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O S ENTENDIDOS: SOBRE O GNOSTICISMO E O PROBLEMA TERMINOLÓGICO

No nível mais básico, os termos gnóstico e gnosticism o refe­ rem-se a uma crença fundamentada em um conhecimento es­ pecial, cujos possuidores são chamados de gnósticos. O termo

gnosticism o náo é antigo. O protestante Henry More cunhou o termo em 1669 como um nome polêmico para heresia. More usou-o para queixar-se da teologia católica (Layton 1995, 348-49). É provável que o nome tenha vindo da reclamação de Irineu em cerca de 180 d.C. sobre as visões contra as quais ele estava escrevendo em sua obra conhecida como Contra as Heresias. Essa obra também teve o título de Exposição e des­ truição daquilo que é falsam ente chamado d e “conhecim ento”. Uma palavra grega para conhecimento é gnosis. Em seu sen­ tido mais amplo, o gnosticismo é uma visão religiosa baseada numa declaração de conhecimento.

De fato, o termo grego para conhecimento {gnosis) foi am­ plamente usado num sentido tanto positivo quanto negativo no século I. A passagem de 1 Coríntios 8.1, por exemplo, usa a palavra positivamente e negativamente no mesmo versícu­ lo. Ali Paulo diz: “Sabemos que todos temos conhecimento. O conhecimento traz orgulho, mas o amor edifica.” Desse modo, conhecimento é alguma coisa possuída por aqueles que afirmam conhecer Jesus, mas o perigo é que o conheci­ mento leve à arrogância.

Num denso artigo intitulado “Gnosticismo”, Nock mos­ tra a variedade desse uso geral do termo conhecimento nos dois primeiros séculos (Stewart 1972, 2:944-45), aplicado a todos os tipos de experiências e declarações religiosas. Com o tempo, o gnosticismo desenvolveu um uso mais técnico e his­ tórico, aplicado por historiadores tanto seculares quanto ecle­ siásticos às visões que Irineu e outros contestavam. Contudo, uma definição específica desse gnosticismo antigo não foi desenvolvida, para a satisfação dos acadêmicos. O problema tornou-se tão grande que uma famosa conferência em 1966, na cidade de Messina, reuniu especialistas para tentar chegar a um acordo sobre a definição, mas a tentativa falhou. Em 1996, Michael Williams escreveu um livro, publicado pela Prince-

ton University Press, intitulado Rethinking “Gnosticism”: An argum ent fo r dism antling a dubious eategory [Repensando o “gnosticismo”: uma discussão em favor do desmantelamento de uma categoria dúbia].

A primeira questão era a enorme variedade de visões den­ tro das obras antigas chamadas gnósticas. Tem sido difícil determinar as características que fazem com que uma obra seja chamada gnóstica e as características que mostrem que ela seja simplesmente algo diferente daquilo que conhecemos hoje como Cristianismo ortodoxo, mas não necessariamente gnóstico.

Um segundo problema é que o gnosticismo se tornou um lema, quase um slogan, para referir-se a qualquer coisa que fosse herética, demonstrando assim que aquilo a que o termo era atribuído era importante. Na visão de alguns, fazer isso é macular o termo. Pelo menos esse é o argumento de Karen King, de Harvard, em sua obra What is Gnosticism? [O que é gnosticismo?] (King 2003a, 7). Ela escreve: “Como catego­ ria, o gnosticismo serviu a diversos objetivos intelectuais im­ portantes, definindo as fronteiras do Cristianismo normativo — especialmente com referência ao Judaísmo — e ajudando o colonialismo ao contrastar o gnosticismo, como uma here­ sia oriental, com a religião ocidental autêntica. Além disso, ele ofereceu uma categoria única à qual se referir uma vasta gama de idéias, obras literárias, indivíduos e grupos.”

O terceiro problema foram as novas descobertas em Nag Hammadi. Considerou-se que aquelas obras se encaixavam nessa categoria (independente do que exatamente pudesse ser o gnosticismo), mas mostravam uma importante diferença entre si. Não apenas isso, mas havia outras obras da coleção que não se encaixavam nas definições existentes.

King prefere neutralizar a discussão comparativa e sugere a impropriedade do termo. Ela diz isso da seguinte maneira:

“A variedade dos fenômenos classificados como gnósticos’ simplesmente não apoiará uma definição única e monolítica e, de fato, nenhum dos materiais básicos se encaixa na definição tipo lógica padrão” (King 2003a, 226, ênfase dela).

Por “definição tipológica” King refere-se a uma descrição do gnosticismo que cita vários traços comuns ou típicos dentro de tais obras que as identificam como gnósticas. A chave aqui é identificar traços que são distribuídos de maneira suficiente­ mente ampla por todos os vários textos para indicar a presença do gnosticismo. Também existe a questão de determinar quan­ tos desses traços são necessários para apontar sua presença.

A maioria das definições atuais de gnosticismo afirma que existe um traço principal ou declara que alguns poucos traços são necessários. Outros acadêmicos defendem que qualquer obra que tenha vários traços de uma lista de cinco a onze características é importante. O argumento de King é que sim­ plesmente precisamos perceber que um rótulo único não se encaixa na variedade de visões sobreviventes dentro do Cris­ tianismo e que, portanto, é errado fazer qualquer ligação en­ tre essas variedades. Mais uma vez, King resume: “Pelo fato de nenhum dos textos conter todas as características listadas, a fenomenologia tipológica [definição por meio de uma lista de traços] levanta a questão de quantos elementos do tipo ideal, qualquer caso em particular, precisa evidenciar para se quali­ ficar como um exemplo de gnosticismo” (King 2003a, 226. A explicação entre colchetes é minha).

Essa declaração se concentra tanto na variedade entre os textos que acaba por obscurecer o fato de que o conjunto de idéias religiosas refletido por eles está dentro da mesma famí­ lia de interesses. Enquanto King pergunta qual característica única tem força para caracterizar uma obra como gnóstica e afirma, provavelmente de maneira correta, que não existe um traço único e “mágico” que garanta a presença gnóstica,

a maioria das pessoas que trabalha na área argumenta que a questão não é que traço é realmente importante, mas o que é refletido pela obra como um todo. Uma determinada obra usa vários dos possíveis traços de evidência para uma visão “gnóstica”? A maioria dos acadêmicos argumenta que as obras gnósticas compartilham de uma aparência geral no mundo que pode ser definida e descrita.

Uma definição de gnosticismo

Com o objetivo de entender os evangelhos alternativos ci­ tados nos capítulos a seguir, vamos pesquisar as características que sugerem que uma obra é gnóstica. Um especialista desse campo nos oferece uma definição muito útil.

Kurt Rudolph

Kurt Rudolph foi professor de História da Religião na Universidade de Marburg, Alemanha. E amplamente reco­ nhecido como um dos principais estudiosos desse período. Sua lista tem cinco traços (Rudolph 1983, 57-59).

1. O dualismo vem em primeiro lugar. Dualismo signifi­ ca que há tanto na criação quanto no homem uma mistura de bem e de mal que é distinguível mesmo quando as duas qualidades existem lado a lado. Incluída nesse dualismo nor­ malmente está a distinção entre o Deus bom, amplamente transcendente e incognoscível, e o Deus que criou o mundo. O Deus cognoscível, que é uma projeção na criação, é o Cria­ dor, enquanto o Deus incognoscível está sobre todas as coisas, mas é transcendente demais para estar diretamente envolvido com a criação. O Deus verdadeiro e o Deus Criador de Gêne­ sis não são o mesmo ser.

2. A seguir, existe a cosmogonia. Aqui, na criação, existe um contraste de esferas, freqüentemente chamado luz versus trevas, alma e/ou espírito versus matéria e/ou carne, e conhecimento

versus ignorância ou esquecimento. O primeiro traço abordou o dualismo em Deus; aqui, analisa-se o dualismo na criação. De um lado, a luz, a alma, o espírito e o conhecimento representam o que é bom; do outro lado, trevas, matéria, carne e ignorân­ cia ou esquecimento refletem o mal. Portanto, o mal estava na criação desde o início. As características positivas presentes no homem são freqüentemente representadas como uma “fagulha divina” dentro dele. Sendo assim, a cosmogonia é dualista. Al­ guns acadêmicos usam uma descrição abreviada dessa criação e a chamam de “dualismo anticósmico”, o qual rejeita o mundo material físico por considerá-lo maligno e inferior.

3. Soteriologia (ou salvação) é a próxima. Salvação e re­ denção são entendidas basicamente em termos de conheci­ mento da natureza dualista da criação. O que importa é a salvação do espírito não-material ou da alma dentro de uma pessoa, não a salvação da criação ou da carne. De fato, a carne não é passível de redenção. Não existe ressurreição do corpo depois da morte.

4. Escatologia (o ensino sobre as últimas coisas) significa que se entende qual é o destino da existência, a saber, a re­ denção da alma e a recuperação da criação na “plenitude” ou “pleroma”, que é o lugar onde habita o bem. O que importa é que uma pessoa (a) compreenda o valor do espiritual acima dos outros elementos da existência, (b) estabeleça um senso de conexão com o espiritual e (c) tenha um senso de separação do mundo físico mau, composto de carne e de matéria.

5. Embora saibamos pouco sobre essa área, existe o culto e a comunidade, ou seja, a adoração e as pessoas que nutrem tais visóes. Isso envolve seus rituais de adoração, pois sabemos que eles possuíam práticas além do batismo. Rudolph com­ pleta essa definição em seu livro Gnosis, citando uma série de textos para embasar cada tópico (1983, 59-272; também Klauck 2000, 461-99; Markschies 2003, 16-17, apresenta

oito elementos em sua definição que basicamente subdividem as categorias de Rudolph; Pearson 1990, 7-8, considera oito a onze elementos, mas os elementos de seis a onze não possuem tanta significância, como notaYamauchi 1997, 72-73).

A lista de Rudolph mostra que o gnosticismo era bastan­ te complexo, mas funcionava como uma fé ampla cobrindo as questões-chave sobre Deus, a criação, o homem, a salvação e o fim da criação. De fato, A. D. Nock, um bem conheci­ do acadêmico clássico de meados do século XX, notou que o gnosticismo abordava três principais questões humanas; “uma preocupação com o problema do mal, um senso de alienação e afastamento do ambiente do homem e o desejo por um co­ nhecimento íntimo especial dos segredos do universo” (Stewart 1972, 2.940). Os gnósticos compartilhavam dessas preocupa­ ções com o mundo antigo mais amplo ao qual pertenciam, mas deram respostas singulares a esses temas. A definição de Rudolph também mostra que, embora o gnosticismo não possa ser en­ capsulado por um detalhe único, uma variedade desses tipos de traços identifica a sua presença. Essas antigas idéias-chave aparecem em muitos dos textos que vamos considerar.

Uma observação-chave

Pode-se tirar uma conclusão a partir dessa definição. O aspecto essencial do gnosticismo era sua visão da deidade, a saber, a distinção e o relacionamento do Deus transcendente com o Deus Criador. Isso é importante porque essa visão de Deus produziu a reação ortodoxa contra esses textos.

Por um lado, precisamos ser lembrados que nem todos os textos “alternativos” dos dois primeiros séculos são gnósticos. Adolf Harnack (1851-1930), famoso professor de História Eclesiástica em Leipzig, Giessen, Marburg e Berlim no final do século XIX e início do século XX, é conhecido por sua

descrição de gnosticismo como uma “aguda secularização ou helenização do Cristianismo”, uma visão que argumenta que o gnosticismo era um derivativo do Cristianismo. Essa é a vi­ são clássica do relacionamento histórico entre o Cristianismo e o gnosticismo (Harnack 1893, 1.227). Descobertas recentes e a nova escola têm desafiado esse elo derivativo. Contudo, aqueles que criticam Harnack freqüentemente ignoram sua declaração como um todo (p. ex., Klauck 2000, 556), que afir­ ma o seguinte: “a aguda secularização ou helenização do Cris­ tianismo, com a rejeição do Antigo Testamento” (grifo meu). A separação de Deus e a visão da criação que resulta disso, juntamente com a rejeição do Antigo Testamento, são pistas para compreender o debate sobre a ortodoxia.

A idade e as possíveis raízes do gnosticismo, embora seja uma outra área bastante litigiosa, é a questão final a pesqui­ sar sobre o contexto antigo. Praticamente todos os envolvidos nesse campo consideram que essa questão não foi resolvida. O próximo capítulo diferencia aquilo que sabemos daquilo que é debatido. Essa distinção nos forçará também a consi­ derar como funciona o método histórico e o que procurar quando estudamos história.

Pe r g u n t a s p a r a e s t u d o

1. Quais são os três fatores que dificultam a definição do gnosticismo?

2. Quais são os cinco traços freqüentemente associados ao gnosticismo?

3. Que aspecto na observação de Harnack sobre o gnosticis­ mo é freqüentemente ignorado e por que essa perspectiva é importante?

CAPÍTULO 3

Da t a n d o a o r ig e m d o g n o s t ic is m o

U m a c o i s a é d e f i n i r o g n o s t i c i s m o , m a s o u t r a b a s t a n t e

diferente é discutir sua datação e sua origem. As visões gnós­ ticas são anteriores ao Cristianismo? Teria ele surgido como uma reação ao Cristianismo? O gnosticismo foi influenciado pela filosofia grega e/ou pelo Judaísmo? Em outras palavras, onde o gnosticismo se encaixa no mapa da história?

Po r q u e é d if íc il t r a ç a r a s o r ig e n s d o g n o s t ic is m o: s in c r e t is m o, f il o s o f ia e