em 2011, a transcrição de algumas entrevistas mais intimistas concedidas por Foucault em 1968 a Claude Bonnefoy. O entrevistador insiste para que Foucault aborde sua relação com a escrita e o força a tratar da “trama secreta” de seus livros, daquilo que ficaria debaixo do tapete (l’envers de la tapisserie). Foucault, em uma postura inédita, aceita o desafio, admitindo fazer algo que normalmente o incomoda, que é abordar questões psicológicas e biográficas. Ele procura, contudo, logo de partida, situar sua fala em um nível de linguagem que não seja da ordem da obra, nem da explicação, nem tampouco da confidência. Enfim, é de um jogo (bastante divertido, mas perigoso) que se trata, que corre o risco de se transformar em uma autobiografia anedótica e banal. Foucault diz aceitar esse jogo como um desafio, que reconhece ser difícil para ele, uma tentativa de se livrar de sua linguagem habitual, de sua fala estatutária, como professor ou escritor (cf. FOUCAULT, 1968, p. 25-9, 48). Apesar de Foucault se entregar, nessa entrevista, a esse tipo de consideração mais pessoal, ele adota ao longo da conversa uma postura crítica, problematizando sistematicamente sua própria postura.

101 No original em francês: “Je vais vous donner une raison que moi-même je n’accepterais pas et ne donnerais pas, s’il s’agissait d’une autre personne. Mais, comme on parle toujours mal de soi-même, je vais invoquer des raisons biographiques”.

126 Além da manifestação de desconforto e das breves considerações que encontramos em diversas entrevistas, a questão da fala autobiográfica e do comentário sobre si mesmo mereceu um tratamento mais direto de Foucault nos prefácios escritos para suas “obras”, ou, mais exatamente, em sua resistência a redigir prefácios. De certa maneira, no prefácio, o autor coloca-se em uma posição particular diante de sua obra. O prefácio é uma espécie de paratexto, de texto à margem, no qual o autor toma certa distância e coloca-se, de certa forma, em um lugar exterior e privilegiado frente à obra. No prefácio, tudo se passa como se o sujeito da enunciação, o indivíduo de “carne-e-osso”, identificasse-se idealmente com o sujeito do enunciado, o autor da obra (cf. LECLERC, 1998, p. 162; BOUCHARD, 2003, p. 486).

Um caso exemplar de reflexão nesse sentido foi o prefácio escrito em 1972 para a segunda edição de História da loucura. Logo no início, Foucault confessa repugnar a obrigação que tem diante de si: prefaciar sua obra escrita há mais de dez anos para uma nova publicação. Além de não considerar honesto tentar reescrever um livro tanto tempo depois, o incômodo vinha, em grande medida, do fato de Foucault entender que, no prefácio, o autor coloca-se normalmente em uma curiosa posição diante de sua obra, como alguém que pode falar dela com algum privilégio hermenêutico, cabendo a ele dar a última palavra e proferir o verdadeiro sentido de seu discurso. Segundo Foucault:

A tentação é grande para quem escreve o livro de fazer a lei de todo esse lampejo de simulacros, de prescrever-lhe uma forma, de atribuir-lhe uma identidade, de impor-lhe uma marca que lhe confira certo valor constante.

“Eu sou o autor: olhem meu rosto ou meu perfil. Aqui está a que deverão parecer todas essas figuras repetidas que vão circular sob meu nome, as que se distanciarem disso não terão qualquer valor, e é em razão de seu grau de semelhança que vocês poderão julgar acerca do valor das outras. Eu sou o nome, a lei, a alma, o segredo, a balança que serve de medida para todos esses duplos”. Assim se escreve o prefácio, ato primeiro pelo qual começa a estabelecer-se a monarquia do autor, declaração de tirania: minha intenção deve ser uma ordem, vocês submeterão suas leituras, análises e críticas àquilo que eu quis fazer. Entendam bem minha modéstia: quando falo dos limites de minha realização, minha intenção é limitar sua liberdade, e se eu proclamo meu sentimento de não ter estado à altura de minha tarefa, é que não quero deixar a vocês o privilégio de opor ao meu livro o fantasma de outro, bem próximo dele, porém mais belo. Eu sou o monarca das coisas que disse e tenho sobre elas uma eminente soberania: a da minha intenção e do sentido que quis dar-lhes (FOUCAULT, HF, p. 9-10). [Grifo meu].102

102 No original: “La tentation est grande pour qui écrit le livre de faire la loi à tout ce papillotement de simulacres, à leur prescrire une forme, à les lester d'une identité, à leur imposer une marque qui leur donnerait à tous une certaine valeur constante. ‘Je suis l'auteur: regardez mon visage ou mon profil; voici à quoi devront ressembler toutes ces figures redoublées qui vont circuler sous mon nom; celles qui s'en éloignent ne vaudront rien; et c'est à leur degré de ressemblance que vous pourrez juger de la valeur des autres. Je suis le nom, la loi, l'âme, le secret, la balance de tous ces doubles’. Ainsi s'écrit la Préface, acte premier par lequel commence à s'établir la monarchie de l'auteur, déclaration de tyrannie: mon intention doit être votre précepte; vous plierez votre lecture, vos analyses, vos critiques, à ce que j'ai voulu faire, entendez bien ma modestie: quand je parle des

127 Trata-se de um texto bastante irônico e contundente, que deixa clara a intenção de Foucault de renunciar ao seu trono, de não exercer o poder tirânico que se espera de um autor.

Embora a imagem do autor-tirano possa parecer simplista, se se leva em conta a complexidade do funcionamento da função-autor (cf. BERNAS, 2001, p. 67-8, 176, 188, 213), ela não deixa de apontar para um desconforto e uma tentativa desesperada de Foucault de não assumir e aceitar o lugar que lhe é reservado de “autor do livro”. Na seqüência desse mesmo prefácio, Foucault indica como gostaria que sua obra fosse tomada. Ele pede para que suas palavras não sejam unificadas através da função autoritária do autor, mas que sejam, ao contrário, acolhidas como discursos fragmentários e abertos:

Eu gostaria que um livro fosse, ao menos por parte daquele que o escreveu, apenas as frases das quais é feito, que não se desdobre nesse primeiro simulacro de si mesmo que é um prefácio, que pretende ditar sua lei a todos que poderão no futuro formar-se a partir dele. Eu gostaria que esse objeto-acontecimento, quase imperceptível no meio de tantos outros, copiasse-se novamente, fragmentasse-se, repetisse-se, simulasse-se, desdobrasse-se, desaparecesse finalmente sem que aquele a quem ocorreu de produzi-lo pudesse jamais reivindicar o direito de ser o seu mestre, de impor aquilo que ele quis dizer, nem de dizer aquilo que ele deveria ser. Em suma, eu gostaria que um livro não se atribuísse a si mesmo esse estatuto de texto ao qual a pedagogia e a crítica saberão bem o reduzir, que tivesse a desenvoltura de se apresentar como discurso, ao mesmo tempo batalha e arma, estratégia e choque, luta e troféu ou ferida, conjunturas e vestígios, encontro irregular e cena repetível (FOUCAULT, HF, p. 10).103

Foucault deixa clara sua vontade de ver seu discurso ser apropriado de outra forma, diferente da apropriação realizada pela crítica atual e pelo nosso sistema educacional.

Negando-se a assumir uma posição de autoridade, Foucault procura, ironicamente, justificar a

limites de mon entreprise, j'entends borner votre liberté; et si je proclame mon sentiment d'avoir été inégal à ma tâche, c'est que je ne veux pas vous laisser le privilège d'objecter à mon livre le fantasme d'un autre, tout proche de lui, mais plus beau que ce qu'il est. Je suis le monarque des choses que j'ai dites et je garde sur elles une éminente souveraineté: celle de mon intention et du sens que j'ai voulu leur donner”.

103 No original: “Je voudrais qu'un livre, au moins du côté de celui qui l'a écrit, ne soit rien d'autre que les phrases dont il est fait; qu'il ne se dédouble pas dans ce premier simulacre de lui-même qu'est une préface, et qui prétend donner sa loi à tous eux qui pourront à l'avenir être formés à partir de lui. Je voudrais que cet objet-événement, presque imperceptible parmi tant d'autres, se recopie, se fragmente, se répète, se simule, se dédouble, disparaisse finalement sans que celui à qui il est arrivé de le produire, puisse jamais revendiquer le droit d'en être le maître, d'imposer ce qu'il voulait dire, ni de dire ce qu'il devait être. Bref, je voudrais qu'un livre ne se donne pas lui-même ce statut de texte auquel la pédagogie ou la critique sauront bien le réduire; mais qu'il ait la désinvolture de se présenter comme discours: à la fois bataille et arme, stratégie et choc, lutte et trophée ou blessure, conjonctures et vestiges, rencontre irrégulière et scène répétable”.

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