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1. CARNAVALIZAÇÃO: DA TEORIA À PRÁTICA

1.3. Ambivalência na linguagem carnavalesca

1.3.1. O riso: do ingênuo ao satírico

O riso tem uma complexidade de significações e realizações, que variam desde a zombaria sarcástica até a despretensiosa manifestação de felicidade. É bom, mau e neutro. A imagem e o significado do riso sofreram poucas alterações no decorrer das eras. A mudança mais significativa está veiculada às regras sociais; antes tinham-se gargalhadas desenfreadas, hoje, o riso é baixo e comedido. As regras sociais impuseram ao riso um novo lugar, outrora imperava sobre todas as festas (religiosas, oficiais e não-oficiais). Sua importância histórica está registrada em inúmeros tratados de diferentes épocas e sociedades; para simplificar o percurso do riso no decorrer das eras, Georges Minois esquematizou o riso em três períodos históricos: o riso divino, o riso diabólico e o riso humano.

Ao riso divino positivo da Antiguidade, depois ao riso diabólico e negativo da Europa cristã até o século XVI, sucede o riso humano e interrogativo, saído das crises de consciência da mentalidade europeia, origem do pensamento moderno. O questionamento dos valores, a ascensão do medo, da inquietação e da angústia, o recuo das certezas são acompanhadas por uma ambígua generalização do riso, que se insinua por todas as novas fissuras do ser e do mundo. Como um navio em perigo, com o casco furado, a humanidade se enche de riso. (2003, p. 631)

O dito riso humano está bastante presente no repertório de Chico Buarque. Em Ópera do malandro19, de 1979, a vertente humorística se desenvolve em meio aos dramas amorosos,

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Trilha sonora da peça Ópera do malandro, o texto do espetáculo é baseado na Ópera dos mendigos(1728), de John Gay, e na Ópera de três vinténs (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. A peça partiu de uma análise dessas duas peças conduzida por Luís Antônio Martinez Corrêa e também com a colaboração de Maurício Sette, Marieta Severo, Rita Murtinho e Carlos Gregório. (Site de Chico Buarque)

o humor se opera, principalmente, por meio de estereótipos. Desse disco destacamos a canção O malandro (HOLLANDA, 1978, p. 191), na qual o título já revela a figura que permeará a temática da canção.

O malandro/ Tá na Greta Na sarjeta/ Do país E quem passa/ Acha graça Na desgraça/ Do infeliz O malandro/ Tá de coma Hematoma/ No nariz E rasgando/ Sua bunda Uma funda/ Cicatriz

O seu rosto/ tem mais mosca Que a birosca/ Do Mané O malandro/ É um presunto De pé junto/ E com chulé

O coitado/ Foi encontrado Mais furado/ Que Jesus E do estranho/ Abdômen Desse homem/ Jorra pus O seu peito/ Putrefeito Tá com jeito/ De pirão O seu sangue/ Forma lagos E os seus bagos/ Estão no chão O cadáver/ Do indigente É evidente/ Que morreu E no entanto/ Ele se move Como prova/ O Galileu

A canção é composta por seis quartetos que narram às desventuras do malandro. O terceiro e quarto versos se reportam à ideia do riso grotesco que surge do infortúnio alheio, e que ao invés de inspirar compaixão, a “desgraça” do malandro provoca riso. As imagens do rebaixamento, evocadas por Rabelais, na Idade Média, estão presentes no segundo quarteto, ratificadas pelas expressões referentes ao baixo corporal: “bunda”, “moscas”, “chulé”, “pus”, “putrefeito”, “bagos”, “chão” e “cadáver”, expressas em toda a música-poema. Esses termos são utilizados para denegrir a imagem do malandro e do seu contexto sócio-econômico. Em “O malandro/ Tá na greta/ na sarjeta/ Do país” não há conotação ambígua do tema morte- ressurreição, que visava regenerar o homem. Logo, o riso na canção é humano, como classificado por Georges Minois, e evoca aqui uma reflexão sobre a condição do homem.

Esse ambiente desvinculado das hierarquias também é encontrado na poética de Chico Buarque enquanto oponente de uma cultura oficial, desligando-se do mundo sério e adentrando nos ritos cômicos de cunho sentimental, crítico e/ou satírico, marcados, principalmente, pela linguagem ambígua. Embora a ambiguidade cômica seja um elemento crítico eficaz para refletir a condição humana, o riso satírico sofreu, no decorrer da história, diferentes apreciações que oscilam entre os extremos positivo-negativo, como Georges Minois expõe na citação abaixo:

O riso não é mais uma manifestação aviltante e que despreza a vaidade e o orgulho dos espíritos pequenos. De visão global da existência, ele se transformou em procedimento intelectual da crítica, instrumento destruidor a serviço da razão. Para Rabelais, todo mundo pode rir; com acentos

diferentes, porque o riso e próprio do homem e da essência da vida [...]. (2003, p. 363)

Na obra de Chico Buarque identifica-se a censura ao riso, não pela igreja como no mundo clássico, mas pelo regime militar, imposição esta que pode ser constatada em Apesar de você, nos versos “Onde vai se esconder/ Da enorme euforia” e “Eu vou morrer de rir”. O riso manifesta-se também como arma de ataque dos desfavorecidos; sendo um mecanismo parodístico, é o espelho deformante da sociedade, em que o homem zomba de si próprio e de sua condição. No carnaval, tem-se uma cópia deformante e sintetizada da sociedade, em que há o embate entre a visão séria das autoridades e a visão cômica do povo, reavaliando os valores éticos e religiosos que norteiam o homem. Segundo Georges Minois, o riso tem uma função social:

[...] O riso medieval é mais conservador que destrutivo, em seu aspecto coletivo organizado. A utilização consciente do riso pela literatura, seu exame pelos filósofos e teólogos, sua manipulação pelo bobo do rei e pelos pregadores confirmam essa impressão tanto no humor profano como no humor sagrado. (2003, p. 191)

O riso é motivado por circunstâncias cômicas ou como manifestação de alegria. Na literatura, em especial, tem-se inúmeros registros de comicidade. Sobre a relação do humor dentro da poética buarqueana, o próprio Chico Buarque afirma que:

Acho que o humor está presente nas minhas letras [...]. Não tenho músicas de humor, mas tenho músicas que contém humor. Isso também acontece porque escrevi muita coisa pra teatro e às vezes havia situações dentro de uma peça que pediam uma música quase humorística. Acho que o humor está presente aqui e ali, mas não é um objetivo. Vinícius dizia que “fazer samba não é contar piada”. (WEINSCHELBAUM, 2006, p. 226-7)

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