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O romance de maior destaque na carreira literária de Ferreira de Castro: A

Cenário de contínuas adversidades, a Amazônia atraía, desde o início do processo de colonização do Brasil, inúmeros exploradores, ávidos de enriquecimento, trabalhadores em busca de sobrevivência, sujeitos à indomesticável floresta, estudiosos e escritores de todas as origens e nacionalidades, buscando, incansavelmente, destituir a imponderabilidade da floresta e revelar ao mundo as atrocidades praticadas ou sofridas pelo homem nesse meio adverso à sobrevivência e à lucidez. Expressando-se nesse sentido, o antropólogo Roger Bastide, inicia o capítulo que trata da Amazônia brasileira, em seu livro Brasil, Terra de Contrastes (1980), sintetizando todos os embates que a maior floresta tropical do mundo pôde gerar no pensamento de muitos que com ela se defrontaram, aqui no Brasil:

Inferno? Paraíso? Terra que Deus criou no sétimo dia da criação? Região de sonhos e de miséria? Filósofos, sociólogos, geógrafos não sabem como definir este labirinto de águas, de flores, de lianas. Rio – mar, ilhas que surgem para desaparecer, terras que desabam e se refazem. Nem paraíso como queriam os primeiros exploradores, entusiasmados com a descoberta de frutos desconhecidos, de sabores novos, de mulheres nuas para saciar volúpias de marujos glutões – nem inferno, como queriam viajantes fatigados da imensidão verde, picados por insetos, temendo perder-se, sumir sentindo a inteligência dissolver-se lentamente, pensamento e corpo transformando-se em água... Mas, talvez paraíso transformado em inferno pelo homem, na sua ânsia de extrair riquezas de tudo, comercializando a árvore e o capim, metamorfoseando em dinheiro o suco das plantas, o veneno dos cipós, o colorido dos pássaros. E neste desejo, escravizando o índio, deslocando populações, atirando para o pântano o homem dos desertos secos, encadeando-o por dívidas às cooperativas dos trustes capitalistas, à exploração perpétua das árvores da borracha. (BASTIDE, 1980, p. 23)

É sob o signo desses contrastes, gerados ora pelo olhar direcionado à impetuosidade da floresta, ora pela atitude de denúncia contra o capitalismo extrativista que massificava os indivíduos para o trabalho árduo e tinha consigo a

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Retomando, a edição de A Selva, utilizada neste trabalho, salvo outra menção, será a da Editora Verbo, publicada em 1972.

dimensão da floresta como aliada do seu processo desumanizador, que, incontáveis escritores ambientaram suas obras e carregaram nas tintas as cores do drama dos homens, no seio da floresta fechada. Destaque a estes se dá a Ferreira de Castro, o qual soubera, como poucos, dosar a cota de drama e realidade emergentes da floresta em sua obra máxima, A Selva.

Conforme Jorge Amado, Ferreira de Castro, com A Selva, legou ao mundo mais do que sua experiência vivida, deixou, pois um relato documental da realidade amazônica, pois, como afirma no Prefácio da edição de 1972 do romance,

Aprendeu no Brasil muito do essencial de sua personalidade de humanista, na selva o menino se fez homem e grande homem. Em troca, tomou da vida brasileira, do mistério amazônico, e levou seu conhecimento aos quatro cantos do mundo, na emoção da obra criada com o barro das barrancas do grande rio e sangue dos nordestinos na luta dos seringais. (AMADO, J. In. FERREIRA DE CASTRO, J.M. A SELVA. São Paulo: Civilização Brasileira 1972, p. 17-20)

Para o crítico literário Manuel Anselmo, Ferreira de Castro dá voz às camadas discriminadas da sociedade amazônica, ao trazer consigo “o depoimento humano que haveria de imortalizar suas personagens mais importantes” (ANSELMO, 1943, p. 224-231)

O próprio Ferreira de Castro, no artigo “Pequena História de A Selva”, publicado na edição comemorativa dos vinte e cinco anos do romance, em 1955, reafirma a dimensão que a floresta adquirira em seu olhar, no momento de sua escritura. Uma espécie de metalinguagem, ao tocar na maneira como escreveu seu grande romance:

As selvas,fechassem elas o seu mistério nas vastidões sul– americanas ou verdejassem, mais permeáveis à luz solar, na Ásia, na África, na Oceania, representavam, desde há muito, um assunto maculado literariamente. Maculado por milhentos romances de aventuras, onde a imaginação de seus autores, para lisonjear os leitores fáceis, se permitira todas as inverossimilhanças, todas as incongruências.

Eu pretendera fugir à regra. Pretendera realizar um livro de argumento muito mais simples, tão possível, tão natural, que não se sentisse mesmo o argumento. Um livro monótono porventura, se não pudesse dar-lhe colorido e vibração, mas honesto, onde o próprio cenário, em vez de nos impelir para o sonho aventuroso, nos

induzisse ao exame e, mais do que um grande pano de fundo, fosse uma personagem de primeiro plano, viva e contraditória, ao mesmo tempo admirável e temível, como são as de carne, sangue e osso. A selva, os homens que nela viviam, o seu drama independente, uma plena autenticidade e nenhum efeito fácil – era essa a minha ambição. (FERREIRA DE CASTRO, 1955, p. 21-25)

Para debater contra um cenário que apresentava tanto a degradação humana quanto a espoliação, em plena floresta amazônica, no início da década de 1920, Ferreira de Castro, em A Selva, constrói a personagem Alberto, um português, dotado de uma cultura rígida quanto aos padrões morais edificados pela cultura judaico-cristã, em Portugal. É por intermédio de Alberto que os imagotipos surgem na obra, visto que, no continuum narrativo, esta personagem revela-se preconceituosa em relação às pessoas que viviam e trabalhavam no Seringal Paraíso. Como o narrador se posiciona rente à perspectiva de Alberto, a visão que comumente se constrói sobre Ferreira de Castro em relação a A Selva, é a de um antibrasileiro, detrator da imagem do Brasil. Isso ocorre também pela imediata identificação de Alberto com Ferreira de Castro, quando se percebem traços autobiográficos no romance, haja vista que a personagem principal de A Selva fizera trajetória semelhante à do escritor, quando este, em sua adolescência, abandonou Portugal e veio para o Brasil, a trabalhar em um seringal amazônico às margens do rio Madeira. Conforme salientam Saraiva e Lopes (2000, p. 1025), o fato de Ferreira de Castro constituir-se em um dos escritores portugueses mais lidos e traduzidos deve-se a que os dois romances ambientados na Amazônia Brasileira: A Selva e Instinto Supremo, traduzirem a experiência, até então mal conhecida, de imigração em um seringal da floresta amazônica brasileira, vivida, na prática, pelo escritor de A Selva.

Não obstante, a confusão entre personagens e autor deve ser afastada, dado o distanciamento de perspectiva que, mediante os recursos teóricos dos quais a Imagologia lança mão, se percebe entre o discurso do narrador e o discurso de Alberto. Fato que deve ser reiterado é o da escritura do romance. Ferreira de Castro manteve-se, dos dezesseis aos trinta e dois anos, afastado do tema, para que pudesse repudiar marcas biográficas que não estivessem em consonância com a imagem que, na maturidade, possuía acerca da Amazônia brasileira. Ademais, como se nota, indelevelmente, Alberto se transforma, na medida em que vai, aos poucos,

galvanizando um conhecimento do mundo amazônico que deveria contemplar os detratados e ascender o sentimento de pertença ao grupo dos desvalidos e engolfados pelo sistema extrativista e pela floresta desumanizadora.

Em uma das edições mais correntes de A Selva, trazida a lume pela Editora José Olympio, há, logo na capa, um bico-de-pena do reconhecido gravurista Poty, retratando uma mistura de homem e árvore, um homem abraçado, dolorosamente, por uma seringueira, a ponto de ser estrangulado por ela. A ligação desigual entre estas figuras, homem e árvore, reforça o embate que a obra edifica com lapidar propriedade, qual seja, a luta entre o homem e o meio adverso, na gana de ambos pela conquista de sobrevivência e supremacia.

Em A Selva, cabe muito mais à floresta tropical sugar a seiva vital do homem do que, propriamente, o homem valer-se da floresta como atributo de exploração. A primeira é mais forte e aparece, no construto literário, a partir do prisma de que se vale Alberto, envolta em um halo de paradoxos que, ora a transformam em paraíso terreal de inúmeras possibilidades, ora em inferno, cárcere imponderável, inimigo e reflexo da perda da esperança de enriquecimento fácil. Ao homem, frágil diante da supremacia vegetal, reservam-se as lamúrias, advindas da sua própria condição de ser encarcerado. Perdido dentro das grades de trepadeiras, samambaias e igarapés paludiais; cercado pelas águas dos imensos rios amazônicos e iludido pela ambição de riquezas, o homem, ínfimo, é engolfado pelo meio, nas brenhas da imensidão verde, e, o que poderia ser apenas mais um drama literariamente construído acerca da espoliação capitalista, adquire uma dimensão mítica e simbólica que foge aos limites do aparente relato social e recria, no cerne da tradição européia dos relatos de viagem, a trajetória de uma personagem como protótipo do conquistador português dos tempos das grandes navegações, que se vê, aos poucos, combalido pela necessidade de ser humanamente compreensivo num mundo de desvalidos e espoliados.

Por essa esteira, seria plausível uma relação autobiográfica entre Ferreira de Castro e Alberto. O primeiro, quando desembarcou no Pará, certamente veio imbuído de conceitos pré-formados sobre o Brasil, calcados, a exemplo do que ocorrera com o protagonista que constrói em A Selva, em sua formação judaico- cristã. Mas, esses conceitos, aos poucos, foram sendo superados, por conta da experiência com inúmeros indivíduos, reunidos sob a aura dos mesmos conflitos enfrentados na mata fechada. Com isso, o drama presente em A Selva, deixa de ser

pontual para ganhar marcas de universalidade, pois traz à tona não só a relação conflituosa entre os nordestinos brasileiros e os seringalistas, ambientada na floresta amazônica brasileira, porém o drama perene entre o homem e o meio natural. Nesse caso, um meio natural que de tão prolífico e dual escondia dentro em si outro drama, o social, na luta contra as desigualdades.

E assim se configuram o homem e a floresta em A Selva: a glória e o desespero, o bem e o mal, na esfera de um único círculo significativo, o da dominação; réu e seu carrasco convivem juntos, num mesmo corpo, que não se sabe humano e também não se sabe vegetal.

Embrenhado no meio da mata virgem a marcar roçados de seringais para serem cortados, o homem se perde diante da copiosidade do meio e, engolido pelo silêncio, sente o desejo de ouvir a própria voz e saber se ainda é humano, se ainda fala, se ainda não se misturou à mata sibilina, assim como o homem retratado nas estilizações de Poty, abraçado impetuosamente por uma seringueira. Então grita, um grito que é, pois, ao mesmo tempo, símbolo da transformação do homem mediante a zoomorfização - no ato de gritar estaria arraigado um gesto instintivo, animalesco, de marcar território - quanto verdadeiramente humano, do desespero que emana da fragilidade do ser, defrontado com um meio geográfico impetuoso e desigual, como ocorre com o quadro “O Grito”, do norueguês Edward Münch.

A trajetória narrativa de A Selva assemelha-se a de Emigrantes. Surpreende-se, numa primeira fase, a chegada de Alberto, um português, exilado devido ao fato de contrariar os interesses dos republicanos, que, então, no início do século passado, ascendiam em Portugal. Logo quando desembarca, seus gestos de repulsa frente a um meio estranho, com o qual é confrontado, evidenciam que diferencia-se dos “brabos”, dos nordestinos, atraídos pelas promessas de enriquecimento com a borracha. Isso se dá devido à formação cultural rígida que pudera ter em Portugal, em contraste com indivíduos simples, de modos ingênuos e pouco afeitos às “virtudes” européias.

Esse período, da chegada de Alberto rumo a Belém, no Pará, e dali para o seringal paraense, ironicamente denominado Paraíso, bem como o período de sua inicial transformação, diante de uma camada de sofredores, representaria a primeira fase do romance.

A segunda fase é seguida da mudança de comportamento de Alberto, não no sentido das transformações presentes nas personagens dos romances realistas da

década de 1870, em Portugal, sob influências de Zola e do determinismo de Taine, que enxergava os indivíduos como autômatos sociais, mas uma mudança sumariamente humana, empática, de aceitação da diversidade do Outro e da sensação de ser igual ao Outro. Sob os auspícios dessa mudança, Alberto, com o dinheiro que a mãe constantemente lhe enviava de Portugal, embarca de volta para Belém, levando consigo, na bagagem composta pelo palimpsesto da convivência diante da diversidade, a lembrança dos inúmeros amigos que fizera no seringal Paraíso, além, sobretudo, das duras lembranças dos maus tratos desferidos pelos seringalistas aos seringueiros, desde o pagamento irrisório até as surras desferidas contra os negros, que, há pouco haviam adquirido a liberdade com a lei Áurea e deviam se adensar à imensa massa de proletários.

Tanto Alberto como Manuel da Bouça retornam a Portugal. Um retorno que não carrega consigo, em nenhum dos dois casos, o desprezo pelo Brasil, mas a concepção de um mundo mais amplo, que poucos davam-se conta de enxergar. Um mundo que não se prendia a um espaço geográfico circunscrito, mas o ultrapassava, como se à compreensão humana não pudessem ser edificadas cercas.

Essa última parte do romance termina quando Tiago, possuído por toda revolta, coloca fogo no seringal Paraíso. É o paraíso transformado em inferno, símbolo da perda de toda esperança diante dos enganos da propaganda do enriquecimento fácil. Alberto retorna a Belém na esperança de um dia retornar a Portugal e tornar pública as desumanidades praticadas em meios absconsos, como era a floresta amazônica, à época da extração do látex.

Em um plano comparativo, tanto Emigrantes quanto A Selva têm seu substrato narrativo findado com a esperança futura de suas personagens principais. Manuel da Bouça congratula-se com a expectativa de um futuro melhor e Alberto, numa antevisão, fruto de um sonho, vê-se em um julgamento, defendendo o ato de Tiago ao colocar fogo no seringal.

A construção narrativa de Alberto, um português em constante embate com espaços físicos e humanos, revelando, no início da narrativa, aspectos da tradição européia como superiores aos valores que encontra no Brasil, salientados pelos juízos de valor reducionistas impregnados em seu discurso sobre os nordestinos, é uma das grandes questões que se coloca acerca de Ferreira de Castro e seus posicionamentos diante do Brasil. Tal como Alberto, Ferreira de Castro também viera ao Brasil e trabalhara em seringais.

Para o leitor mediano, a íntima relação entre o discurso do narrador e o discurso delegado pelo narrador à personagem de Alberto seria suficiente para confundir os dois, como se fossem a mesma entidade narrativa, de forma que quem narra seria, num jogo de espelhos, o mesmo ente que vive o fato narrado. Ao identificar Ferreira de Castro com o narrador e, por conseguinte, com as características de um Alberto inicial, antes da compreensão maior do mundo, o leitor mediano tem atribuído ao autor de A Selva adjetivos que põem em dúvida o real interesse social e estético que manteve, ao produzir uma obra que traz consigo imagens que, em nenhum momento intentam uma visão científica e indissolúvel das singularidades da floresta amazônica brasileira, seu povo e sua cultura, mas, ao contrário, buscam instaurar o drama universal que seu romance percorre.

Cabe, então, salientar, que a obra A Selva é de interesse fulcral para os estudos imagológicos devido a vários motivos, como: a) o fato de Brasil e Portugal estabelecerem relações de proximidade e distanciamento desde o descobrimento do Brasil, em 1500, com as imposições mercantilistas e a literatura de promissão produzida por portugueses sobre o Brasil; b) o desvelo da Imagologia pelo interesse que é atribuído pelo público a determinada obra, ou seja, os fatores que levam à circulação de uma obra de arte literária, mantenedora de relações interculturais, como é o caso de A Selva, traduzida para dezenas de línguas, como o alemão, o espanhol, o francês, o neerlandês, o búlgaro, o esloveno, o inglês, o holandês, o húngaro, o italiano, o servo-croata, o norueguês, o polonês, o romeno, o russo e o sueco; c) no cerne das relações interculturais, a preocupação imagológica em deslindar elementos de trabalho peculiarmente literário, como a construção de personagens e de narradores, e o papel do autor diante de todo o construto literário por ele praticado. Dessa forma, romances como A Selva, em que se observa um autor português construindo imagens sobre o Brasil, numa obra literária cuja personagem principal também é um português, de trajetória ficcional próxima da trajetória biográfica do autor que o construiu; d) finalmente, por intermédio do interesse da Estética da Recepção, que contribui teoricamente com a Imagologia, vislumbrar o leitor como fator primordial na construção de sentidos em uma obra, sobretudo no que tange às inferências sobre as aberturas que toda obra de arte literária possui, devido ao alto grau polissêmico que mantém.

Com isso, não se despreza, no todo analítico, nem o fator social que mobiliza a produção de A Selva, como romance fundamental do conjunto das obras de

Ferreira de Castro, com o qual se alia, não raro, seu nome, nem os atributos estéticos que fazem dela uma obra atemporal. Ao contrário, visa-se, mediante a Imagologia, a uma análise que contemple o trabalho social e o estético, como fatores em intensa simbiose, capazes de gerar efeitos múltiplos: alguns acertados, outros preconceituosos, outros ainda duvidosos, e todos, enfim, passíveis de um diálogo contrastivo, questionador, à luz imagológica.

Como, no início do romance, a visão de Alberto é parcial, não pode contemplar o todo em sua amplitude sígnica. Porém, os arquétipos que carrega, calcados na cultura européia, o impelem para tal, de modo que recria, a partir do cenário amazônico, distinto das paragens européias, um mundo fantástico, imaginário.

Levando a cabo os posicionamentos de Hugo Dyserink (1999) a respeito da recriação que o “Eu” pode fazer do “Outro”, a própria universalização, quando efetuada a partir de valores arquetípicos fixos, impregnados à tradição, constitui-se reducionismo de visão, pois foge do particular para o macrocosmo, de forma que nem todas as leis que regem e determinam o “todo” são suficientes para abarcar as singularidades da “parte”.

Para o leitor mediano, que se importa somente com a verossimilhança do que é narrado, gerada pela trama, não fica patente a visão de reducionismo presente no vislumbre de Alberto, o que o faz aceitar a trama sem atentar para a carga ideológica insuflada por detrás da linguagem e dos códigos que decodifica de modo simplista e monofocal, isto porque, como, aliás, apresenta Candido (1972) a propósito de Fogo Morto, de José Lins do Rego, e que também pode ser utilizado para observar A Selva:

A concentração, limitação e obsessão dos traços que caracterizam as personagens se ordenam convenientemente neste universo, e são aceitos pelo leitor por corresponderem a uma atmosfera mais ampla, que o envolve desde o início do livro (CANDIDO, 1972, p. 7-36).

Traços dessa referida universalização do meio amazônico a partir de uma lógica arquetípica européia ocorrem em vários trechos, como, por exemplo, quando Alberto se depara com a floresta pela primeira vez e sente-se impelido a definí-la e

sintonizá-la para si, buscando modelos melhor adaptáveis a tudo aquilo que vislumbra:

Evocado dali, Portugal era uma quimera, não existia talvez. Pequeno e lá longe, os que o levavam na memória não estavam certos se viviam em realidade ou se sonhavam com as narrações dos que tinham voltado das descobertas. Vendo os contrastes que se agigantavam de dia para dia, a própria personalidade deles entrava em dúvida e todo o passado se esfumava momentaneamente, tudo lhes parecia. Eles seriam, porventura, uma alucinação sobrevivente de alguém que morrera pensando em fábulas bíblicas, em mundos pré-históricos, e, quando menos o suspeitassem, desvanecer-se-iam totalmente, como espectros de pesadelo. Só o perigo, mais temido do que em outra parte, por usar máscaras desconhecidas, os reconduzia à realidade, humanizando-os ante eles próprios (p. 87).

O fato de se relacionar a floresta e as cidades com o mundo fabuloso do itinerário mitológico torna a perplexidade da floresta inteligível, porém, a comparação com o mundo europeu a distingue no âmbito de uma perspectiva negativa. Agora, o que antes para o protagonista era infernal (ou seja, o Portugal repressor cujos duros princípios estatais o fizeram vir para o Brasil, exilado) surge como paradisíaco, porto seguro, para onde o retorno do mundo infernal seria imprescindível. Logo após