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O riso e a violência como mitos do real e do ficcional

Capítulo 2 Gênero do discurso: confronto e aproximações entre o Auto e a Cidade

1. A carnavalização no Auto da Compadecida

1.1 O riso e a violência como mitos do real e do ficcional

Encontramos traços carnavalizados de forma bastante acentuada na obra de Ariano Suassuna, em que a marca do riso se estabelece de maneira contundente, pois a comédia clama por sensações de relaxamento e languidez emocional, embora a narrativa também se insere em outras pairagens de tensão e medo, pois os gêneros se confluem e é a predominância de ações que determinará a sua classificação. Essa hibridização narrativa também acontece com a obra de Paulo Lins e a transposição de Fernando Meirelles ,a predominância da ação não é o riso, contudo há passagens em que os autores inserem diálogos pitorescos e conseguem modificar o semblante do leitor, corre na face um leve sorriso, desfazendo a fisionomia de expectativa. Desta forma o riso está presente em qualquer gênero, a sua predominância é que fará da obra uma comédia. Ele passeia pelos becos escuros e pelas florestas cheias de luzes, pois não é à-toa que a explicação da origem do riso conta que ele foi enviado à terra pelo diabo, apareceu aos homens com a máscara da alegria e eles o acolheram com agrado. No entanto, mais tarde, o riso tira a máscara alegre e começa a refletir sobre o mundo e os homens com a crueldade da sátira. As formas cômicas não predominam apenas na literatura, com intuito de ganhar popularidade e de serem acessíveis ao povo e de conquistarem confiança, os chefes protestantes recorreram a elas em seus tratados teológicos. O século XVI foi o marco do apogeu da história do riso,e na época o riso foi classificado pelo pesquisador Schneegans de três maneiras: o cômico bufo, que é o riso direto, ingênuo e sem malícia; o burlesco, onde há certa dose de malícia e rebaixamento das coisas elevadas, além disso o riso não é direto, é preciso conhecer o

objeto de rebaixamento; no terceiro caso temos o grotesco, neste assiste-se á ridicularização de certos fenômenos sociais, este riso também não é direto, pois é preciso ter conhecimentos desses fenômenos sociais. 74

Assim como o riso está presente nas duas obras com maior ou menor proporção, a violência também aparece e tem também seus 15 minutos de fama, o que não é o caso de

Cidade de Deus, que retrata a realidade contemporânea dos grandes centros urbanos.

Consideramos esta narrativa como um texto pragmático que especifica por apresentar um estado de fato, numa tradução livre, uma interpretação que oferece um modo de orientação quanto a uma situação dada. “ O texto pragmático é caracterizado pelo fato de que o

produtor e o receptor, previamente conhecedores do saber social armazenado como esquema de ação, prevêem os seus respectivos papéis. O produtor sabe o que dele espera o receptor e este, o que aquele lhe deve oferecer.”. ( LIMA: 2002, 32).

O real e o ficcional se misturam no texto literário, embora pragmático ele carrega traços miméticos da realidade. A teórica Stierle coloca que a marca básica do texto ficcional é, não obstante, todas as referências à realidade, o seu caráter de colocação. “ A

relação do texto com a realidade não é uma simples função da realidade a ser retratada, mas sim de uma poética da ficção, que pode ser ora mais, ora menos relacionada com realidade e com a experiência coletiva da realidade75”.

Segundo Stierle a distância pragmática entre o leitor e o texto ficcional é uma distância fingida, pois o leitor assume um papel que independe do contexto concreto de sua história pessoal. “Do mesmo modo é “fingido” o papel pragmático do autor, papel que se

liga ao próprio texto76”. Seguindo a lógica sugerida pela teórica da recepção, mesmo tendo um produto meramente real, oriundos de uma pesquisa sobre a violência urbana e transformando o fruto desta pesquisa em romance, o autor de Cidade de Deus carrega na narrativa este misto pragmático-ficcional e a violência trazida como personagem central encarnada na personificação da favela, habita o universo ficcional ao transpor-se para a classificação do gênero romance, ao estabelecer-se no universo denominado de literatura.

Localizamos em ambas as obras o mito da violência vivenciada na região Nordeste e na Sudeste, podemos dizer que ambas se vestem com os adereços do cangaço tipicamente

74 Explicação do riso encontrado em A Cultura Popular da Idade Média, de Mikhail Bakhtin. 75 Stierle, K. Que significa a recepção dos textos ficcionais? In A Literatura e o Leitor. .p. 147 76 ibid. p.147

nordestino. Sabemos que a crueldade do cangaço é mostrada como um indício do atraso de uma região atribuída à causas meramente econômicas. E o cangaço dos morros cariocas se justificaria por qual motivo? Arriscaríamos com a mesma causa dada ao cangaço nordestino: a situação econômica, mas acrescentaríamos esta a social. “ A narrativa e obras

sobre o cangaço enfatizam o seu lado cruel , violento, selvagem, desenhando o Nordeste como um espaço da valentia e da morte estúpida e gratuita, por puro sadismo, por prazer, ou por espírito de vingança. [...] o cangaceiro é quase uma “fera”. É um homem que mata e é mau por instinto ou por destino.” (ALBUQUERQUE JR: 2002, 205)

A observação feita pelo pesquisador Durval Albuquerque Jr. nos situa frente a visão estereotipada e recorrente da figura do cangaceiro e por extensão ao nordestino. Em o Auto

da Compadecida o cangaceiro está caracterizado na personagem de Severino de Aracaju , a

violência é sua arma de ação, o cangaceiro é aquilo que já se construiu, e o leitor- espectador de qualquer espaço geográfico não vai se assustar com suas ações pois a figura do cangaceiro já foi solidificada ao longo da história. A obra Cidade de Deus também recorre ao real, os dias atuais trouxeram de volta os cangaceiros de outrora e os locaram em outra região, é isso que a narrativa mostra, e a definição de cangaço poderia ser extensa ao neocangaço – “lado cruel, violento, selvagem, desenhando no Sudeste como um espaço de

valentia e da morte estúpida e gratuita....”

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