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CAPÍTULO 4 – SEGUNDA FASE (1956 – 1966)

4.1. O sétimo selo

Com este filme Ingmar Bergman atinge o que muitos consideram o ponto mais elevado de sua carreira como cineasta. Calcado num roteiro bem construído, plasmado em peça de sua autoria, O retábulo da peste, O sétimo selo (Det sjunde inseglet – Suécia – 1957) é exemplar em termos de estética cinematográfica. A estrutura dramática, calcada em parâmetros rigorosos, que lembram os grandes mestres da cinematografia, na linha de um Otto Preminger, por exemplo, é primorosa. Pode-se dizer que o diretor jamais alcançara padrão de realização fílmica tão requintado, com uma narrativa exemplarmente bem desenvolvida, obedecendo às motivações do ritmo e da linearidade clássica. A história está ambientada na Idade Média e seu núcleo dramático central está voltado para a presença da morte em meio a uma Europa devastada pelas guerras, a miséria social e a peste que dizima populações inteiras. Nesse cenário de absoluta impotência diante do grande flagelo humano, Antonius Block (Max Von Sydow) e Jöns (Gunnar Bjönstrand), seu escudeiro, aportam numa praia deserta, fustigados pelo cansaço e pela desesperança. É aí que aparece, em forma de homem, a figura da Morte, que vem ao encontro do seu novo escolhido, o cavaleiro Antonius. Consciente da finitude humana e da inevitabilidade do encontro com a inclemente figura, Antonius propõe à Morte uma disputa de xadrez, a qual, se por ele vencida, o pouparia do fim. A alegoria da cena, explorada por um roteirista inspirado e um realizador não menos

criativo, constitui o primeiro grande momento do filme. Para Guido Bilharinho, estudioso mineiro, o “jogo de xadrez com o protagonista significa não só a parábola da natureza humana (permanente disputa entre a Vida e a Morte, sempre vencida por esta no plano individual) como representa a materialização da obsedante presença junto ao homem medieval” (BRILHARINHO, 1999, p. 23).

De fato, O sétimo selo representa, com um rigor descritivo que exorbita em algumas passagens do filme – a exemplo da sequência da procissão, a ser reportada adiante –, a realidade difícil e pungente da Alta Idade Média, notadamente na apresentação física de seus personagens, bem como no ornato do cenário que reedita algumas das realizações mais célebres da pintura. Aliás, é a complexidade imagética do filme um dos elementos que o diferenciam em relação ao cinema de sua época. Em tudo, da direção de atores ao cenário, das angulações de câmera à composição dos enquadramentos estilizados, da precisão dos cortes às soluções e escolhas de montagem, O sétimo selo é paroxístico em termos artísticos.

Mas o filme, na contramão do que seria provável, ainda que tenha as suas bases estéticas numa concepção cinematográfica mais tradicional, surpreende pelo tratamento de linguagem em termos inovadores: o entrelaçamento com outras formas textuais é um índice reatualizador do mesmo, como a denunciar a presença de um cineasta em dia com as novas pesquisas estéticas. Pode-se falar, assim, de certa iconografia escatológica na construção de suas imagens, em que pontuam caveiras, o rosto de um Cristo deformado, o nauseabundo, o espetáculo degradante das execuções, a dança da morte, a presença constante dos quatro “cavaleiros do Apocalipse”: a Guerra, a Fome, a Peste e a Morte. Mesmo do ponto de vista do seu significado, portanto, e no mesmo diapasão de estilo, O sétimo selo é um poema macabro sobre um período da História em que inocentes eram queimados vivos (a cena em que o filme mostra o momento da execução de uma jovem é apavorante), as perseguições religiosas, as práticas de feitiçaria, a peste e a morte que assolavam aldeias e florestas (ARMANDO, 1988).

Tal entrelaçamento de linguagens, Bergman vai tornar evidente numa das cenas iniciais do filme, quando Antonius e Jöns, chegando a uma aldeia, deparam- se com a figura de um pintor de retábulos. A câmera passeia por sobre a pintura em que se veem retratados homens e mulheres imolando-se, enquanto o artista, em off, descreve o sacrifício humano em busca da inalcançável remissão. A obra é uma encomenda da Igreja, a fim de que os fieis não se esqueçam do que lhes poderia

acontecer. Também grandes mestres das artes visuais exploraram o tema, como se pode ver em Matthias Grünewald (1470-1528), Lucas Cranach - the Elder (1472- 1553), Hans Baldung (1484-1545), entre muitos outros nomes da antiga escola alemã revisitados pelos expressionistas e outros pintores da modernidade, a exemplo de Gustav Klimt (1862-1918), George Grosz (1893-1959), James Ensor (1860-1949) e Edvard Munch (1863-1944). Em que pese, assim, a carpintaria cinematográfica tradicional, O sétimo selo, inaugurando o que se poderia considerar aqui a segunda fase da filmografia de Bergman, ao lado do cineasta de formação clássica, dá a ver o artista moderno, estabelecendo a articulação de meios estéticos conflitantes.

Numa das sequências mais perturbadoras do cinema, a da procissão dos desvalidos, leprosos, miseráveis de toda ordem, por volta de meia hora de filme, Bergman vai atingir um dos pontos áureos de sua arte. A câmera fixa, numa sugestão de antropofagia horripilante, parece engolir os fiéis que crescem em closes rápidos e desaparecem pelas laterais do equipamento. Os cortes são secos, vertiginosos, alternando-se com travellings da multidão comovida com o espetáculo, além de angulação e realce da beleza plástica dos rostos. Há, desse modo, uma harmonização inusitada das imagens no écran ditando um ritmo dramático condizente com a densidade da cena. Ora veem-se rostos, como quadros estáticos, emoldurados pelo enegrecido das bordas, ora estrutura plásticas dinâmicas, movimentos de câmera estonteantes, profundidades de campo, angulações inusitadas, plongées, contra-plongées, que sublinham a narratividade de um construtor de imagens criterioso. Em outras palavras, a sequência obedece a uma concepção narrativa que, para além de sua prodigiosa plasticidade, quase uma celebração visual, compõe em sua totalidade um depoimento indignado do artista sueco contra a religiosidade que embrutece os homens e os deixa cegos em suas equivocadas convicções.

O filme, em sua totalidade, está perpassado de sugestões intertextuais. Na cena em que a jovem é conduzida numa carroça até o local do seu sacrifício, ruídos, sons musicais, barulho dos cascos dos cavalos em meio ao lamaçal, numa atmosfera soturna e sombria, compõem um dos quadros mais impressionantes do cinema. Um poema visual, como Bergman obsessivamente passa a perseguir a partir de O sétimo selo. A câmera do cineasta sueco, numa transgressão estilizada

da imagem fílmica, que se pretende realista ou com aparência de realidade38, tece um quadro de rara beleza, arte pura, carregada de lirismo e dramaticidade. Não é muito dizer: O sétimo selo mistura diferentes estéticas em sua tessitura, a um tempo expressionista, surrealista, realista e intensamente poética. A cena é conduzida com tamanho rigor estético, que diferentes sugestões sensoriais parecem advir de suas imagens: plásticas, não raro lembrando o equilíbrio de massas e volumes, a harmonia dos traços e o enquadramento de uma tela de Cézanne (1839-1906); o peso de uma construção gótica e, sem qualquer excesso de entusiasmo em face de suas qualidades artísticas, musicais.

Como se vê, na realização de um filme construído sob os fundamentos da narrativa clássica, o cineasta reinventa a linguagem fílmica, emprestando-lhe novos contornos, possibilidades formais inovadoras e carregadas de sentido. Desse modo, Bergman torna possível o que se chama aqui de o diálogo entre o clássico e o moderno. O filme é original, criativo, muito embora o estilo e a força visual da sequência deem a ver certa influência de A carruagem fantasma (Körkarlen – Suécia – 1921)39, de Victor Sjöstrom, cuja importância, como cineasta, é inegável para a trajetória artística de Bergman. Nesse ponto, todavia, a fim de evidenciar essa preocupação (inconsciente?) em inovar, mesmo partindo das soluções já encontradas pelos diretores mais tradicionais, cabe citar o próprio Bergman:

Aprendi vendo filmes. Minha única experiência prática foi servir de roteirista a Alf Sjoberg em A tortura de um desejo. Depois foi Victor Sjöstrom, que simplesmente conversou comigo durante aquela primeira missão impossível, meu primeiro filme. Não fui influenciado pelos estilos artísticos de outros diretores. Podemos ser influenciados por qualquer coisa ao nosso redor: a moderna fotografia, a reportagem de TV, a música pop. Naturalmente sou influenciado pela nova tendência da realização cinematográfica, a sensibilidade pelo filme como filme. Segundo essa tendência, não precisamos de efeitos de iluminação, por exemplo, e podemos alcançar resultados positivos sem equipamentos complexos. Com esses recursos podemos voltar, em certo sentido, às origens do cinema, quando era simples: você armava a câmera em um arbusto. (BERGMAN, 1977).

38 Cf. MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. Trad. Lauro António. Lisboa: Dinalivro, 2005. 39 Três amigos, embriagados, na véspera do Ano Novo, fazem um pacto inspirado numa lenda antiga:

a última pessoa a morrer no ano, sendo uma pecadora, conduzirá a carroça que recolherá a alma dos mortos. O filme tem uma sequência muito parecida com a de O sétimo selo.

O comentário de Bergman, no entanto, embora tenha a lucidez própria do esteta atento, revela, em alguma medida, certo barroquismo teórico, pois sua fotografia, com luz estudada na sequência em análise, por exemplo, constitui uma das marcas do seu rigor artístico. O sétimo selo tem em torno de setenta por cento de suas tomadas em estúdio, os recursos de iluminação e som, impecáveis, o tratamento sofisticado, para a época, um filme, pois, levado a efeito sob um aparato „industrial‟ em nada desprezível para os parâmetros da época.

Além desses elementos aludidos, acima, como forma de evidenciar o entrelaçamento de linguagens em O sétimo selo, que põem à prova essa interlocução do tradicional com o inovador, seria de estranhar que não se fizesse qualquer referência à presença de meios teatrais nesta obra hegemônica da filmografia de Bergman. Pois bem, a direção de atores obedece a uma marcação cênica própria dos palcos. As expressões faciais dos mesmos, de Max Von Sydow (Antonius), Nils Pope (Jof) e Bengt Ekerot (A Morte), sobremodo, notadamente nos closes à maneira de Dreyer (1889-1968), são exploradas com uma intencionalidade assumidamente teatral. Enquanto Nils Pope traz os sestros do comediante, que servem para reverberar a ingenuidade de um arlequim da Commédia Dell‟Arte, Von Sydow e Ekerot elevam a níveis dramáticos teatrais suas interpretações, como nos planos em que dialogam através da abertura gradeada de uma parede, na segunda aparição da Morte a Antonius. A alegórica representação da Morte, em tempo, deve ser realçada como uma marca do teatro no filme de Ingmar Bergman, denunciando em mais um aspecto a vocação experimental de uma obra edificada sobre os alicerces do naturalismo.

Como fundo, e não raro ganhando a visibilidade do primeiro plano, a música do filme alterna o profano ao trágico, Carmina Burana a Dies Irae. Aliás, é da obra de Carl Orff (1895-1982) que Bergman tirara a inspiração inicial do filme, música que, segundo afirmaria em mais de uma situação, fazia parte do seu dia a dia em casa. A obra (1936) reporta-se à saga dos viajantes medievais, da miséria de um tempo em que grassavam as guerras, as doenças, a fome, a peste, a morte.

A realização do filme durou 35 dias e, segundo afirma em Imagens (1996), é uma de suas obras preferidas, que lhe “acalenta o coração”.

Do ponto de vista temático, O sétimo selo reedita os temas mais marcantes da filmografia do cineasta sueco: lembranças da infância, em que a religião o atormentava; a busca de Deus e a angústia pela negação de sua presença entre os

homens; o amor como única possibilidade de redenção; a relação familiar e um existencialismo perpassado de poesia. A cena em que Jof „vê‟ a Virgem com o Menino, como na tela conhecida de Da Vinci (1452-1519), extrapola lirismo. Ao lado disso, como se verá também em O ovo da serpente (1977), há a metáfora da miséria humana diante dos horrores da guerra. Este tema, por sinal, alegorizado ou não, é recorrente na filmografia do sueco, o que, por si só, bastaria para rechaçar a pecha de omisso em face às questões políticas de seu tempo.

Por último, o que vem evidenciar as inovações estéticas de Ingmar Bergman, a improvisação como uma alternativa de solução para algumas dificuldades na realização do filme. Este fato, recorrente na sua obra, curiosamente vem a resultar, no caso em tela, numa das imagens mais soberbas do cinema40: a cena final, em que a Morte dança com os seus eleitos, em plano geral, em que se veem as silhuetas dos corpos contra uma luz difusa, é irretocável, realçando a plasticidade de fotogramas em preto e branco que remetem a Dança (1909), de Henri Matisse, pelo rigor da composição e perfeita harmonia entre as massas, das figuras humanas, do céu, ao fundo, e da terra. Como no quadro do francês, a cena final de O sétimo selo impressiona pelo movimento dos corpos, dos pés e das mãos que parecem dar sequência ao movimento uns dos outros, qual uma roda em torno de um eixo, que gira e gira sem interrupção, pelo sem-fim dos tempos.

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